20/06/2004

Acampamento Terra Livre

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ACAMPAMENTO TERRA LIVRE 


 O primeiro protesto indígena articulado nacionalmente durante o governo Lula mostra a força do movimento, traz frutos e coloca pressão para cima do governo


Egon Heck
Cristiano Navarro



Esplanada dos Ministérios, Brasília, 5h24 da madrugada de 14 de abril do ano de 2004. Duas peruas kombi, um ônibus e alguns carros estacionam em frente ao Congresso Nacional. Debaixo de uma fina chuva, companheiros de luta dos extremos Norte e Sul do País descem dos carros e encontram-se no ponto eqüidistante a suas casas.


As distâncias percorridas pela viagem até a capital federal e o clima adverso contrastaram com a felicidade expressa em cumprimentos entusiasmados. Muito rapidamente mulheres e homens escavam o chão, fincam bambus, amarram cordas de onde improvisam, com lona preta, os primeiros barracos do acampamento “Terra Livre”.


Debaixo de uma árvore com uma enxada na mão, a liderança Marinaldo Macuxi anunciava “agora é… Ou vai, ou racha!” A determinação de Marinaldo foi o espírito entre as mais de duzentas lideranças de 31 povos diferentes presentes nos outros cinco dias que se sucederam.


Dias em que, em conjunto, povos de todos os cantos do País apoiados por lutadores das causas populares, escreveriam uma das mais importantes páginas na história política do movimento indígena.


Tendo a homologação da Raposa Serra do Sol como puxador da mobilização, o principal eixo de articulação de tão diferentes realidades é a questão fundiária. Desintrusão, proteção do território, processos de demarcação e homologação unem os indígenas neste momento em que seus direitos constitucionais são ameaçados por uma frente antiindígena formada por parlamentares de todos os partidos.


Ao ver a mobilização de tantos e tão diferentes povos para homologação de sua terra, Júlio Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), se dizia emocionado com o apoio dos “parentes” (maneira como se tratam os índios de diferentes povos) e aliados da causa no Brasil e no exterior. “Estou feliz em perceber que tantos parentes tenham compreendido a importância da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol como símbolo de luta dos povos indígenas no Brasil”, afirmou Júlio.


Um cotidiano versátil e plural
O acampamento indígena foi surgindo com a singularidade e pluralidade dos povos que o compuseram. Isso ficou visível na arquitetura e estética dos barracos, na forma de acomodação e nos jeitos de lidar com as questões práticas do dia-a-dia e das noites.


As origens, os hábitos e as culturas diversas tornam “Terra Livre Plural”. Talvez quem olhou num relance a aglomeração de barracos não percebeu a sutileza das formas que foram tomando os bambus juntados num belo emaranhado de estilos. Predomina a forma mais tradicional dos barracos. Porém se destaca a arquitetura redonda da oca Xavante. O frio das noites de Brasília certamente não permitiu outros estilos que contemplassem, por exemplo, a amarração de redes, que alguns trouxeram.


Aos poucos o acampamento foi ganhando vida. Risos, gritos e cantos não demoravam em se alternar. Era hora de colocar o ânimo em dia. Afinal de contas quem está na batalha não escolhe a música. E era preciso alcançar os objetivos pelos quais deixaram a família, os parentes, a aldeia, a terra. Por isso, apesar das diferenças de expectativas e motivações, todos estavam aí para lutar, para garantir seus direitos, para ser solidários à luta dos demais e saírem mais animados e fortalecidos na difícil jornada de construção de um futuro cada vez melhor. Para isso cada um dos dias acampados passou a ser muito importante. 


O manifesto com hora marcada
A cada dia, cumpria-se o ritual de passeata até em frente ao Palácio do Planalto. Lá era deixado o recado ao presidente Lula, expresso nas faixas afixadas na grade. Um grupo permaneceu na Praça dos Três Poderes, pintando faixas e vigiando para que as demais não fossem retiradas.


No final da tarde havia o “momento da solidariedade” e da indignação, em que a população era informada, através do carro de som, sobre as razões do acampamento e solicitado seu gesto solidário, visita e apoio. No primeiro dia de acampamento, Tereza Makuxi, fez um veemente apelo ao presidente da República: “Lula vem nos visitar, ouve o nosso grito e clamor pela homologação. Não se faça de surdo, não se esconda dos povos indígenas”.


Dos Makuxi, Wapichana, Ingarikó e Yanomami, de Roraima, aos Kaingang e Guarani do Rio Grande do Sul, dos Potiguara do Rio Grande do Norte aos Apurinã do Acre, dos mais longínqüos quadrantes do país, a cada dia novas adesões que faziam crer em um país plural de fato, reconhecidamente respeitado por toda nação brasileira.


A todo momento, as lideranças, em rodas maiores ou menores, se reuniam para planejar ações e debater a política indigenista oficial. “Lula prometeu mas não cumpriu”, era a frase mais repetida. “Nada de novo em termos de política indigenista do governo”, avaliavam. Para constatar isto não era preciso muito esforço, basta levantar os dados de 2003. Ao contrário do que se esperava, as violências aumentaram (31 assassinatos somente no ano passado) e os direitos indígenas estão cada dia mais ameaçados e mutilados. “Terra Livre” foi fruto dessa realidade, serviu para alimentar a pouca esperança que resta e juntar as forças para pressionar o governo de forma insurgente.


E a luta fez-se alegria e esperança
A convivência, a troca de experiências, o conhecimento, os cantos e encantos dos diversos povos, tudo isso importante combustível para a esperança. A disposição maior, entre diferentes interesses, foi de somar forças a partir da luta emblemática do momento, que é a Raposa Serra do Sol.


Cotidianamente foi se transformando em importante momento político, de aprendizado, de partilha, solidariedade entre os povos.


Assim como os debates, foram muito importantes os momentos dos rituais, das danças, das diversões, do futebol, das cantorias que foram dando sabor e vida a cada dia. E a indignação e sofrimento também foram se transformando em alegria na luta e esperança na vitória.

Fonte: cimi
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