Nicarágua – A revolução que não morre
Sergio Ferrari
Um quarto de século depois da chegada dos sandinistas ao poder, o país rebelde ressurge em novas lutas – apesar dos retrocessos impostos por três governos neoliberais e da burocratização da FSLN
Em 19 de julho de 1979, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) derrotava a ditadura somozista, por 40 anos encravada no poder, e abria uma página tão inovadora quanto original da história contemporânea latino-americana. A original cosmovisão sandinista baseava-se em um programa simples e humanista de quatro pilares: economia mista; pluralismo político; não alinhamento internacional e transbordante participação popular – que incluía milhares de cristãos comprometidos.
A expressão “entre cristianismo e revolução não há contradição” converteu-se em uma consigna chave do período. A frase “A solidariedade é a ternura dos povos” indicava um novo sistema de valores – internacionalista para uns, fraterno-universalista para outros. Um quarto de século depois, duas perguntas essenciais nos interpelam: Onde foi parar a Nicarágua? Ainda há lugar para a solidariedade?
A segunda mais triste da América Latina
Outrora um país de sonhos e planos populares, a Nicarágua é hoje a segunda nação mais pobre do continente – apenas à frente do Haiti – e não se diferencia em quase nada dos outros países da região.
Uma em cada quatro pessoas em idade de trabalhar se encaixa no desemprego total. Dois em cada três padecem do desemprego encoberto e fazem pequenas atividades informais. Ter um trabalho formal, mesmo sendo privilégio de poucos, não significa estabilidade nem bonança: 60% da população contam hoje com menos de 3 reais por dia. Enquanto os trabalhadores rurais – em um país onde a agricultura produz 70% da renda nacional – têm salários de R$ 120 mensais, os trabalhadores do Estado oscilam em torno de 250 reais e o setor privado não chega aos 500. A cesta básica de 53 produtos custa atualmente 900 reais.
Desde 1990, o FMI promoveu reduções de salários no setor público de até 44%. Mais de 300 pequenas empresas estatais foram privatizadas nos primeiros cinco anos pós-sandinistas e outras grandes, como a de comunicações (Telcor), que era rentável, sofreram a mesma sorte.
Essa é a dramática realidade de uma nação que importa por ano quase 1,6 bilhões de euros e consegue exportar apenas 600 milhões. E onde os mais de 750 milhões de euros que entram anualmente em forma de remessas familiares, enviadas por trabalhadores nicaragüenses que vivem no Exterior, se convertem, paradoxalmente, na principal renda deste país, reconvertido no paraíso dos privilégios e da polarização social. Só na Costa Rica residem hoje quase um milhão de nicaragüenses – muitos deles em situação ilegal. São parte substantiva de uma torrente incontrolável de emigração econômica que explodiu nos anos noventa.
Com Chamorro, Alemán e Bolaños, a asfixia neoliberal
A revolução durou pouco. Apenas onze anos separaram julho de 79 de fevereiro de 90, quando o sandinismo foi derrotado nas urnas. Instalaram-se, depois, três governos sucessivos, todos neoliberais, encabeçados por Violeta Chamorro, Arnoldo Alemán e Enrique Bolaños — que estará no poder até 2006. Foram quatorze anos de brusco retrocesso, onde os sucessivos “ajustes” receitados pelo FMI e Banco Mundial desmantelaram quase todas as conquistas populares e onde a lógica do mercado triturou a tentativa de democracia participativa sandinista.
Lá vai bem longe a Cruzada Nacional de Alfabetização que, em cinco meses, a partir de agosto de 1979, reduziu o analfabetismo somozista de 53% a 12%. Hoje, novamente, quase 40% das crianças em idade escolar estão fora da escola. Dois de cada três matriculados não concluirão o curso secundário. O analfabestimo remontou a quase 50%.
A saúde pública para todos, baseada na participação cidadã nas grandes campanhas de vacinação preventiva – que eliminou, por exemplo, a paralisia intantil – desmoronou completamente. Retomou-se a lógica da saúde para os ricos e doença para os pobres.
A reforma agrária que, mesmo imperfeita e frágil, beneficiou milhares de camponeses, rendeu-se ao acelerado processo de reconcentração de terras. E a identidade nacional não-alinhada da Nicarágua sandinista descambou para um automático seguidismo das ordens de Washington, com soldados “nicas” apoiando a coalizão no Iraque e com a aposta cega de Manágua em um Tratado de Livre Comércio (TLC) que, sob o império absoluto do dólar, está fadado a duplicar a dependência.
“Novo modelo”, que empurrou 1,3 milhões de pessoas (25% da população) para a miséria total. Não sabem ler nem escrever; não têm acesso aos serviços de saúde, educação e água potável. Padecem desnutrição severa e registram uma expectativa de vida inferior aos 45 anos.
Quando David tentou derrotar Golias
Em 1987, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia condenou o governo dos Estados Unidos a pagar uma indenização em torno de 17 bilhões de dólares em razão de perdas diretas e indiretas sofridas pela Nicarágua na guerra impulsionada pelo governo de Ronald Reagan. A crifra equivalia a 50 anos de exportações, segundo os valores da época, ou 25, segundo os atuais.
Em quase dez anos, o conflito causou não menos de 30 mil vítimas; polarizou ao extremo a sociedade nicaragüense; alterou a lógica política; colocou o inovador programa sandinista na defensiva e condenou a FSLN à derrota eleitoral em 1990. A conseqüência mais grave dessa agressão foi a ruptura profunda o tecido social e o desmanche de uma “utopia realizável” que havia tomado corpo na insurreição de julho de 1979.
A onda dos novos movimentos
Um efeito secundário desse conflito e de seus corolários políticos foi o desgaste profundo da FSLN, que deixou de ser a escolha de referência de toda uma nação para se converter em um partido opositor a mais no jogo democrático formal. Como na maior parte dos países latino-americanos, a classe política – e como parte dela a mesma frente – se fecha cada vez mais em uma minúscula bolha de privilégios, impermeável às necessidades e reivindicações das grandes maiorias.
Diante dessa artereosclerose partidária, novos conflitos e atores sociais despontaram, com vitalidade própria e seus altos e baixos, de forma cíclica. Quase sempre dirigidos por militantes populares dos anos 70 e 80, mas agora sem o apoio orgânico partidários nem orientações de cima para baixo. Capitalizam a experiência participativa do sandinismo e sua raiz questionadora, mas sem preocupar-se muito com o atual papel passivo, na maioria dos casos, de uma estrutura partidária verticalista.
Mobilizações camponesas por terra e trabalho acontecem em Matagalpa, rica região exportadora de café onde, hoje, um em cada três habitantes sofre de desnutrição. Ex-trabalhadores das transnacionais bananeiras, afetados pelo Meganón e outros químicos – que mataram alguns deles – acampam por semanas em frente ao Parlamento nacional para exigir reparações. Grandes protestos contra as tentativas de privatização da água se multiplicam, especialmente na capital. São constantes e reiteiradas as lutas estudantis reivindicando 6% do produto nacional para o setor. Há massivas mobilizações cidadãs contra a corrupção e pelo julgamento de altos funcionários públicos – entre eles o ex-presidente Arnoldo Alemán – envolvidos em numerosos crimes contra o dinheiro público.
Ternura para recriar solidariedade
Duas dezenas de militantes internacionalistas perderam suas vidas na Nicarágua durante a década sandinista. Na maioria dos casos, como produto de ações militares dos grupos contra-revolucionários. Por trás dessas vítimas, estavam os milhares de brigadistas e ativistas solidários que chegavam à Nicarágua. E um interminável tecido de comitês, irmanamentos de cidades, movimentos e grupos cristãos, ONGs, associações, comunidades e sindicatos que multiplicaram sua solidariedade com a revolução sandinista, canalizando-a, geralmente por meio da FSLN ou de entidades governamentais.
A Nicarágua precisou de 20 anos para voltar, em 2002, ao mesmo nível de vida pós-insurreição e pré-guerra de 1982, que estava muito longe de ser florescente. A realidade econômico-social é tão dramática como naquela época. A guerra foi sucedida por um modelo econômico de exclusão tão criminoso quanto a estratégia bélica dos anos 80. É argumento suficiente para fazer pensar na pertinência de um renovado apoio ativo. A ternura entre os povos significa hoje o desafio de reconstruir a solidariedade. Há um obstáculo maior: não existe agora uma proposta de nação sedutora, única e atraente, como aquela proposta pelo sandinismo. Mas há um elemento-chave favorável. Lentamente, multiplicam-se novos atores e lutas sociais, filhas diretas da experiência dos anos 80, mas com uma renovada automia e distante de toda rigidez dogmática.
Depois tantas perdas, reconstruir a solidariedade implica, antes de tudo, repensá-la. E prinicipalmente identificar e apoiar estes novos atores e experiências sociais – estejam no mundo cristão, no mundo da comunicação alternativa, nas associações de bairro e camponesas. Adicione-se um elemento importante: à luz do novo movimento alter-mundialista que cresce, a lógica da solidariedade internacional exige novos conceitos e práticas: muito mais horizontais, de ida e volta, de intercâmbios recíprocos e construção mútua; de fortalecimento de redes. É um exercício tão desafiante quanto inovador. E sobretudo, portador de utopia renovada.
A Igreja dos Pobres: onde estão todos agora?
Vinte e cinco anos depois da vitória sandinista, o setor progressista da igreja nicaragüense (A Igreja dos Pobres), mesmo que fortemente dizimado pelo refluxo popular, prossegue em uma desigual batalha cotidiana. O Centro Valdivieso, dirigido pela psicóloga Marta Cabresa e pela poeta Michelle Najlis, agrupa intelectuais cristãos que participaram da Revolução. O Instituto Histórico jesuíta, integrado atualmente pela Universidade Centroamericana (UCA) continua produzindo a revista Envio, ponto de referência inquestionável para a análise crítica da região. O outrora centro de Estudos e Promoção Agrária (CEPA) deu origem a um pequeno grupo dedicado aos medicamentos alternativos. O Comitê Ecumênico Pró-Ajuda ao Desenvolvimento (CEPAD) continua trabalhando com projetos de desenvolvimento, ao passo que o outrora Eixo Ecumênico – dirigido pelo pastor José Miguel Torres – desapareceu há vários anos.
As então expansivas Comunidades de Base, muito reduzidas, constituem hoje uma coordenação de existência real e o Bloco Intercomunitário, na zona camponesa Norte, mantém sua pujança.
Três sacerdotes progressistas – assim como numerosos laicos – participaram nos anos 80 do governo sandinista, criando uma inusual irritação do Vaticano. Ernesto Cardenal, ex-ministro da Cultura que rompeu com a direção da Frente e passou a se dedicar quase integralmente à literatura, acaba de escrever “A Revolução Perdida”. Seu irmão, Fernando, responsável pela Cruzada de Alfabetização e ex-ministro da Educação, reintegrou-se aos Jesuítas logo após sua expulsão, decretada por Roma. Recomeçou do zero, repetiu sua formação e hoje dirige “Fé e Alegria”, importante organização educativa. Coordena a celebração, em agosto próximo, do 25ºaniversário da referida cruzada. Miguel D´Escoto, ex-chanceler durante o sandinismo, sempre se manteve ligado à ordem Mariknoll e continua sendo militante da FSLN e assessor próximo de seu secretário geral e ex-presidente Daniel Ortega.