Inadequações da atual legislação de Radiofusão Comunitária aplicada a Comunidades Indígenas – Considerações Preliminares, por Rosane Lacerda
Sumário
Introdução.
I. Comunidades Indígenas e Radiodifusão Sonora Comunitária.
I.1. Legislação de RadCom.
I.2. Alguns aspectos:
a) Natureza da área a ser atendida.
b) Raio de abrangência das transmissões.
c) Destinatários da outorga do serviço.
I.3. Importância para as Comunidades Indígenas.
I.4. Aspectos constitucionais.
I.5. Inadequações da legislação de RadCom no caso das Comunidades Indígenas:
a) Concepção voltada para o espaço urbano.
b) Limite do raio de cobertura das transmissões.
c) As “associações” como titulares da outorga.
d) Exigência de apoio de entidades sediadas na área pretendida.
II. Comunidades Indígenas e Radiodifusão Comunitária de Som e Imagem.
II.1. Legislação de TV Comunitária.
II.2. O Projeto de Lei n.º 2..701/97.
III. Conclusão.
Bibliografia.
Introdução.
Tem sido evidente nos últimos anos, sobretudo na década de 90, as conquistas das comunidades locais e grupos representativos da sociedade civil organizada no que diz respeito às possibilidades jurídico-legais de utilização de veículos de comunicação social via radiodifusão.
De uma situação de absoluta clandestinidade, com suas conseqüências muitas vezes policiais, logrou-se, no campo da comunicação sonora e de imagens a previsão, na Lei n.º 8.977, de 6 de janeiro de 1995 que dispõe sobre o Serviço de TV a Cabo, da existência de “canais básicos de utilização gratuita”, entre os quais “um canal comunitário aberto para a utilização livre por entidades não governamentais e sem fins lucrativos” (art. 23, I, g).
Pouco mais tarde, no campo da comunicação sonora, logrou-se também a aprovação da Lei n.º 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, pela qual se instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária.
Em que pese a importância de tais diplomas no âmbito de uma comunicação alternativa, não comercial, a legislação de radiodifusão comunitária ainda encontra-se limitada em seus avanços. Primeiro, quanto aos regramentos específicos que traz às duas modalidades contempladas (a rádio comunitária e o canal comunitário de TV a Cabo), com insuficiências e incongruências no nível de sua respectiva regulamentação. Segundo, pelo fato de deixar a descoberto outras formas possíveis de radiodifusão comunitária, a exemplo do sistema aberto de TV.
Pretendemos aqui fazer algumas considerações preliminares ao que compreendemos por limitações e inadequações desta legislação no que se refere à sua aplicação a um potencial e específico segmento de usuários do sistema: as Comunidades Indígenas.
Neste sentido, passaremos a analisar a legislação de radiodifusão comunitária e seus instrumentos reguladores à luz tanto das especificidades sócio culturais indígenas quanto da legislação indigenista em vigor.
I. Comunidades Indígenas e Radiodifusão Sonora Comunitária.
I.1. Legislação de RadCom.
A radiodifusão sonora de caráter comunitário, também chamada “rádio comunitária”, embora viesse sendo operada com cada vez mais intensidade em diversos pontos do país por organizações comunitárias locais, sem fins lucrativos, só veio a ser objeto de normatização a partir da Lei n.º 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária.
Juntamente com a Lei n.º 9.612/98, constituem diplomas normativos básicos do Serviço de Radiodifusão sonora Comunitária o Decreto n.º 2.615, de 03 de junho de 1998, que aprovou o Regulamento do Serviço, e a Norma Complementar n.º 02/98, aprovada pela Portaria n.º 191, de 06 de agosto de 1998, do Ministro das Comunicações.
Além destes, destacam-se ainda os seguintes diplomas normativos editados posteriormente: a Portaria n.º 83, de 19 de julho de 1999, que dá nova redação aos itens 6.1, 6.6, 6.7, inciso X, 10.9, 11.2, 11.4, 14.2.7.1.1, 14.2.10, 14.3.1, 14.4.3, 14.4.4 e 15.3, inciso IV, e inclui o item 14.4.12, da Norma Complementar n.º 02/98; a Portaria n.º 131, de 19 de março de 2001, que aprova o termo de liberação de funcionamento do Serviço de Radiodifusão Comunitária; a Medida Provisória n.º 2.143-32, de 02 de maio de 2001, que dispõe sobre a expedição, pelo Poder Concedente, de licença de funcionamento, em caráter provisório, até a apreciação do ato de outorga pelo Congresso Nacional; a Portaria n.º 244, de 08 de maio de 2001, que altera o subitem 7.1.1 da Norma 2/98, e dispõe sobre a emissão de licença de funcionamento em caráter provisório; a Medida Provisória n.º 2143-33 de 31 de maio de 2001 (reedição) que dispõe sobre a expedição de autorização de operação, em caráter provisório, até a apreciação do ato de outorga pelo Congresso Nacional; a Lei n.º 10.597, de 11 de dezembro de 2002, que altera o parágrafo único do art. 6º da Lei nº 9.612, de 19/02/1998, para aumentar o prazo de outorga; e a Portaria n.º 83 de 24 de março de 2003, realiza todos os atos necessários à instrução, ao saneamento e ao desenvolvimento dos processos relativos aos pedidos de autorização para os Serviços de Radiodifusão Comunitária.
Mencione-se, ainda, a Portaria n.º 92, de 02 de abril de 2003, do Ministro das Comunicações, que instituiu o Grupo de Trabalho em caráter emergencial e extraordinário para a instrução, saneamento e desenvolvimento dos processos em andamento relativos aos pedidos de autorização para os Serviços de Radiodifusão Comunitária, e que teve os seus trabalhos concluídos e encerrados em julho de 2003.
I.2. Alguns aspectos.
Pensado como instrumento de comunicação para comunidades locais, o serviço de radiodifusão sonora comunitário foi definido, no caput do art. 1.º da Lei 9.612/98, como sendo de “cobertura restrita”. Sobre a expressão destacam-se dois aspectos: natureza da área a ser atendida e raio de abrangência das transmissões.
a) Natureza de área a ser atendida.
Uma primeira observação é de que a Lei n.º 9.612/98, ao definir em que consistiria a referida “cobertura restrita”, acabou limitando o serviço de radiodifusão sonora comunitária ao âmbito das áreas urbanas, como se vê na redação dada pelo § 2.º de seu art. 1.º:
“Entende-se por cobertura restrita aquela destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila.” (Grifamos.)
Pouco depois o Decreto n.º 2.615/98 veio a acrescentar, no conceito de cobertura restrita, a expressão “localidade de pequeno porte”:
“Art. 6º A cobertura restrita de uma emissora do RadCom é a área limitada por um raio igual ou inferior a mil metros a partir da antena transmissora, destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro, uma vila ou uma localidade de pequeno porte.” (Grifamos.)
Esta referência a localidade de pequeno porte poderia implicar na abrangência de comunidades não urbanas na área de cobertura das transmissões. No entanto, a visão da área coberta pelo sistema de radiodifusão sonora comunitária como algo de natureza essencialmente urbana vem a ser reforçada pela Norma Complementar n.º 02/98, que define localidade de pequeno porte como sendo (Item 3.II):
“toda cidade ou povoado cuja área urbana possa estar contida nos limites de uma área de cobertura restrita.” (Grifamos.)
Nos parece então, que a legislação atual que dispõe sobre o serviço de radiodifusão sonora comunitário esteja voltada exclusivamente para as realidades das comunidades urbanas, sejam estas de grandes cidades ou de pequenos povoados.
b) Raio de abrangência das transmissões.
Um segundo aspecto a ser observado é o do raio de alcance das transmissões da radiodifusão sonora comunitária.
A Lei n.º 9.612/98 em nenhum momento impõe qualquer tipo de limite à área coberta. As restrições que faz (art. 1.º, § 1.º) resumem-se à potência de operação, que limita ao máximo de 25 watts ERP, e à altura do sistema irradiante, ou seja, da antena transmissora, que determina seja não superior a 30 metros. Também não há na definição de cobertura restrita, vista anteriormente, qualquer previsão de limites ao raio de abrangência das transmissões.
Contudo, veio o Decreto n.º 2.615/98 a introduzir limitação à área de cobertura das transmissões, estabelecendo para tanto um raio de até mil metros, ou seja, 1 km, tendo como base a antena transmissora:
Art. 6.º A cobertura restrita de uma emissora do RadCom é a área limitada por um raio igual ou inferior a mil metros a partir da antena transmissora, (…).” (Grifamos.)
Assim, enquanto que na Lei n.º 9.612/98 a expressão “cobertura restrita” é entendida como aquela necessária ao atendimento de determinada comunidade (de bairro ou vila), independentemente de seu tamanho, no Decreto n.º 2.615/98 “cobertura restrita” é entendida como a área à qual se limita o raio de alcance das transmissões, determinado em mil metros a partir da antena transmissora.
Ou seja, o Decreto não só produziu uma mudança conceitual em relação ao significado de “cobertura restrita”, como também estabeleceu um limite – bastante estreito, por sinal – para a área de atendimento pelo Serviço de radiodifusão sonora comunitária.
Observe-se que em razão dessa limitação, os deputados Fernando Ferro, Milton Mendes e Jacques Wagner apresentaram à Câmara Federal o Projeto de Decreto Legislativo n.º 698/98, prevendo a revogação, entre outros, do citado dispositivo. Conforme consta na “justificativa” do Projeto,
“por este artigo, o alcance da rádio será de uma circunferência com raio de mil metros. É uma clara exorbitância à Lei 9.612/98, uma vez que tal restrição não faz parte da legis referida. Cabe observar que, quando da discussão nesta casa do Projeto de Lei 1.532/96, que deu origem à Lei 9.612/98, uma das propostas era esta, que a rádio comunitária cobrisse um raio de, no máximo, mil metros. Ora, o assunto foi debatido exaustivamente até que tal proposta foi descartada. Em outras palavras, o Congresso, instituição responsável pela elaboração das leis deste país, rejeitou a possibilidade de limitação do alcance das rádios a mil metros de raio. Ao introduzir, através de Decreto, tal restrição, o Executivo achincalha com os membros desta Casa, tornando inócuos os debates aqui realizados e as decisões tomadas. Enfim, o Executivo assume o papel – que não lhe cabe – de elaborador de leis. Razões técnicas, políticas, sociais, fizeram com o Congresso, após debater a questão, descartasse uma cobertura máxima de mil metros para as emissoras. Não cabe ao Executivo impor a população uma norma que o Legislativo ponderou e resolveu eliminá-la. Por este motivo, o Artigo 6.º deve ser excluído do Decreto 2.615/98.” (Grifamos)
Conforme observado acima pelos parlamentares, a exigência de limitação das transmissões ao raio de mil metros não encontra amparo legal. Por outro lado, condiz tal limitação com a concepção vista anteriormente, de radiodifusão sonora comunitária voltada para os espaços essencialmente urbanos, seja de bairros, vilas ou povoados.
Ainda nos termos do Decreto n.º 2.615/98 (art. 8.º, II), a cidade ou povoado que tenha área urbana adstrita à circunferência de mil metros como limite máximo permitido para o alcance das transmissões, recebe a denominação de “localidade de pequeno porte”:
“Localidade de pequeno porte: é toda cidade ou povoado cuja área urbana possa estar contida nos limites de uma área de cobertura restrita;” (Grifamos.)
Para estas “localidades de pequeno porte” a Norma Complementar n.º 02/98 prevê a operação de apenas uma emissora de rádio comunitária. Ou seja, em comunidades de espaço urbano limitado ao raio de mil metros, só é possível a operação de uma única estação transmissora.
Nos casos de espaço urbano superior ao raio de mil metros, o item 6.1 da Norma Complementar, com a redação dada pela Portaria n.º 83/99, do Ministério das Comunicações, prevê a possibilidade de operação de mais de uma emissora:
“6.1 Em localidades que não se enquadrem como de pequeno porte, nos termos do inciso II, do art. 8º do Decreto nº 2.615, de 3 de junho de 1998, poderá ser admitida mais de uma emissora, desde que atendido o disposto no item 14.2.10.” (Grifamos.)
Esclareça-se que o mencionado item 14.2.10 da Norma Complementar n.º 02/98 é o que estabelece que a separação mínima entre duas estações de rádio comunitária deverá ser uma relação de proteção de no mínimo 25 dB, nas áreas de prestação de serviço delimitadas pelo contorno de 91 dBµ.
c) Destinatários da outorga do Serviço.
Em terceiro lugar, cumpre observar quanto a quem a lei atribui legitimidade para operar o serviço de radiodifusão sonora comunitária.
Prevê a Lei n.º 9.612/98 que podem operar no sistema, com a devida outorga de concessão por parte do poder público, pessoas jurídicas sem fins lucrativos, tenham estas a forma de associações comunitárias ou de fundações (art. 1.º, caput). Tais pessoas jurídicas devem estar, conforme determina o art. 7.º da Lei,
“… legalmente instituídas e devidamente registradas, sediadas na área da comunidade para a qual pretendem prestar o Serviço, e cujos dirigentes sejam brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos.”
Exige também a Lei n.º 9.612/98 (art. 8.º) seja criado, no âmbito da pessoa jurídica autorizada a explorar o Serviço,
“… um Conselho Comunitário, composto por no mínimo cinco pessoas representantes de entidades da comunidade local, tais como associações de classe, beneméritas, religiosas ou de moradores, desde que legalmente instituídas, com o objetivo de acompanhar a programação da emissora, com vista ao atendimento do interesse exclusivo da comunidade e dos princípios estabelecidos no art. 4º desta Lei.” (Grifamos.)
Importante também observar a exigência, pelo art. 9.º § 2.º da Lei n.º 9.612/98, de apresentação pelas entidades interessadas no prazo de habilitação para a execução do Serviço, dos seguintes documentos, relacionados à comprovação da regularidade da situação jurídica da entidade, à situação de seus membros diretores:
“I – estatuto da entidade, devidamente registrado;
II – ata da constituição da entidade e eleição dos seus dirigentes, devidamente registrada;
III – prova de que seus diretores são brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos;
IV – comprovação de maioridade dos diretores;
V – declaração assinada de cada diretor, comprometendo-se ao fiel cumprimento das normas estabelecidas para o serviço;” (Grifamos)
De se observar também, entre os documentos exigidos, a comprovação do apoio expresso de entidades sediadas na área pretendida para a prestação do serviço:
“VI – manifestação em apoio à iniciativa, formulada por entidades associativas e comunitárias, legalmente constituídas e sediadas na área pretendida para a prestação do serviço, e firmada por pessoas naturais ou jurídicas que tenham residência, domicílio ou sede nessa área.” (Grifamos.)
I.3. Importância para as Comunidades Indígenas.
No final dos anos 70 e início dos 80, o velho “gravador do Juruna”, apesar do modo caricato como era tratado na mídia, chamava a atenção enquanto veículo de informação para a comunidade Xavante que passaria a ouvir, testemunhar e assim, ao menos teoricamente, poder cobrar, as “promessas de branco”, geralmente não cumpridas.
Nos anos 90 algumas comunidades indígenas, passando a ter acesso a equipamentos de produção áudio-visuais, demonstraram um grande potencial de utilização deste material como forma de registro e divulgação de suas práticas e valores culturais, geralmente para consumo interno, no espaço das próprias aldeias.
Atualmente grande quantidade de comunidades indígenas em todo o país possui aparelhos de rádio, através dos quais sintonizam as programações radiofônicas emitidas por estações locais ou regionais.
Contudo não existe, ainda, uma prática corrente de produção própria e transmissão voltada para o interior das terras indígenas. Em outras palavras, têm sido bastante raras as notícias de utilização, por Comunidades Indígenas, das chamadas rádios comunitárias. Recentemente imprensa divulgou a existência de duas implantadas no Mato Grosso do Sul, e de uma projetada para o Tocantins (Krahô). Em Pernambuco, o Povo Xukuru também já se manifestou no sentido de que pretende ter a sua própria rádio comunitária. Observe-se que as poucas rádios de que se tem notícia operam ainda na informalidade, uma vez que não foram submetidas aos regramentos impostos pela legislação de radiodifusão sonora comunitária.
Esta pouca incidência da utilização das rádios comunitárias pelas Comunidades Indígenas no Brasil não pode ser vista, entretanto, como decorrência de uma suposta pouca importância do uso deste tipo de veículo para tais Comunidades.
Cremos que a falta de informação, a falta de familiaridade com determinados trâmites burocráticos requeridos pela legislação, as inadequações desta à realidade indígena, e a dificuldade de acesso a recursos para a aquisição de equipamentos podem explicar, em parte, essa subutilização do sistema pelas Comunidades Indígenas.
No entanto, em linhas breves, pode se dizer que a utilização das rádios comunitárias pode ser tão ou mais importante para as Comunidade Indígenas do que para determinadas comunidades urbanas não-indígenas.
A “DECLARAÇÃO DE MILÃO SOBRE A COMUNICAÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS” , aprovada em 29 de agosto de 1998 pela 7ª Conferência Mundial da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC) realizada naquela cidade italiana entre os dias 23 e 29 de agosto daquele ano, incluiu em seus termos o reconhecimento expresso da importância dos meios de comunicação social para as comunidades indígenas:
“5. Os direitos dos povos indígenas devem ser respeitados em consideração às suas lutas para conseguir acesso à participação nos meios de comunicação.
6. Os meios de comunicação têm a responsabilidade de ajudar a manter a diversidade cultural e lingüística no mundo e apoiá-la através de medidas legislativas, administrativas e financeiras.
7. Os meios de comunicação podem desempenhar um papel importante reforçando os direitos culturais e, em particular, os direitos lingüísticos e culturais das minorias; dos povos indígenas, dos imigrantes e refugiados, facilitando-lhes o acesso aos meios de comunicação.” (Grifamos.)
Embora a Declaração restrinja-se à contribuição das rádios comunitárias ao respeito e manutenção da diversidade cultural e lingüística, o certo é que a sua importância vai muito mais além, podendo ser um valioso instrumento informativo e formativo para aquelas comunidades.
A conscientização acerca dos seus direitos, o fortalecimento de sua organização social, o resgate de suas memórias históricas, a valorização de sua identidade étnica, o estímulo à mobilização para a participação em assuntos de interesse coletivo, tudo isso são conteúdos que podem ser enormemente potencializados a partir da utilização da radiodifusão sonora comunitária no âmbito das Comunidades Indígenas.
I.4. Aspectos constitucionais.
Antes de qualquer consideração a respeito da aplicabilidade da legislação atual em radiodifusão comunitária à realidade indígena, necessário se faz ter como ponto de partida a observação quanto às bases constitucionais do direito de acesso à informação em sua relação com esta realidade específica.
Diz a Constituição Federal de 1988, em seu art. 220, que:
“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” (Grifamos.)
Ou seja, os limites serão unicamente aqueles fixados pelo próprio texto constitucional. E uma das restrições impostas constitucionalmente reside na subordinação do serviço de radiodifusão ao ato de outorga pela Administração Pública:
“Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observando o princípio da complementariedade dos sistemas privado, público e estatal”.
Neste sentido é que se insere a Legislação relativa ao serviço de radiodifusão sonora comunitária, normatizando e regulamentando o procedimento de outorga pelo Executivo.
Há no entanto que considerar, no que se refere aos Povos e Comunidades Indígenas, a incidência do princípio da autonomia frente ao Estado Brasileiro, e do grau de interferência deste princípio nos limites infra-constitucionais aplicáveis ao tema em questão.
Reza o art. 231, caput, da Carta Política de 1988:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (Grifamos.)
Ou seja, sobre o espaço físico das terras de ocupação tradicional, que são bens da União Federal (CF/88, art.20, inc. XI), as comunidades indígenas possuem os direitos originários, imprescritíveis, exclusivos e indisponíveis de posse permanente e usufruto das riquezas do seu solo, rios e lagos (CF/88, art. 231, §§ 2.º e 4.º).
Sobre tal espaço físico a Constituição reconhece aos índios o direito ao pleno exercício de suas formas próprias de organização social, sem qualquer perspectiva de sua incorporação ou integração à comunhão nacional brasileira, determinando, pelo contrário, se deva proteger e respeitar os seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como quaisquer outros dos seus bens, materiais ou imateriais (CF, art. 231, caput).
De oportuno, vale registrar a observação de GUIMARÃES (1999 : 541/542):
“Ao reconhecer aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, atribuindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens, a Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988, no caput do seu art. 231 projetou para o mundo jurídico referências normativas, sintetizadoras das principais bases viabilizadoras da existência dos povos indígenas.
Este parâmetro constitucional implica em efetivo condicionamento ao exercício do poder normativo e coercitivo do Estado Nacional, de forma que quaisquer atos normativos, administrativos, judiciais e de particulares se aplicam validamente a um povo indígena se não desrespeitarem seus bens e valores étnico e culturais.
Nesse condicionamento reside a fonte da autonomia dos povos indígenas em relação ao Estado brasileiro.
(…)
Agora há que se respeitar, em todas as formas de relação, os elementos constitutivos de cada comunidade indígena. Desta imposição de respeito emerge o que é um princípio básico para o relacionamento com os povos indígenas, ou seja o princípio do respeito à diversidade étnica e cultural.” (Grifamos.)
Podemos então inferir que, quando da execução da radiodifusão comunitária pelas próprias Comunidades Indígenas em suas terras, não pode a norma infraconstitucional disciplinadora do sistema vir a ser aplicada de modo a causar embaraços aos princípios da autonomia daqueles povos e do respeito à sua diversidade étnica e cultural.
Em outras palavras, a Administração Pública, ao lidar com a questão, deve pautar-se de modo a respeitar as formas próprias de organização daquelas comunidades e povos, o seus valores culturais e lingüísticos, os seus modos próprios de expressão e comunicação, isso tudo tendo em conta a extensão territorial verificada em cada caso.
I.5. Inadequações da legislação de RadCom no caso das Comunidades Indígenas.
a) Concepção voltada para o espaço urbano.
Como vimos anteriormente (item I.2.”a”), o conjunto normativo relativo às chamadas “rádios comunitárias” é pensado essencialmente para as comunidades situadas em meio urbano, seja das grandes cidades, seja de pequenos povoados.
Passou ao largo, portanto, a questão da utilização deste tipo de veículo de comunicação social por comunidades cujos integrantes se situam de forma mais ou menos dispersa no meio rural, seja em sítios, fazendas ou pequenas propriedades. De forma mais destacada ainda, passou ao largo da legislação a possibilidade de utilização das rádios comunitárias por comunidades tradicionais existentes no meio rural, como as comunidades indígenas, as comunidades caiçaras e as comunidades remanescentes de quilombos.
Certamente esta opção da legislação pelo atendimento às comunidades urbanas no caso das rádios comunitárias reflete toda uma pressão social sobre o legislador a partir das crescentes e intensas experiências desenvolvidas, então de forma clandestina, por diversos tipos de comunidades localizadas em regiões urbanas.
No entanto, para as comunidades rurais e para as comunidades indígenas em especial, a radiodifusão sonora comunitária pode ser veículo de crescente potencial de utilização.
Neste sentido, as limitações em vigor tanto na Lei n.º 9.612/98, quanto no Decreto n.º 2.615/98 e na Norma Complementar n.º 02/98 que restringem o atendimento do Sistema às comunidades de bairro, de vila ou de povoado, são totalmente inadequadas ou insuficientes em caso de atendimento a comunidades indígenas.
No caso destas, é de se considerar inicialmente que a forma de ocupação territorial não pode ser definida em termos de bairro, vila ou povoado.
Em segundo lugar, inexiste no caso das comunidades indígenas um padrão único de ocupação espacial. A depender das características sócio-culturais de cada povo, sua população pode estar mais ou menos dispersa em zonas rurais, ou reunida em aldeias de maior ou menor densidade populacional.
Entendemos então que a Lei n.º 9.612/98 deveria incluir, em seu conceito de “cobertura restrita”, aquela destinada ao atendimento de determinada comunidade, seja ela indígena ou rural, e não apenas aquelas urbanas de bairro, vilas ou povoados.
Infelizmente preocupação neste sentido não foi contemplada pelo Grupo de Trabalho instituído pela Portaria n.º 83, de 24 de março de 2003, do Ministro das Comunicações, que apresentou, junto com o relatório conclusivo de suas atividades em julho de 2003, proposta de alteração do Decreto n.º 2.615/98 e minuta de anteprojeto de lei em reformulação a Lei n.º 9.612/98.
Tanto na proposta de alteração do Decreto quanto na minuta de revisão da Lei, o GT mantém as características essencialmente urbanas das áreas a serem cobertas pelo serviço de radiodifusão comunitária.
Seja como for, há que se considerar que na hipótese de uma comunidade indígena determinada vir a demandar a utilização do sistema de radiodifusão sonora comunitário, não deverá a previsão legal direcionada para as áreas urbanas configurar empecilho a este acesso.
b) Limite do raio de cobertura das transmissões.
É no modo como o Decreto n.º 2.615/98 conceitua a “cobertura restrita” em radiodifusão sonora comunitária que entendemos estar uma grande dificuldade em relação às comunidades indígenas, como também em relação às comunidades rurais não-indígenas.
A limitação do raio de alcance das transmissões a uma circunferência de mil metros em torno da antena transmissora pode tornar praticamente inócua a utilização do Sistema no interior de uma terra indígena.
No caso das comunidades que contam com diversas aldeias, certamente essa limitação da cobertura a mil metros pode significar que o atendimento da rádio comunitária deva ficar restrito a apenas uma única aldeia, o que pode tornar o serviço inútil e sem sentido para a comunidade usuária.
Por outro lado também entendemos como totalmente inadequada a possibilidade de vir a se aplicar, por analogia, a previsão do disposto no item 6.1 da Norma Complementar n.º 02/98, que prevê a possibilidade de admissão de mais de uma emissora em caso de a localidade não se enquadrar na categoria “pequeno porte” .
É que se o objetivo da utilização do Serviço for o de favorecer uma maior aproximação e interação entre as diversas aldeias de um mesmo povo, a multiplicação de emissoras certamente não só não cumprirá com tal objetivo, como também poderá servir de elemento distanciador entre as várias aldeias daquele mesmo povo indígena.
Assim sendo, entendemos pela necessidade de se reformular a regulamentação do serviço de radiodifusão sonora comunitária a fim de se redirecionar o conceito de “cobertura restrita” para a concepção dada pela Lei n.º 9.612/98, excluindo-se a sua subordinação a qualquer limite de circunferência do raio de transmissão.
Neste sentido, vale mencionar a proposta de alteração do Decreto n.º 2.615/98 apresentada pelo GT instituído pela Portaria n.º 83/2003, do Ministro das Comunicações. Propõe o GT a seguinte redação, que nos parece mais adequada:
“Art. 7º. A cobertura restrita de uma emissora do RadCom, destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro, uma vila ou uma localidade de pequeno porte, será estabelecida em Norma Técnica a partir do zoneamento da área de interesse.” (Grifamos)
c) As “associações” como titulares da outorga.
Outra inadequação da legislação que trata do serviço de radiodifusão sonora comunitária ao caso das comunidades indígenas encontra-se no fato, já comentado (item I.2.“c”), de o titular da a outorga ser pessoa jurídica do tipo fundação ou associação. Isso levaria às comunidades indígenas a exigência de constituição de “associações”, concebidas nos moldes dos arts. 44 a 61 da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Novo Código Civil), com estatuto devidamente registrado, ata de constituição da entidade, ata de eleição dos seus dirigentes também registrada, etc.
Ocorre que a Constituição Federal de 1988, no caput de seu art. 231, reconhece expressamente aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, como bens de ordem imaterial sobre os quais tem a União Federal o dever de proteger e fazer respeitar.
Este reconhecimento expresso da CF/88 quanto à existência das formas próprias de organização social de que são titulares as comunidades indígenas, implica na desnecessidade de sua substituição pela forma de organização estabelecida pela lei civil, qual seja, a das associações.
É de se observar que as comunidades indígenas, antes mesmo da entrada em vigor do texto constitucional de 1988, já são reconhecidas como portadoras de direitos na esfera econômico-patrimonial, conferidos pela Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), podendo ser titulares:
– de domínio territorial havido por qualquer das formas de aquisição do domínio nos termos da legislação civil (art. 31);
– dos direitos de posse e usufruto das terras ocupadas (art. 40, II);
– da propriedade de bens imóveis ou imóveis (art. 40, III);
– do direito de ingresso em juízo na defesa de seus direitos e interesses (art. 37).
Além disso, o texto constitucional atual confere também às comunidades indígenas legitimidade processual ativa nos termos seguintes:
“Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.” (Grifamos.)
Em nenhum momento a Lei n.º 6.001/73 ou a Constituição Federal exigem das comunidades indígenas que se constituam enquanto “associações” consoante os termos do Código Civil a fim de poderem efetivar os direitos que lhes são assegurados. Muito pelo contrário. Exigências que possam ocorrer neste sentido são, aliás, violações do texto constitucional, por infringirem a regra da proteção e respeito às formas próprias de organização social de cada Povo indígena.
Assim sendo, entendemos como completamente inadequada à realidade indígena a exigência de constituição de associação nos termos da lei civil como condição para a outorga da exploração do sistema de radiodifusão sonora comunitária.
Itens como a comprovação da existência e da forma de organização da comunidade, comprovação da representatividade de seus dirigentes ou líderes perante órgãos públicos e em especial no que tange à sua responsabilidade perante a rádio comunitária, podem ser todos satisfeitos de forma diversa daquela exigida pelo regime civilista, e em sintonia com o espírito pluralista impresso pelo ordenamento constitucional vigente.
Assim, por exemplo, ao invés de um “estatuto”, “devidamente registrado”, poderia a Comunidade vir a apresentar um laudo antropológico, a ser registrado em cartório, no qual se relate a forma pela qual a comunidade se organiza socialmente, indicando como é formada, quais as instâncias decisórias, de que modo as decisões são tomadas, etc. No lugar da “ata de constituição da entidade e eleição de seus membros”, poderia ser apresentada uma declaração, feita pelo órgão indigenista oficial e registrada em cartório, atestando não só a existência da comunidade como também nominando o(s) atual(is) ocupante(s) da função de representação da mesma perante o Estado e natureza da função quanto ao tempo (se vitalício; se eletivo, tempo de duração previsto, etc).
Desta forma, cremos que a legislação sobre radiodifusão sonora comunitária necessitaria ser reformulada no tocante aos tipos de pessoas jurídicas consideradas com competência para poder operar no sistema, incluindo-se as comunidades indígenas como uma das legitimadas ao lado das fundações e associações comunitárias.
Também totalmente inadequada ao caso das Comunidades Indígenas é a exigência, de criação de um “Conselho Comunitário”, ao menos nos moldes descritos pelo art. 8.º da Lei n.º 9.612/98: mínimo de cinco pessoas representantes de entidades da comunidade local, desde que legalmente constituídas.
Em primeiro lugar, há que se ter em conta que geralmente as Comunidades Indígenas já possuem seus próprios “conselhos”, criados e em funcionamento segundo regras culturais e costumeiras, devendo ser objeto de respeito e consideração.
Em segundo lugar, a existência, no seio das Comunidades Indígenas, de “entidades legalmente constituídas” é algo totalmente estranho aos seus padrões culturais. Exigir que numa Comunidade Indígena tais entidades existam, e em número mínimo de cinco, a fim de que delas se extraiam representantes para a formação do referido “Conselho Comunitário”, seria provocar uma ingerência indevida e uma grande desorganização das estruturas tradicionais e autênticas de organização social indígena, cujos efeitos podem ser irreversivelmente danosos à comunidade.
Cremos que o objetivo de criação do “Conselho Comunitário” de que trata o art. 8.º da Lei n.º 9.612/98, que é o de “acompanhar a programação da emissora, com vistas ao atendimento do interesse exclusivo da comunidade e dos princípios estabelecidos no seu art. 4.º” pode ser cumprido de outro modo, a partir de mecanismos postos pela própria organização social do Povo Indígena interessado.
Observe-se que aqui o GT instituído pela Portaria n.º 83/2003, na proposta que faz de revisão da Lei de Radiodifusão Comunitária, restringe a possibilidade de outorga apenas às associações comunitárias, as quais deverão ser “criadas especificamente para esse fim”.
Entendemos que essa proposta viria a distanciar mais ainda a normatização do sistema de radiodifusão comunitária da realidade das Comunidades Indígenas, uma vez que sequer se poderia aproveitar as associações por acaso já existentes, levando-se à criação de outras, específicas, enquanto que a própria Comunidade Indígena, mediante seu modelo tradicional de organização, poderia cumprir com tal função.
d) Exigência de apoio de entidades sediadas na área pretendida.
De igual modo afigura-se também como problemática, no caso das Comunidades Indígenas, a aplicação da exigência contida no inciso VI do § 2.º do art. 9.º da Lei n.º 9.612/98, de manifestações de apoio por “entidades associativas e comunitárias legalmente constituídas na área pretendida para a prestação do serviço.”
Em sendo a área pretendida para a prestação do serviço de radiodifusão uma terra de ocupação tradicional indígena, não poderão ter sede no local entidades associativas e comunitárias formadas por não-indígenas. Tais entidades associativas e comunitárias deveriam, portanto, ser formadas por integrantes da própria comunidade indígena.
Ocorre que em muitas Comunidades Indígenas com condições de demandarem a operação do sistema de radiodifusão sonora comunitária, tais entidades associativas e comunitárias legalmente constituídas não existem, nem se pode exigir a sua criação.
É que, como colocado anteriormente, a exigência de constituição de tais entidades no seio da Comunidade viria em detrimento das formas próprias, costumeiras, usuais, de organização social indígena, podendo causar prejuízos à própria comunidade que se pretenda beneficiar com a utilização do sistema.
Neste ponto, o GT instituído pela Portaria n.º 83/2003, do Ministro das Comunicações, propõe uma única alteração nos termos como a matéria está disposta na Lei n.º 9.612/98, para incluir sejam as manifestações de apoio formuladas também pelos próprios associados da entidade criada para a execução e administração do sistema de radiodifusão comunitária.
II. Comunidades Indígenas e Radiodifusão Comunitária Sonora e de Imagem.
II.1. Legislação.
Com o crescente desenvolvimento tecnológico, diversas tem sido as modalidades de radiodifusão de sons e imagens em operação no país.
Tem-se, por exemplo:
· TVs que funcionam em nível local e transmitem pelo sistema UHF (Ultra High Frequency);
· TVs que operam na freqüência VHF (Very High Frequency) também chamadas de “TVs abertas”;
· TVs por assinatura ou “TVs pagas”:
– TVs a Cabo (assim denominadas por utilizarem-se de meio físico – o cabo – para as suas transmissões);
– TVs MMDS (Multichannel Multipoint Distribution System), que utilizam-se de antena microondas (por ar e terra) para suas transmissões;
– TVs DBS (Direct Broadcasting Satéllite), de transmissões por satélite e recepção por antenas parabólicas;
– STV (Subscription Television), de transmissão também por satélite;
– TVs DTH (Direct To Home) igualmente por satélite.
Até o presente momento, a única experiência de radiodifusão de som e imagem de forma comunitária legalmente permitida e regulamentada, é a prevista na Lei n.º 8.977, de 6 de janeiro de 1995, que dispõe sobre o Serviço de TV a Cabo, e que reserva, neste tipo de sistema, um canal comunitário dentre um leque previsto de canais básicos de utilização gratuita:
“Art. 23. A operadora de TV a Cabo, na sua área de prestação do serviço, deverá tornar disponíveis canais para as seguintes destinações:
I – canais básicos de utilização gratuita:
(…)
g) um canal comunitário aberto para utilização livre por entidades não governamentais e sem fins lucrativos;” (Grifamos.)
Dois anos após a promulgação da Lei, veio a ser aprovado, pelo Decreto n.º 2.206, de 14 de abril de 1997, o Regulamento do Serviço de TV a Cabo, onde consta (art. 63) relativamente ao canal comunitário previsto na alínea “g” do inciso I do art. 23 da Lei n.º 8.977/95, que sua programação:
“… será constituída por horários de livre acesso da comunidade e por programação coordenada por entidades não governamentais e sem fins lucrativos, localizada na área de prestação do serviço.” (Grifamos.)
Logo em seguida, foi editada a Norma n.º 13/96 – REV/97, da ANATEL, sobre o Serviço de TV a Cabo, que dispõe:
“7.4 A utilização do canal comunitário deverá ter a sua programação estruturada em conformidade com uma grade que incluirá programação seriada e horários de livre acesso.
7.4.1 Nas localidades da área de prestação do Serviço poderá ser instituída entidade representativa da comunidade que coordenará a estruturação desta programação.” (Grifamos.)
Não há, portanto, uma previsão legal quanto à operação de um sistema comunitário no âmbito das demais modalidades de radiodifusão sonora e de imagem, notadamente a chamada TV aberta, cujas características seriam de mais fácil acesso e utilização para os fins almejados por uma TV comunitária.
II. 3. O Projeto de Lei n.º 2.701, de 1997.
A fim de ordenar juridicamente a operação de transmissões em UHF e VHF, em baixa potência, das chamadas TVs Comunitárias, tramita na Câmara dos Deputados o PL n.º 2.701/97, de autoria do Deputado Fernando Ferro, que dispõe sobre o Serviço de Televisão Comunitária aberta.
Diz o PL, em sua justificativa:
“Desde janeiro de 1995 vigora a Lei 8.997 que regulamenta as televisões a Cabo no Brasil. Em seu artigo 23, a Lei dispõe que as operadoras de TV a Cabo, na sua área de prestação de serviço, estão obrigadas a tornar disponíveis canais para entidades não-governamentais sem fins lucrativos. A abertura deste canal, chamado de canal comunitário, foi uma conquista da sociedade, obtida aqui nesta casa, que foi sensibilizada por um movimento que os mais diversos segmentos sociais.
Devemos reconhecer, porém, que a conquista não supre completamente a demanda da sociedade. Ela atende apenas um segmento social. O alcance da TV a Cabo é limitado em função do baixo poder aquisitivo da população. Não podemos relevar que no Brasil um terço da sua população ganha menos de um salário mínimo e que o país é campeão mundial em desigualdade social. Uma TV a Cabo comunitária atende apenas àquele grupo social de maior poder aquisitivo. Por outro lado a TV Comunitária que já existe em atividade no Brasil, operando em UHF ou VHF, isto é, dentro dos parâmetros de uma televisão comum, sem exigir gastos por parte do usuário, permite uma participação mais integral da comunidade. Devido à sua abrangência e pluralidade de público a Televisão Comunitária contribui, inclusive, para reduzir as desigualdades sociais.” (Grifamos.)
Ocorre, no entanto, que o PL n.º 2.701/97, segue, em linhas gerais o mesmo modelo da Lei n.º 9.612/98 que instituiu o Serviço de Radiodifusão Sonora Comunitária.
Assim, prevê o PL, em primeiro lugar, que a outorga seja concedida a Fundações ou a Associações Civis, tal como no caso da Lei das Rádios Comunitárias:
“Art. 1.º. Para os efeitos desta lei, considera-se Serviço de Televisão Comunitária a modalidade de serviço especial que compreende a radiodifusão televisiva de sons e imagens, em freqüência VHF ou UHF, operando em baixa potência, a ser outorgada a Fundações ou Associações civis, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço.”
Também aqui, como passo preparatório à outorga, encontra-se prevista a exigência de apresentação, pela entidade, de documentos que venham a comprovar a situação regular sua e de seus membros diretivos:
“Art. 8.º. Para obtenção da autorização para execução do Serviço de Televisão Comunitária as entidades interessadas deverão solicitar petição ao Poder Concedente conforme o Plano Básico.
Parágrafo 1.º. As entidades deverão apresentar no prazo fixado para habilitação os seguintes documentos:
I – estatuto da entidade, devidamente registrado;
II – ata de constituição da entidade e eleição dos seus dirigentes, devidamente registrada;
III – prova de que cada um dos diretores é brasileiro nato ou naturalizado há mais de dez anos;
IV – comprovação da maioridade dos diretores;
V – declaração assinada por cada diretor comprometendo-se ao fiel cumprimento das normas estabelecidas para o serviço.
(…)” (Grifamos.)
Desta forma, o referido PL da TV Comunitária também não contempla o caso específico de utilização do sistema por Comunidades Indígenas, o que dá margem a que estas acabem tendo que assumir o modelo associativo previsto no Código Civil, a fim de poderem ter acesso à outorga por parte do poder público.
Prevê também o PL n.º 2.701/97, a exigência de criação de um Conselho Comunitário no âmbito da entidade que pretenda operar no sistema Comunitário de TV:
“Art. 3.º. O Serviço de Televisão Comunitária será autorizado a pessoa jurídica que preveja em seus estatutos a existência de um Conselho Comunitário, composto por, no mínimo, cinco entidades pertencentes à comunidade da área abrangida pela emissora.
Parágrafo Único. O Conselho Comunitário terá caráter consultivo e fiscalizará a emissora no tocante ao seu caráter comunitário, à sua administração e à sua programação.” (Grifamos.)
Trazemos a este ponto as mesmas observações críticas já relacionadas (item I.4.”c”), relativamente à exigência de constituição do mencionado Conselho, por sua incompatibilidade com o princípio constitucional do respeito e proteção à organização social indígena.
O Projeto também prevê (art. 8.º, parágrafo único, inc VI), a apresentação documental que expresse:
“manifestações de apoio à iniciativa, formuladas por entidades associativas e comunitárias, legalmente constituídas e sediadas na área pretendida para a prestação do serviço.” (Grifamos.)
Também neste ponto entendemos cabíveis comentários anteriormente formulados (item I.4.”d”) de inadequação da exigência, posto que na área pretendida só seria possível a existência de entidades formadas por indígenas, o que via de regra foge aos padrões sociais e culturais das comunidades indígenas, sendo incabível a exigência de sua constituição.
III. Conclusão.
O sistema de radiodifusão comunitária traz, para as Comunidades e Povos Indígenas no país, um enorme potencial de afirmação e projeção étnico-cultural e política. No entanto, a sua utilização e incremento estão hoje a depender da superação de algumas dificuldades, tanto de ordem econômica, quanto jurídico-legal e administrativa.
O ordenamento normativo que hoje está em construção acerca do tema da radiodifusão comunitária, seja ela de sons ou de sons e imagens, necessita, com urgência, contemplar este segmento específico da população, com sua realidade diferenciada, com seus valores e padrões próprios, e que se encontra sob um regime de proteção especial pelo Poder Público por força da norma constitucional, como também em razão de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
É preciso, portanto, que a normatização e a administração da execução do sistema de radiodifusão comunitária venha a levar em consideração as especificidades indígenas, em termos do que dispõe a Constituição Federal de 1988: o respeito à sua autonomia e ao princípio da diversidade étnico-cultural.
Para tanto é indispensável a participação das próprias Comunidades e Povos indígenas, bem como de suas organizações mais representativas, nos debates em torno de formulações normativas mais adequadas às suas necessidades, pressionando também para que venha o poder público, no âmbito de sua competência, a garantir o efetivo cumprimento do direito de acesso a estes veículos democráticos comunicação.
Recife – PE, setembro de 2003.
Rosane Lacerda
Assessora Jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi
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“Rádio comunitária indígena demo