Gasoduto na Terra Indígena Tupinikim de Comboios, por Paulo Machado Guimarães
I. Consulta
A comunidade indígena Tupinikim, da aldeia de Comboios consulta sobre a legitimidade da Petrobrás construir e manter um gasoduto nos limites da terra que tradicionalmente ocupam, em uma extensão de cerca de 20 km, sem que atos legislativo e administrativo quaisquer tenham sido praticados pelo Poder Público federal.
Esclarecem que o gasoduto foi construído em 1983, estando completando 21 anos de turbação da posse indígena sobre a terra que tradicionalmente ocupam.
Na Terra Indígena Caeiras Velhas o mesmo gasoduto foi construído, na mesma época. No entanto, em 16 de setembro de 1988, o Presidente José Sarney editou o Decreto nº 96.709, por intermédio do qual foi “concedida autorização à Petróleo óleo Brasileiro S/A – Petrobrás, para construir um gasoduto numa faixa de terra com a área de 18.544,90 m2, aproximadamente, situada na Área Indígena Caeiras Velhas, no Município de Aracruz, no Estado do Espírito Santo…”.
O art. 3º desse Decreto nº 96.709/88 estabelece ainda que a Petrobrás “indenizará a comunidade indígena dos prejuízos que venha a causar em decorrência da utilização da faixa de terra, competindo ao órgão federal de assistência ao silvícola, de comum acordo com a interessada, a fixação do valor da indenização”.
II. Resposta
Na vigência da Constituição Federal de 1967/1969, o art. 198 considerava nulos e extintos, os efeitos jurídicos dos atos que visassem a posse, a ocupação e o domínio das terras ocupadas pelos índios.
O art. 20 da Lei nº 6.001/73, embora com grave vício de inconstitucionalidade, previa que em caráter excepcional a União poderia intervir, se não houvesse solução alternativa, em área indígena, por decreto do Presidente da República.
A intervenção a que se referia o art. 20 do Estatuto do Índio, já que esse dispositivo não foi recepcionado pelo texto constitucional de 1988, poderia ser decretada, dentre outras hipóteses, “para a realização de obras públicas que interessam ao desenvolvimento nacional” e para “a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional”.
Ocorre que no caso de Caeiras Velhas, a Presidência da República sequer utilizou esse dispositivo inconstitucional. A União preferiu concedera autorização à Petrobrás, como se o tratamento dispensado às terras indígenas fosse de uma área pública da União, sem qualquer destinação constitucionalmente específica.
Disso resulta que o Decreto 96.709/88 consiste em ato administrativo nulo, por atentar contra os direitos constitucionais dos índios Tupinikim à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes na terra por eles ocupada.
Da mesma forma é o que ocorre na Terra Indígena Comboios. No caso inclusive com o agravante do Poder Público federal ter se preocupado em editar qualquer ato, por mais viciado que fosse. Agiu, por intermédio de uma de suas mais relevantes e importantes empresas, em completa desconsideração aos direitos possessórios dos índios Tupinikim, assegurados pela Constituição Federal de 1967/69 e pelo atual texto constitucional de 1988, que na espécie reproduziu as garantias constitucionais do ordenamento constitucional anterior.
Com efeito, a ocupação de cerca de 20 km de extensão, nos limites da terra indígena Comboios com o litoral do Estado do Espírito Santo constitui-se em ato ilícito, por atentar contra as garantias constitucionais da comunidade do Povo Tupinikim, na medida em que suprime dos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo do trecho de terra em que o gasoduto foi colocado a um metro e vinte centímetros de profundidade.
A única hipótese em que um gasoduto dessa natureza, poderia ser construído validamente numa terra tradicionalmente ocupada por índios seria quando fosse previsto em Lei Complementar, que disponha ser essa construção e a atividade correspondente, ato de relevante interesse da União, nos termos da exceção prevista no § 6º do art. 231 da Constituição Federal.
Como essa Lei Complementar não existe, mesmo porque seu projeto tramita na Câmara dos Deputados de forma extremamente morosa, não obstante já ter sido aprovado pelo Senado Federal, cuja Mesa Diretora teve a iniciativa de apresentar esse projeto de lei complementar, não existe a menor possibilidade de um gasoduto da Petrobrás ser construído ou mantido numa terra indígena sem que o texto constitucional seja violentado.
III. Conclusão
Do exposto, conclui-se que o gasoduto construído e instalado nas terras indígenas de Comboios e Caeiras Velhas representa um ato ilícito da Petrobrás, por limitar a posse permanente e constranger o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo dessas terras pelos índios que as ocupam tradicionalmente.
Em razão dessa ilicitude, por violação constitucional:
1. o gasoduto deve ser retirado das terras indígenas de Comboios e de Caeiras Velhas, por iniciativa da Petrobrás ou em razão de determinação judicial, em ação judicial do Ministério Público Federal, das próprias Comunidades Indígenas, já que os direitos indígenas sobre suas terras, nos termos do que estabelece o § 4º do art. 231 da CF, não está prescrito;
2. a Petrobrás deverá indenizar as comunidades indígenas de Comboios e de Caeiras Velhas, pelos danos causados pelo uso indevido de trecho de suas terras,pelo prazo de 21 anos.
S.M.J.
Santa Cruz – ES, 01 de Fevereiro de 2004
Paulo Machado Guimarães
Advogado inscrito na OAB-DF sob o nº 5.358
Assessor Jurídico do Conselho Indigenista Missionário – CIMI