FHC edita decreto com inconstitucionalidade contra os povos indígenas, por Paulo Machado Guimarães
O Presidente Fernando Henrique Cardoso editou o Decreto n.º 4.412, de 7 de outubro de 2002, publicado no DOU de 08/10/2002 no qual "dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas e dá outras providências".
Em seu art. 1º, o Decreto estabelece que:
"No exercício das atribuições constitucionais e legais das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras tradicionalmente ocupadas por indígenas estão compreendidas:
I – a liberdade de trânsito e acesso, por via aquática, aérea ou terrestre, de militares e policiais para a realização de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, policiamento e demais operações ou atividades relacionadas à segurança e integridade do território nacional, à garantia da lei e da ordem e à segurança pública;
II – a instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias;
III – a implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira"
O art. 2º do Dec. 4412/2002 dispõe sobre procedimentos que as Forças Armadas e a Polícia Federal deverão adotar para a efetivação do que é previsto no inciso II do art. 1º do mesmo Decreto.
Por fim, o art. 3º do referido Decreto prevê, na sua parte final que as Forças Armadas e a Polícia Federal poderão se envolver na "superação de eventuais situações de conflito ou tensão envolvendo índios ou grupos indígenas".
É inaceitável, que o Chefe do Poder Executivo, desconsiderando a tramitação de proposições legislativas de natureza complementar à Constituição, adote, por Decreto previsões que atentam expressamente contra o disposto no § 6º do art. 231 da CF.
Os constituintes originários, ao promulgarem a Constituição Federal em 5 de outubro de 1988, estabeleceram, no referido dispositivo constitucional serem nulos e extintos os efeitos jurídicos de quaisquer atos que visem a posse, a ocupação ou o domínio das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos existentes nessas terras, salvo "relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar".
Dessa forma, o disposto no inciso II do art. 1º do Decreto nº 4412/2002, e por via de conseqüência, seu art. 2º são flagrantemente inconstitucionais, já que somente uma lei complementar poderá prever os atos previstos neste dispositivo do Decreto Presidencial, como ato de relevante interesse da União, validando sua posse e ocupação sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.
Por tratar-se de ato normativo autônomo, uma vez que não regulamenta qualquer dispositivo infraconstitucional, cabe a arguição da inconstitucionalidade dessas normas no Supremo Tribunal Federal.
Para tanto, o CIMI encaminhará representação ao Procurador Geral da República e ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
No que se refere ao envolvimento das Forças Armadas e da Polícia Federal na "superação de eventuais situações de conflito ou tensão envolvendo índios ou grupos indígenas", destaca-se não ser da competência desses órgãos a superação de conflitos interétnicos.
O correto, inclusive conforme consta na Lei nº 6001/73, consiste no tratamento de questões dessa natureza pelo órgão da administração pública federal encarregado e especializado no trato das questões indígenas, ou seja a Funai.
Somente em situações limites e ainda assim, muito bem caracterizadas e fundamentadas, num caso específico, pela autoridade administrativo-indigenista é que uma providência dessa natureza poderia ser analisada, sendo, por isso desnecessário qualquer Decreto para dispor sobre atribuições constitucionais e legais. Para tanto, a Lei nº 6001/73, em seu art. 34 já prevê que:
"O órgão federal de assistência ao índio poderá solicitar a colaboração das Forças Armadas e Auxiliares e da polícia federal, para assegurar a proteção das terras ocupadas pelos índios e pelas comunidades indígenas".
Por oportuno, vale lembrar que a Lei nº 6.001/73 dispôs em seu art. 20, que:
"Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República.
§ 1º A intervenção poderá ser decretada:
a. para pôr termo à luta entre grupos tribais;
…".
Das medidas previstas no § 2º do art. 20 da Lei nº 6001/73, cumpre observar que as hipóteses de deslocamento temporário e a remoção de comunidades indígenas relacionadas nas alíneas "b" e "c" desse dispositivo legal, bem como o disposto nos §§ 3º e 4º do mesmo dispositivo legal não foram recepcionados pelo texto constitucional de 1988, por força do que estabelece o § 5º do art. 231, segundo o qual:
"É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco".
Nessa mesma linha de argumentação, a própria hipótese de intervenção prevista no art. 20 da Lei nº 6001/73 se revela incompatível com o disposto no § 6º do art. 231 da CF, na medida em que a intervenção consiste em modalidade de ocupação de uma terra tradicionalmente ocupada por índios, salvo se as hipóteses previstas no referido dispositivo legal forem relacionadas na Lei Complementar a que se refere o mesmo § 6º do art. 231 da CF.
Brasília, 08 de outubro de 2002.
Paulo Machado Guimarães
Advogado e Assessor Jurídico do Cimi