24/09/2004

Declaração Final: III Consulta Latino-Americana de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, São Paulo, Brasil


25 – 27 de Agosto de 2004


 


Oitenta e sete defensores e defensoras vindos de 20 países das Américas e observadores internacionais da África, Ásia e Europa, representando organizações de direitos humanos e movimentos sociais, nos reunimos com o objetivo de conhecer e analisar as novas situações de violações de direitos humanos que enfrentam e sofrem os defensores e defensoras, incluindo os movimentos sociais. Assim como, também, para assumir o desafio de propor e instrumentalizar políticas ativas para resolver estas situações.



A III Consulta aconteceu em seqüência das Primeira e Segunda Consultas, com uma ampla representação de setores e ativistas, que vão desde comunidades indígenas, ONGs de defesa dos direitos humanos, grupos de defesa dos direitos da mulher, ambientalistas, da comunidade gay e de lésbicas, defensores de direitos da infância e da adolescência, movimentos campesinos, sindicalistas, afrodescendentes e lutadores sociais, entre outros.



Considerando

Que o conceito de defensor contido na Declaração das Nações Unidas sobre os Defensores de Direitos Humanos adotada em 1998, inclui como tais todas as pessoas que defendem os direitos humanos consagrados nos diversos Tratados, Convênios e Declarações Regionais e Internacionais, incluindo os integrantes dos diversos movimentos sociais que no continente reclamam a vigência dos direitos humanos, civis e políticos, econômicos, sociais e culturais e coletivos.



Desde a realização da Segunda Consulta Latino-Americana (Guatemala, julho de 2002) até hoje, a situação de ataques, ameaças e hostilidade frente os defensores e defensoras se agravou, assim como ganhou novas formas.



Que as mulheres defensoras sofrem violações específicas a seus direitos como tais.



Que o Estado deve garantir a plena vigência dos direitos humanos e da segurança e proteção da atividade dos defensores e defensoras e que portanto tem obrigações indelegáveis tanto de respeitar como impedir a ação de seus agentes, como a de particulares que atuam com sua cooperação, o que o fazem por sua omissão ou falta de regulação. Em conseqüência a situação e garantiras dos defensores e defensoras na região são responsabilidade de políticas e ação dos Estados.



Que poucos Estados adotaram políticas de proteção frente os defensores e defensoras.



Que vivemos sob os impactos da guerra contra o “terrorismo” como reação do governo dos Estados Unidos e sua coalizão ao repudiável atentado de 11 de setembro de 2001. Esta guerra, que se produz no marco da globalização e do neoliberalismo que operam para a exclusão econômica e social, considerando que o indivíduo e o cidadão são efêmeros e descartáveis, constitui uma nova expansão do modelo neoliberal.



Que o produto da implementação das medidas econômicas neoliberais impostas por o BID, o FMI e o Banco Mundial nos diferentes países precarizou a situação da vida humana tornando desta forma mais difícil mas mais necessário o trabalho dos defensores e defensoras de direitos humanos.

Que além dos grupos paramilitares e fundamentalistas, a globalização trouxe novos atores não estatais (por exemplo: multinacionais, grupos de poder econômico, que inclusive controlas meios de comunicação em massa), que participam ativamente das violações contra defensores e defensoras de direitos humanos, em particular contra comunidades indígenas, afrodescendentes, campesinos, os movimentos sociais, população refugiada e sindicalistas, entre outros.



A globalização neoliberal e a imposição de políticas por parte dos organismos financeiros multinacionais fez com que a violação dos direitos econômicos, sociais e culturais se transforme em uma violação estrutural dos direitos humanos.



Que diante da falta de recursos humanos e financeiros das instâncias regionais e internacionais de proteção de direitos humanos, há um enfraquecimento dos mecanismos de proteção específicos para defensores e defensoras.



Que todas e cada uma das ameaças, intimidações, persecuções, judicializações e demais ataques que sofrem os defensores e defensoras têm como claro objetivo político o sancionar, obstruir ou impedir o trabalho que os mesmos realizam e que por conseguinte não são um ataque pessoal senão um ataque comum a toda a sociedade.



Declaramos

Que no continente, os defensores e defensoras continuam sendo vítimas de ameaças, detenções arbitrárias, exílio, seqüestro e assassinato.



Que dentro das novas formas de persecução dos defensores e defensoras, está a judicialização de suas atividades, com uma grave tendência à criminalização da manifestação e do protesto social, utilizando figuras que vão desde delitos de menor gravidade até imputações de terrorismo.



Que neste contexto, alguns Estados da região modificaram e outros pretendem modificar a legislação com o objetivo de limitar e inclusive penalizar a atividade dos defensores e defensoras, assim como também o legítimo exercício da manifestação e do protesto social, aplicando contra os mesmos leis antiterroristas.

Que em muitos países há uma planejada campanha de desprestígio, com o objetivo de isolar o trabalho dos defensores e defensoras pretendendo torná-los responsáveis pelas situações de insegurança e aumento da delinqüência, gerando uma perigosa e falsa associação entre defesa dos direitos humanos e delito.

Que ao contrário dessas posições, reivindicamos o papel legítimo dos defensores e defensoras na construção da justiça social, da democracia e do Estado de Direito.



Que reivindicamos a legítima natureza política da defesa e promoção dos direitos humanos, fundamentos essenciais da democracia, do estado de direito e de uma sociedade justa e participativa, em que se tenha eliminado a opressão, a miséria, as desigualdades e todas as formas de discriminação.

A necessidade de instrumentalizar políticas ativas para enfrentar e reverter o ataque contra o trabalho dos defensores e defensoras.



Que os programas estatais e os mecanismos internacionais de proteção a defensores e defensoras devem garantir em território a segurança do defensor, assim como a continuidade do seu trabalho. De forma integral, estes programas devem prevenir os ataques e implementar políticas ativas de desarticulação, desmantelamento e penalização dos agentes agressores, sejam estes estatais e/ou paraestatais.

A necessidade de articular a atividade dos defensores e defensoras com os movimentos sociais e com outras redes e setores para uma ação conjunta na defesa dos direitos humanos, em particular os direitos econômicos, sociais, culturais e coletivos.



Somente quando a sociedade em seu conjunto assumir os direitos humanos como próprios se iniciará um efetivo processo de construção e implementação dos mesmos.



A urgente necessidade de fortalecer as instâncias internacionais, regionais, nacionais e locais de proteção dos defensores e defensoras.



Que as lutas sociais e a manifestação pela vigência dos direitos universalmente consagrados nunca devem ser consideradas como delito ou ato criminal, senão uma reivindicação justa. Pelo contrário deve ser denunciado como criminoso aquele Estado que não cumpre com suas obrigações, nem garante os direitos de sua população.



Propomos 

Seguir fomentando o conceito amplo de defensor e defensora de direitos humanos e a aprovação do mesmo, conforme a Declaração das Nações Unidas de 1998, fazendo uma clara reivindicação da legitimidade da atividade política que exercem os defensores e defensoras na construção de um verdadeiro Estado de Direito e de justiça social.



Formular políticas ativas para deter as contínuas agressões e violações aos direitos humanos em geral e ataque aos defensores e defensoras em particular, provenientes de agentes estatais e não estatais, não somente para reclamar sua sanção como também para evitar que elas se produzam.



Iniciar campanhas para enfrentar não só as formas habituais de perseguição que sofrem os defensores e defensoras como também para combater as novas tendências, em particular a criminalização da manifestação e do protesto social, e as campanhas de desprestígio contra o ativismo social e de defesa de diretos humanos.



A contínua organização e o desenvolvimento de processos nacionais para examinar a situação em que se encontram os defensores e defensoras, suas necessidades, e elaborar propostas e implementar políticas ativas de proteção da atividade que realizamos.



Que os grupos específicos de defensores e defensoras devem ser escutados na elaboração das medidas para sua proteção, atendendo suas necessidades particulares.



Implementar políticas e mecanismos de comunicação da consulta latino-americana.



Nos comprometemos a



Trabalhar pela ratificação e cumprimento por parte dos Estados de todos a normativa internacional de direitos humanos.



Trabalhar para que os Estados adotem em suas legislações nacionais e nas políticas públicas, a Declaração das Nações Unidas de 1998, como marco inicial de proteção dos direitos dos defensores e defensoras.

Denunciar a utilização dos aparatos de inteligência do Estado para monitorar, interferir e impedir o trabalho dos defensores e defensoras de direitos humanos.



Denunciar a política de criminalização da manifestação e do protesto social como forma do Estado não cumprir com suas obrigações de garantir os diretos econômicos, sociais e culturais da população.



Exercer o protesto social como legítima forma de reclamar direitos desrespeitados, em concordância com a Declaração das Nações Unidas de 1998.



Solicitar à Comissão Interamericana a realização de uma audiência sobre defensores em seu próximo período de sessões.



Apresentar ante a Comissão Interamericana os informes por países, elaborados para esta Consulta e a Declaração Final dela.



Apresentar ante a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, o Alto Comissariado de Direitos Humanos e a Representante Especial das Nações Unidas para os Defensores de Diretos Humanos, os informes nacionais preparados para a Consulta e a Declaração Final.



Pedir à Representante Especial do Secretário Geral das Nações Unidas para os Defensores de Diretos Humanos que realize um estudo sobre a criminalização da manifestação e do protesto social.

Pedir também à Representante Especial do Secretário Geral das Nações Unidas para os Defensores de Diretos Humanos que revise o procedimento das ações urgentes para manter informados aos peticionários das ações empreendidas.



Pedir à Alta Comissária de Diretos Humanos que respalde adequadamente o mandato da Representante Especial para os Defensores de Diretos Humanos, com maiores recursos humanos e financeiros.

Compartilhar os resultados da III Consulta com a União Européia para que esta organização assuma um rol mais ativo no que se refere à proteção dos defensores e defensoras.



Promover os lineamentos da União Européia sobre defensores de diretos humanos entre os defensores e defensoras da região com o objetivo de que eles possam demandar sua implementação.



Convocar defensores e defensoras a documentarem as violações que sofrem, incluindo os casos de criminalização, para formular denúncias nacionais, regionais e internacionais, definir e impulsionar ações, e propor políticas para enfrentar estas situações.



Juntar-nos à campanha internacional de defensoras de diretos humanos e integrar o tema da proteção das defensoras em nossas atividades.



Continuar a campanha de divulgação da Declaração das Nações Unidas para Defensores em outras redes sociais.



Adotar o pronunciamento sobre o militarismo emitido pelas organizações nesta III Consulta e cujo texto forma parte anexa desta Declaração.



Manter e fortalecer a Consulta Latino-Americana de Defensores de Diretos Humanos como caminho e processo social de articulação, comunicação e solidariedade na defesa e vigência do urgente e digno trabalho que desenvolvemos as defensoras e os defensores de diretos humanos.



Difundir a Declaração Final, acordos e informes da III Consulta em nível nacional, regional e internacional.


São Paulo, 27 de agosto de 2004.


 


Anexo



Pronunciamento das Organizações Frente ao Militarismo


 


Em representação de nossas organizações, reunidos no marco da III Consulta Latino-americana de Defensores e Defensoras de Diretos Humanos, nos dias 25 a 27 de agosto de 2004, em São Paulo, Brasil, realizamos um espaço de diálogo e intercâmbio em torno do fenômeno do militarismo no mundo e em nossa região, o qual vemos como um grave problema que gera violação dos diretos humanos e diretos de dos povos.



Foi de grande preocupação para todos e todas as expressões atuais e passadas da presença militar dos Estados Unidos em diferentes formas e suas fatais conseqüências na vida de nossos povos. Assim, destacamos as bases militares implantadas em Comalapa / El Salvador, Palmerola / Honduras, Malta / Equador, Guantanamo / Cuba, Aruba y Curaçao, como também a contaminação com produtos químicos e explosivos não detonados em Vieques / Porto Rico e no Panamá, operações militares camufladas de assistência social e de gestões de paz, fronteiras militarizadas como México, Colômbia, e Argentina, ocupações, exercícios e intervenções militares, o adestramento e transferência militares e policiais a forças de segurança e exército na região e no hemisfério através de mais de 200 centros de capacitação como a SOA / WHINSEC (a famosa Escola de Assassinos), e a proposta de criar o ILEA (International Law Enforcement Academy), entre outras muitas manifestações desta política dos EUA no mundo.



Dada a gravidade do problema concluímos com a necessidade de: 



1. Abrir entre as organizações um espaço de contato permanente, diálogo, intercâmbio e iniciativas com a idéia de dar seguimento a este problema.



2. Compartilhar informações, análises, estudos e experiências de luta de nossos povos referentes ao militarismo colonial, intervenções militares e todo tipo de manifestação desta política hegemônica que afeta nossos povos.



3. Convidar e motivar outras organizações nacionais e regionais a incluir em suas agendas esta iniciativa.



Concluímos parabenizando as iniciativas semelhantes surgidas no mundo, particularmente em nossa região latino-americana com a expectativa de unir esforços para enfrentar esta grave ameaça.


 


São Paulo, Brasil, 27 de agosto de 2004.

Fonte: Justiça Global
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