Carta do bispo do Xingu às autoridades denunciando a situação da região do Alto Xingu que envolve a terra do meio
Altamira, 21 de julho de 2004.
A região do Alto Xingu é considerada a última fronteira agrícola do Pará e é, ao mesmo tempo, a região em que problemas de todo tipo se concentram. Às vezes se assemelha ao faroeste dos filmes de bangue-bangue. A atuação de pistoleiros a mando de ambiciosos grileiros e usurpadores de terras indígenas ou pertencentes à União, assassinatos no campo e na cidade, trabalho escravo ou superexplorado, roubos e assaltos à plena luz do dia, execuções de pessoas “non gratas” em praça pública por motoqueiros protegidos de capacetes fumê, prefeito encomendando a morte de vereador que não reza por sua cartilha, tudo isso e mais outros crimes, na maioria impunes, fazem esta região parecer uma “terra sem lei”.
Sou bispo desta região pois os municípios de São Félix do Xingu, Tucumã e Ourilândia do Norte pertencem à circunscrição eclesiástica da Prelazia do Xingu que tem sua sede em Altamira. Todos os anos passo várias semanas no Alto Xingu e conheço assim os problemas de perto pelo contato direto com o povo e pelos relatos dos Padres e membros de equipes paroquiais, da CPT (Comissão Pastoral da Terra) ou do Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
Tenho pena deste povo sem sossego, continuamente vivendo em sobressalto e banido dos mais elementares direitos que a Constituição Federal outorga a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros. Trata-se em sua grande maioria de famílias que migraram do sul, sudeste e centro do Brasil à Amazônia em busca de condições melhores de vida que hoje estão sofrendo as conseqüências da quase total ausência do estado. A existência dos órgãos judiciários praticamente não se percebe. O policiamento é insuficiente. Diante do alto índice de criminalidade os destacamentos são irrisórios e não amedrontam nenhum criminoso. Além do mais o povo ainda me conta casos vergonhosos de corrupção da parte dos fardados causando a perda de confiança na segurança pública. E, como se não bastasse, esse povo do sul do Pará experimenta meses a fio a dolorosa sensação de total abandono. Basta lembrar o inverno (época das chuvas) que passou. As estradas cortadas, o povo completamente isolado, entregue à própria sorte, abandonado, condenado a morrer por causa de uma doença banal porque não tem acesso a médico, hospital, remédios! Entre os delitos mais preocupantes que se cometem na região enumero os seguintes:
* ocupação desordenada da terra (grilagem)
* desmatamento ilegal
* exploração ilegal de madeira
* trabalho escravo
* superexploração de mão de obra
* tráfico de drogas.
Os casos de trabalho escravo e/ou superexploração de mão de obra já foram amplamente divulgados. O Ministério do Trabalho tomou conhecimento dessa realidade iníqua. Infelizmente, porém, as medidas tomadas pelo Governo não atingiram o alvo. As poucas fiscalizações aconteceram no período em que não há desmatamentos e, por conseguinte, há poucos “peões” nas fazendas. Já que as estradas durante muito tempo se encontram intransitáveis, a Polícia Federal terá que usar de outros meios de locomoção, de preferência helicópteros.
Na já famigerada ?Terra do Meio”, onde se registra o maior número de violência no campo, a fiscalização foi até agora e continua sendo insuficiente permitindo assim que os crimes mais bárbaros se alastrem sem ninguém tomar providências.
As fiscalizações têm que ser realizadas com meios de transporte apropriados (helicóptero, avião) e no tempo em que a incidência de trabalho escravo se torna mais patente pela concentração de “peões” nas fazendas. Isso ocorre exatamente no período de chuvas quando o acesso por estrada é praticamente impossível.
O objetivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) é acompanhar os trabalhadores rurais e assessorá-los na defesa de seus direitos constitucionais.
Ultimamente, porém, os escritórios da CPT são continuamente procurados por pessoas que se sentem prejudicadas em seus direitos trabalhistas.
Registramos em 12 meses 400 consultas da parte de empregados que se sentiram lesados em seus direitos. É quase impossível para um trabalhador ou empregado conseguir seus direitos por causa da distância dos respectivos órgãos e repartições governamentais e do calamitoso estado de conservação das
estradas.
A Justiça do Trabalho mais próxima fica em Conceição do Araguaia a 500 km de São Félix do Xingu e o Posto do INSS em Redenção a 400 km de distância.
Ora, segundo o último censo, o número de habitantes dos municípios de São Félix do Xingu, Tucumã e Ourilândia do Norte juntos é nada menos que 99.546 pessoas. Não é possível que todos esses brasileiros e brasileiras têm que procurar seus direitos e benefícios numa distância de 500 km viajando por estradas em que se arrisca a própria vida.
Já que Tucumã é a cidade mais central dos três municípios, sugiro que seja escolhida o quanto antes como sede para uma Junta e Conciliação e Julgamento da Justiça do Trabalho, uma Delegacia do Trabalho e um Posto do INSS.
Conto, sinceramente, com o empenho de V. Excia. em favor de nosso povo que é tão brasileiro quanto o povo do sul ou sudeste e merece todo o carinho do Governo, talvez até mais por viver em situação tão desprotegida e calamitosa.
Erwin Krautler