20/06/2004

Superposição de Unidades de Conservação em Terras Tradicionalmente Ocupadas por Índios, por Paulo Machado Guimarães

I. Introdução

O Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA convida o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, para participar e expôr seu ponto de vista sobre "Eventuais superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação, e conservação da biodiversidade em áreas indígenas".

Agradecendo este honroso convite, o CIMI se permite abordar o tema, invertendo a formulação proposta.

Com efeito, não se trata de analisar eventuais superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, por serem fatos com repercussão jurídico-constitucional que remontam à origem do Estado, são e sempre serão anteriores a qualquer afetação que o poder público ou mesmo qualquer iniciativa particular pretenda fixar sobre elas.

Dessa forma, o CIMI considera o relevante tema suscitado pelo CONAMA, nos termos do título desta apresentação, cumprimentando, desde já este Conselho pela iniciativa de analisar esta questão, não só por imperativo legal, mas por necessidade social, tendo em vista a ocorrência de lamentáveis condutas de agentes do poder público, que insistem em constranger constitucionais direitos de povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

II. Os parâmetros normativos em vigor sobre as terras indígenas e as unidades de conservação

Com o início da vigência da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que "regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências", impôs o disposto no seu art. 57, segundo o qual:

"Os órgãos federais responsáveis pela execução das políticas ambiental e indigenista deverão instituir grupos de trabalho para, no prazo de cento e oitenta dias a partir da vigência desta Lei, propor diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das eventuais superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação".

Regularizar "eventuais superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação" implica, portanto na verificação preliminar, sobre a possibilidade jurídico-constitucional desta determinação legal, já que efetivamente existem unidades de conservação que foram criadas sobre terras indígenas.

A Constituição Federal, estabelece em seu art. 231 que são reconhecidos aos índios "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo a União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

O § 1º deste dispositivo constitucional define as "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios", como:

"…as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".

Nos termos de seu § 2º:

"As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes".

As terras tradicionalmente ocupadas por índios são, de acordo com o § 4º do art. 231 da CF "inalienáveis, indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis".

E reiterando o núcleo normativo do texto constitucional anterior (1967/69), o § 6º do art. 231 da CF estabelece que:

"São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé".

Como se pode aferir da leitura destes dispositivos constitucionais, verificando-se que uma terra é tradicionalmente ocupada por índios, independente de estar administrativamente demarcada, deste fato decorrem direitos constitucionais a posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes nessas terras.

Sendo inalienáveis e indisponíveis, não haveria outro caminho aos constituintes originários que reiterar o disposto no art.198 da CF de 67/69, que considera nulos e extintos os atos jurídicos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas por índios e inovando em relação ao texto constitucional anterior, são considerados nulos os atos que tenham por objeto a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Como reflexo do processo de negociação e das tensões verificadas no processo constituinte, foi inscrito no § 6º do art. 231 da CF uma exceção à regra geral da nulidade de atos que visem restringir ou eliminar os direitos constitucionais dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Dessa forma, admite-se, "segundo o que dispuser lei complementar", cujo projeto de lei, já aprovado no Senado Federal, tramita na Câmara dos Deputados, a validade de atos de "relevante interesse público da União".

A exata e correta compreensão do que estabelecem esses dispositivos constitucionais é fundamental e determinante para se verificar a possibilidade de compatibilização de outros institutos jurídicos, como no caso das unidades de conservação, de natureza jurídico-normativa infra-constitucional.

Para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, considerado como "bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida", o § 1º do art. 225 da CF "incumbe ao poder público":

"I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção

IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade".

Essas incumbências, não implicam em restrições aos direitos indígenas, mesmo porque não se admitiria a ocorrência de conflitos de normas constitucionais emanadas do poder constituinte originário.

No entanto, no propósito de regular parte do disposto no § 1º do art. 225 da CF, o legislador ordinário estabeleceu, na Lei nº 9.985/2000, regras que se aplicadas em terras tradicionalmente ocupadas por índios implicariam, como infelizmente vem ocorrendo em alguns casos no país, flagrante conflito com o texto constitucional.

As unidades de conservação são divididas em dois grupos: as unidades de proteção integral; e as unidades de uso sustentável.

As Unidades de Proteção Integral têm como objetivo básico, nos termos do que estabelece o § 1º do art. 7º da Lei 9985/2000, "preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção de casos previstos nesta Lei".

As restrições ao uso das áreas que integram este tipo de unidade de conservação evidenciam-se no tratamento normativo dispensado a cada uma das que integram o grupo das Unidades de Proteção Integral, que são de posse e domínio públicos, prevendo-se a desapropriação das áreas particulares que estiverem incluídas em seus limites, como se pode constatar a seguir:

1. Estação Ecológica – "tem como objetivo a preservação da natureza e a realização de pesquisas científicas" (art. 9º, Lei 9985/2000). "É proibida a visitação pública, exceto quando com objetivo educacional, de acordo com o que dispuser o Plano de Manejo da unidade ou regulamento específico" (§ 2º, art. 9º, Lei 9985/2000). Nesta unidade de conservação "só podem ser permitidas alterações dos ecossistemas no caso de: medidas que visem a restauração de ecossistemas modificados; manejo de espécies com o fim de preservar a diversidade biológica; coleta de componentes dos ecossistemas com finalidades científicas" (§ 4º, art. 9º , Lei 9985/2000);

2. Reserva Biológica – "tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais" (art. 10, Lei 9985/2000); também "É proibida a visitação pública, exceto quando com objetivo educacional, de acordo com o que dispuser o Plano de Manejo da unidade ou regulamento específico" (§ 2º, art. 10, Lei 9985/2000);

3. Parque Nacional – "tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico" (art. 11, Lei 9985/2000); "a visitação pública está sujeita às normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da unidade, às normas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração, e àquelas previstas em regulamento" (§ 3º, art. 11, Lei 9985/2000);

4. Monumento Natural – "tem como objetivo básico preservar sítios naturais raros, singulares ou de grande beleza cênica" (art. 12, Lei 9985/2000). "pode ser constituído por áreas particulares, desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários" (§ 1º, art. 12, Lei 9985/2000), caso contrário "a área deve ser desapropriada" (§ 2º , art. 12, Lei 9985/2000);

5. Refúgio de Vida Silvestre – "tem como objetivo proteger ambientes naturais onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local e da fauna residente ou migratória" (art. 13, Lei 9985/2000); também "pode ser constituído por áreas particulares, desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários" (§ 1º, art. 13, Lei 9985/2000), caso contrário "a área deve ser desapropriada" (§ 2º , art. 13, Lei 9985/2000).

As Unidades de Uso Sustentável, embora comportem um nível menor de restrições, na medida em que venham a ser aplicadas sobre terras indígenas tendem a conflitar com o texto constitucional, conforme se depreende do tratamento normativo dispensado às sete categorias deste grupo de unidades de conservação:

1. Área de Proteção Ambiental – "respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Proteção Ambiental" (§ 2º, art. 15, Lei 9985/2000); a área terá um Conselho presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes dos órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e da população residente, conforme se dispuser no regulamento da lei do SNUC (§ 5º, art. 15, Lei 9985/2000)

2. Área de Relevante Interesse Ecológico – "respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Proteção Ambiental" (§ 2º, art. 16, Lei 9985/2000)

3. Floresta Nacional – "é uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas" (art.17, Lei 9985/2000); "é admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade" (§ 2º, art.17, Lei 9985/2000);

4. Reserva Extrativista – "é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade" (art. 18, Lei 9985/2000); consta que será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração (§ 2º, art. 18, Lei 9985/2000); nela "são proibidas a exploração de recursos minerais e a caça amadorística ou profissional" (§ 6º, art. 18, Lei 9985/2000)

5. Reserva de Fauna – "área natural com populações animais de espécies nativas, terrestres ou aquáticas, residente ou migratórias, adequadas para estudos técnico-científicos sobre o manejo econômico sustentável de recursos faunísticos" (art. 19, Lei 9985/2000), sendo "proibido o exercício da caça amadorística ou profissional" (§ 3º, art. 19, Lei 9985/2000);

6. Reserva de Desenvolvimento Sustentável – "área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica (art. 20, Lei 9985/2000), uso das áreas ocupadas por populações tradicionais, regulado nos termos do art. 23 da lei do SNUC e em regulamentação específica (§ 3º, art. 20, Lei 9985/2000);

7. Reserva Particular do Patrimônio Natural – área particular gravada com perpetuidade, com o objetivo de conservar a diversidade biológica (art. 21, Lei 9985/2000).

As unidades de conservação, pelo que se constata, seja pelo fato de implicarem em restrições, ou limitações ao exercício da posse permanente e do usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, seja pela circunstância de submeterem as áreas integrantes das unidades de conservação à gestão de Conselhos presididos por órgãos da administração pública, afiguram-se incompatíveis com os direitos constitucionais dos índios.

Mesmo a Reserva de Desenvolvimento Sustentável, que por sua definição e por seus objetivos básicos poderia comportar eventual compatibilidade com as terras indígenas, no momento em que seu uso pelas ditas "populações tradicionais", cuja qualificação não é definida em lei, é submetido, nos termos do art. 23 da Lei 9985/2000, a um "contrato, conforme se dispuser no regulamento desta Lei", torna-se absolutamente impraticável qualquer possibilidade de conciliação entre estes dois institutos jurídicos.

Além disso, cumpre observar, que nos termos do § 4º do art. 231 da CF, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são indisponíveis, ou seja não podem ser disponibilizadas para outra finalidade que não seja a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

III. A compatibilização dos direitos indígenas sobre suas terras, com a preservação ambiental

Nos termos em que as unidades de conservação estão reguladas, não nos parece constitucionalmente factível a formulação de diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização de superposições destas figuras jurídicas, sobre as terras indígenas, conforme orientação inscrita no art. 57 da Lei nº 9985/2000.

As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são objeto de específico e preciso tratamento normativo no texto constitucional, enquanto as unidades de conservação resultam de normas infra-constitucionais, que por esta razão devem se submeter àquelas e não o contrário.

Por outro lado, esta circunstância não implica negar eficácia ao disposto no art. 225 da CF.

Nas terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, para assegurar a efetividade de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, a União, por força do que estabelece o inciso XIV, do art. 22 da CF, deverá dispor sobre esta matéria de forma clara e precisa.

Enquanto uma nova legislação indigenista não é aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Presidente da República, há que se considerar o disposto no art. 28 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, no qual é prevista a figura do "Parque Indígena", que:

"…é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região.

§ 1º – Na administração dos parques serão respeitados a liberdade, usos, costumes e tradições dos índios.

§ 2º – As medidas de polícia, necessárias à ordem interna e à preservação das riquezas existentes na área do parque, deverão ser tomadas por meios suasórios e de acordo com o interesse dos índios que nela habitam.

§ 3º – O loteamento das terras dos parques indígenas obedecerá ao regime de propriedade, usos e costumes tribais, bem como às normas administrativas nacionais, que deverão ajustar-se aos interesses das comunidades indígenas"

Com exceção da referência ao "grau de integração" dos índios, por ter sido derrogada pelo atual texto constitucional, o disposto neste art. 28 do Estatuto do Índio foi recepcionado pelo atual texto constitucional, como expressão da compatibilidade entre o disposto nos arts. 225 e 231 da CF.

Observe-se, à título de comprovação do entendimento aqui defendido, que os três Projetos de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados visando dispor sobre uma nova legislação indigenista: PL 2.619/92 – dispõe sobre o Estatuto dos Povos Indígenas; PL 2.061/91 – dispõe sobre o Estatuto das Comunidades Indígenas; PL 2.057/91 – dispõe sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas; já previam capítulos específicos sobre a proteção ambiental em terras indígenas.

O Substitutivo do Relator, Dep. Luciano Pizzato, aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados instituída para apreciar em caráter terminativo estas proposições legislativas, também contempla capítulo específico sobre o tema.

Neste Substitutivo é previsto que:

"Constitui encargo a União, por intermédio dos órgãos federais de meio ambiente e indigenista, a manutenção do equilíbrio ecológico das terras indígenas e de seu entorno, mediante:

I – diagnóstico sócio-ambiental…;

II – recuperação das terras…;

III – controle ambiental das atividades potencial ou efetivamente modificadoras do meio ambiente…;

IV – educação ambiental…;

V – identificação e difusão de tecnologias…

É também previsto expressamente a aplicação da legislação ambiental às terras indígenas, no que não conflitar com o que nele é disposto.

Antecipando-se mesmo ao propósito da Lei nº 9985/2000, o Substitutivo aprovado na Comissão Especial da Câmara adota solução proposta pelo PL 2.057/91, admitindo-se "o estabelecimento de áreas destinadas à preservação ambiental localizadas em terras indígenas", desde que seja de "iniciativa das comunidades indígenas que as ocupam, e será formalizada em ato firmado entre elas e a instância do Poder Público interessada". Esta previsão encontra grave óbice constitucional, na medida em que não é dado aos titulares da posse permanente e do usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras indígenas, dispor sobre elas, sob pena de violação ao disposto no § 4º do art. 231 da CF. Observe-se que a proposição legislativa cogita da ocorrência de restrições à posse da terras pelos índios em benefício do poder público, na medida em que prevê a adoção de formas de compensação.

Além disso, o Substitutivo admite a realização de "atividades potencialmente ou efetivamente modificadoras do meio ambiente em terras indígenas", por "qualquer agente público ou privado". Esta hipótese, também afronta expressamente o disposto nos §§ 2º e 6º do art. 231 da CF, na medida cogita da ocupação da terra por terceiros, estranhos ao povo indígena.

De qualquer forma, não obstante as críticas acima expostas, o CIMI considera que o caminho correto é a adoção de legislação específica sobre os povos indígenas, em que sejam previstas regras destinadas à proteção ambiental, nas terras por eles tradicionalmente ocupadas.

Além disso, se a União e somente o poder público federal considerar que uma área integrante dos limites de uma terra tradicionalmente ocupada por índios deva ser objeto de proteção ambiental, aplicando-se uma das Unidades de Conservação, tornar-se-á necessário que esta possibilidade esteja prevista na lei complementar a que se refere o § 6º do art. 231 da CF, já que implicará na ocupação, pelo poder público de terras indígenas, sob pena de ser ato jurídico nulo e sem efeito jurídico.

Observe-se que a nulidade a que se refere o texto constitucional em vigor, quando qualquer ato objetivar a posse, a ocupação ou o domínio de terras indígenas já vigora no Brasil, por força de norma constitucional desde 1934, quando o constituinte originário assegurou a posse da terras aos índios, sendo mantida e ampliada desde então, nas Constituições de 1937, 1946 e na de 1967/69. Portanto, quaisquer atos administrativos criando unidades de conservação, com as denominações próprias da época, como os Parques Nacionais, sobre terras indígenas são nulos, por expressa violação à norma constitucional.

E se alguma área indígena tiver sido destinada a preservação ambiental, com restrições aos direitos indígenas antes de 1934, as legislações infraconstitucionais da época serão eficazes para espancar quaisquer perspectivas de inversão dos direitos reais dos índios.

IV. Tensões inaceitáveis provocadas sobre Povos Indígenas em razão do propósito da administração pública em efetivar a preservação ambiental

Nos últimos meses tem crescido a ocorrência de conflitos em terras indígenas, sobre as quais foram constituídas unidades de conservação.

É o que se verifica, por exemplo: na Ilha do Bananal (TO); no Monte Pascola (BA); no Morro dos Cavalos (SC); na Ilha do Cardoso (SP); em Sete Barras (SP); em Juréia (SP); em Piraqueçú e Piraquemirim (ES); nas terras ocupadas pelos Náua, em conflito com a administração do Parque Nacional da Serra do Divisor (AC); nas terras Kayapó, em conflito com a administração da Reserva Florestal do Gorotire. Em Roraima e no Pará também são constatados conflitos desta natureza.

Equívocos e posturas arbitrárias são verificadas por agentes do poder público em suposto zêlo pela proteção ambiental, negando-se que as áreas momentâneamente submetidas a sua administração ambiental sempre foram terras indígenas.

Esta inversão dos fatos que os setores encarregados da administração das unidades de conservação, seguido por pessoas sensíveis e dedicadas à proteção ambiental em entidades civis insistem em propagar, em nada contribui para a adequada solução dos conflitos de interesse então verificados.

Revelam ainda, profunda incapacidade de lidar com conflitos sociais.

Os povos e comunidades indígenas que ocupam tradicionalmente estas áreas e que estão sendo administrativamente constrangidos a não usufruírem das riquezas naturais nelas existentes, aplicando-se, por exemplo vedações à caça e à pesca, não ficariam, como efetivamente não têm ficado passivas diante de tal abuso de poder.

A reação se manifesta, naturalmente de várias formas, como ocorreu na Ilha do Bananal, onde os membros da aldeias de Boto Velho apreenderam balsa do IBAMA, que por sua vez havia apreendido determinada quantidade de tijolos destinados a construção de uma escola na aldeia indígena. Os Karajá e os Javaé reagem também à proibição que a administração do Parque Nacional do Araguaia lhes impõe de pescar e caçar.

A atitude dos agentes administrativos no Monte Pascoal, negando tratar-se de terra tradicionalmente ocupada pelos Pataxó, quando farta documentação histórica comprova o contrário representa outro exemplo da conduta desrespeitosa para com os povos indígenas.

A preocupação com esta situação é maior, na medida em que aos povos indígenas interessa a colaboração do poder público na proteção ambiental das terras que tradicionalmente ocupam.

No entanto, o que não se pode admitir é que à título de preservar o meio ambiente, que por expressa determinação constitucional é um direito de todos os cidadãos brasileiros, parcela destes cidadãos, exatamente os remanescentes dos primeiros habitantes do território sobre o qual se construiu o Estado Brasileiro, venham a ser constrangidos, no regular exercício de seus direitos constitucionais.

V. Conclusão

Do exposto, conclui-se que:

1. os direitos constitucionais dos índios se sobrepõem ao tratamento normativo das unidades de conservação;

2. é perfeitamente possível e necessário preservar o meio ambiente em terras indígenas, de acordo com o que estabelece o texto constitucional e conforme regras específicas, previstas na legislação indigenista e não de acordo com diretrizes a serem adotadas por órgãos da administração pública;

3. o exercício abusivo do poder de polícia ambiental em terras indígenas deve ser suspenso imediatamente;

4. o Conselho Nacional do Meio Ambiente deve adotar como diretriz, o respeito integral aos direitos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, providenciando a desafetação das áreas indígenas sobre as quais foram criadas unidades de conservação.

Brasília, 13 de Novembro de 2000.

Paulo Machado Guimarães
Advogado e Assessor Jurídico do Cimi

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
Share this: