21/06/2004

A saúde indígena merece um tratamento melhor do atual governo

A grave crise que acomete os programas de atenção à saúde indígena, e que vem sendo denunciada pelas principais organizações indígenas e por seus aliados, não é nenhuma novidade para quem acompanha de perto a construção do chamado “Sub-Sistema de Saúde Indígena” no passado recente de nosso país. A grande surpresa fica por conta das expectativas frustradas de todos os que acreditavam e esperavam que a chegada ao poder de um governo popular, de fortes compromissos históricos com a reforma sanitária e com o movimento indígena, iria proporcionar um ambiente mais favorável às urgentes mudanças que se fazem necessárias.

A implantação de um modelo de gestão diferenciado para a saúde indígena, a partir dos preceitos constitucionais da responsabilidade federal, do respeito às especificidades etno-culturais, e da universalização, eqüidade e democratização da assistência, sempre foi considerada uma utopia distante e improvável por quem não conhece a força e a tenacidade do movimento indígena em nosso país. A segunda Conferência de Saúde Indígena em 1993 deu um exemplo valioso de unidade e de consistência, ao estabelecer princípios sólidos e viáveis para este modelo, baseado na implantação de Distritos Sanitários Especiais Indígenas ligados diretamente ao Ministério da Saúde, com autonomia administrativa e financeira, e controle social indígena exercido através de conselhos de saúde atuantes em todos os níveis de gestão do sistema.

Finalmente em 1999 o governo federal deu o ponto de partida para a concretização desta proposta, permitindo a aprovação pelo Congresso Nacional da chamada “Lei Arouca”, como conseqüência de uma pressão crescente em todo o país e da participação decisiva do Ministério Público Federal, cobrando a omissão e a inconstitucionalidade da situação vigente. A forma de viabilizar a execução das ações nos distritos, considerada a única possível pelo governo na época, baseou-se em um modelo híbrido que incluía assistência direta pela Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, ou o estabelecimento de parcerias deste órgão com organizações indígenas, não-governamentais, de ensino e religiosas, ou com Prefeituras Municipais, de acordo com a situação local.     

A Terceira Conferência Nacional de Saúde Indígena realizada em 2001 reconheceu os importantes avanços que a criação do sub-sistema proporcionou, mas apontou graves distorções nos programas em execução, propondo mecanismos mais eficazes no sentido de assegurar que a autonomia e o controle social pudessem se realizar de forma efetiva no seio dos distritos. O documento final da Conferência prevê a continuidade das parcerias com organizações indígenas, não-governamentais e com prefeituras municipais, a critério de cada conselho distrital, exercidas em caráter complementar e de forma paralela ao indispensável fortalecimento do órgão gestor da saúde indígena ligado diretamente ao Ministério da Saúde.

Esta tem sido a postura adotada pelas chamadas “instituições parceiras” do governo federal na saúde indígena desde que foram convidadas a assumir este desafio. Nos inúmeros documentos elaborados em reuniões realizadas regularmente com a FUNASA nos anos anteriores, as organizações sempre alertaram para a fragilidade dos mecanismos adotados, apresentando propostas no sentido de aprimorar a capacidade de gestão do governo federal. Infelizmente, a atual coordenação do Departamento de Saúde Indígena – DESAI/FUNASA, decidiu atribuir todo o ônus das falhas acumuladas às organizações parceiras, reforçando a enorme campanha que as mesmas vem sofrendo por parte das forças anti-indígenas nos âmbitos regionais.

Durante a atual gestão do Dr. Ricardo Chagas, iniciada em abril de 2003, nenhuma reunião bilateral com as organizações parceiras foi realizada. Além do diálogo interrompido, agravaram-se os problemas de atraso de recursos, entraves burocráticos, e falta de solidariedade na solução dos impasses estabelecidos. Os avanços que se esperavam, com a gradual retomada da capacidade gestora do órgão responsável e a redefinição dos mecanismos e parâmetros das parcerias, de forma a assegurar a continuidade da assistência e os inegáveis progressos obtidos em muitos setores, definitivamente não aconteceram. A deterioração da situação de saúde nas comunidades é a conseqüência natural, e só não é mais grave devido à extraordinária dedicação e espírito de sacrifício demonstrado por um grande número de profissionais que se dedicam à causa indígena, independente das mazelas ideológicas e administrativas.

O anunciado Seminário sobre Gestão da Saúde Indígena, prometido, marcado e desmarcado inúmeras vezes pelo DESAI após as solicitações encaminhadas pelas organizações parceiras desde o início da atual gestão, de acordo com o documento que o convoca para o início de fevereiro de 2004, prevê a participação além dos coordenadores regionais, chefes de distrito, técnicos e consultores da FUNASA, apenas dos “presidentes das ONGs”. Levando em conta que a maioria destas ONGs que mantém convênios com a FUNASA são organizações indígenas, rompe-se uma praxe da administração anterior de convidar sempre os dirigentes indígenas e os responsáveis técnicos dos projetos, considerada indispensável para uma discussão desta importância.

Enquanto no nível central do governo, e em grande parte do Ministério da Saúde, como se vê no temário central da chamada “Conferência Arouca”, a bandeira da Gestão Participativa vem se fortalecendo e ganhando contornos inovadores, na gestão da Saúde Indígena se assiste a um inegável retrocesso, que provavelmente se traduzirá em um futuro próximo no agravamento da crise já instalada, penalizando mais uma vez os sacrificados povos indígenas de nosso país e suas sofridas comunidades.

Paulo Daniel Moraes
Coordenador médico do Conselho Indígena de Roraima

Fonte: CIR
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