15/09/2004

O Governo Lula e as Terras Indígenas, por Marco Paulo Fróes Schettino*

As terras indígenas são um direito das sociedades indígenas que o povo brasileiro reconheceu na Constituição Federal (art. 231). Demarcá-las é um dever legal do Estado e uma responsabilidade ética em saldar, minimamente, a dívida da nação brasileira com os povos indígenas.


 


Essa missão é cumprida, em grande parte, pelo poder executivo. O ápice do procedimento de reconhecimento das terras indígenas é a sua declaração, por meio de portaria do Ministério da Justiça, como sendo de posse indígena. O domínio dessas terras permanece com a União, o que faz as terras indígenas tão nacionais quanto quaisquer outras terras federais, como por exemplo aquelas pertencentes às forças armadas, o que demonstra a má-fé daqueles que alardeiam que as terras indígenas são uma ameaça à soberania nacional.


 


Verdadeiramente as terra indígenas são patrimônio da nação e do povo brasileiro, e a esses presta inúmeros serviços, principalmente ambientais, ao preservar recursos preciosos como a água e a biodiversidade as quais, sob a posse dos “brancos”, estão sendo intensamente destruídos e esgotados.


 


O governo Lula começou sua participação nesse processo histórico de reconhecimento de direitos originários indígenas de forma atabalhoada. Remeteu vários procedimentos de demarcação de terras indígenas, prontos para serem homologados, para a apreciação do Conselho de Defesa Nacional. Como tal procedimento não é imprescindível, e muito menos conveniente, pois foi utilizado no passado como mero artifício protelatório, causou espécie, e o desvio de rota foi rapidamente corrigido, ficando a impressão de tratar-se de simples equívoco do noviciado.


 


O presidente não se furtou ao dever legal e ético em homologar as demarcações de 35 terras indígenas, não deixando acumular sobre sua mesa o trabalho de anos contidos nesses procedimentos iniciados em governos anteriores, restando prontas, já em suas mãos, 17 terras para serem homologadas. Não obstante, não homologou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima, negando direito líquido e certo das etnias Ingaricó, Taurepang, Makuxi, Patamona e Wapixana que há 26 anos lutam pela demarcação de sua terra ao custo da perda de inúmeras vidas. Abriu perigoso precedente ao politizar o sagrado direito à terra, submetendo-o à barganha com os políticos locais, até que se criou condições para que, por meio de liminares, conseguissem na justiça obstruir o reconhecimento dessa terra. Fez-se, então, dessa omissão moeda de troca e oportunidade para reforçar a histórica posição daqueles que invadem e violentam os territórios e as pessoas indígenas no Brasil.


 


Nesse mesmo diapasão, é extremamente preocupante a moratória proposta pelo governador de Mato Grosso – o sojicultor Blario Maggi – em paralisar por dois anos no seu Estado a demarcação de terras indígenas. Apesar da proposta ser absolutamente ilegal e imoral, o governo central dá sinais de complacência ao não implementar naquele mesmo Estado os estudos de identificação da Terra Indígena Sangradouro, aceitando tacitamente a barganha proposta pelo governador aos índios, em trocar o direito à terra por mero assistencialismo.


 


Outro ato assustador foi a redução da Terra Indígena Baú, pertencente aos Kaiapó, reduzida em aproximadamente 307 mil hectares com base numa negociação ilegal onde se propôs aos índios a venda da terra aos municípios vizinhos. A redução foi oficializada, sem qualquer fundamento antropológico, por meio de uma portaria do Ministro da Justiça – N° 1.487, de 8/10/2003 -, e está sendo alardeada como parâmetro para “casos semelhantes” em que as terras indígenas estejam invadidas, um escândalo! Tal ato remete aos anos mais obscuros do indigenismo nacional quando, nas primeiras décadas do século passado, sob a égide do extinto Serviço de Proteção aos Índios, o Estado acomodava esbulho de terras indígenas por meio de barganhas.


 


O governo Lula em 2003 declarou apenas duas novas terras como indígena, posto que a TI Baú foi neste ato reduzida em face da declaração anterior. Comparativamente – vide quadro abaixo – esse é o pior desempenho desde que este ato foi instituído. Pior do que qualquer um dos anos dos antecessores governos Collor, Itamar e Fernado Henrique, e até mesmo, pasmem os incautos, a um governo militar.


 















































Ano


N° de Terras Declaradas


1991


22


1992


40


1993


24


1994


5


1995


3


1996


25


1997


4


1998


23


1999


7


2000


16


2001


19


2002


14


2003


2


*Fonte: Diário Oficial da União


 


No último mandato do regime militar, no governo Figueiredo, entre os anos de 1981 a 1984, foram expedidos 3 decretos em 1981, 16 em 1982, 9 em 1983 e 5 em 1984, portanto, também, superando o atual governo em todos os seus anos.


 


Transcorrido quase dois terços do corrente ano, apenas duas terras foram declaradas como indígena, enquanto sobre a mesa do Ministro da Justiça empoeiram quatorze processos de terras aguardando decisão.


 


Contraditoriamente ao discurso grandiloqüente – e irreal – de que esse governo irá demarcar todas as terras indígenas até a conclusão deste mandato, o governo Lula tem dado provas concretas de descaso para com as terras indígenas.


 


O governo Lula assim permanecendo entrará para a história como o governo que retrocedeu os direitos territoriais indígenas a patamares iguais aos governos agrários do início do século passado, e a patamares muito inferiores aos dos governos próximos passados, inclusive aqueles do regime militar.


 


*Mestre em antropologia pela UnB

Fonte: Marco Paulo Fróes Schettino
Share this: