16/06/2004

Ventos de maio, por Paulo Maldos

Paulo Maldos
Assessor do Cepis

“O difícil a gente faz, o impossível já demora um pouco”
(escrito num pára-choque de caminhão).

Maio chegou e nele os movimentos populares vivem momentos intensos de luta, marcados por angústia e expectativas. O transcurso do tempo já esvaiu um terço do primeiro mandato presidencial com raízes populares da história do Brasil e uma pergunta aflora nos corações e mentes: para onde vai o governo Lula?

O momento da posse foi catártico: explodiram todas as esperanças de um povo sofrido, que acumula dores de 500 anos de uma história feita de violência e exclusão. Os primeiros meses foram de paciência, atendendo aos pedidos do Planalto – “não é possível mudar tudo de uma vez, devemos ser responsáveis, temos que arrumar a casa primeiro, temos que fortalecer as alianças, temos que fazer as reformas, temos…”.

Os movimentos das elites, do império norte-americano, da mídia, não deixaram sombra de dúvida: eles trabalhavam intensamente para sufocar no nascedouro qualquer sinalização para as esperadas mudanças. O presidente colocar um boné do MST foi motivo suficiente para se fabricar uma crise; um discurso gravado e pinçado em reunião popular no interior, virou manchete do Jornal Nacional e processo judicial; ocupações de terra, greves, mobilizações populares foram amplificadas até o limite suportável para se armar um falso cenário de confrontação social. A elite cuidava para que seus privilégios não sofressem um só arranhão.

Os Estados Unidos da América reagiam com fúria aos esboços de uma política externa soberana, “descobrindo” radicais ideológicos em pleno Itamaraty. Aqui, também, a mídia contribuía “denunciando” terceiro-mundistas no governo federal, que deveriam ser demitidos sumária e implacavelmente. O império também cuidava para que seus interesses não sofressem um só arranhão.

Uma guerra passou a ser desencadeada por outros meios, os das ações políticas: a política do lobby; a política da pressão, ameaça e chantagem; a política da imagem na televisão; a política do editorial; a política do risco-Brasil, da oscilação do dólar e da cotação da bolsa; a política da mentira plantada no noticiário; a política da exclusão no noticiário.

Os movimentos populares perceberam o caráter desta guerra em curso e resolveram se articular para defender a esperança neste tempo de mudanças: ainda em 2003 é constituída a Coordenação de Movimentos Sociais. Seu propósito: articular as lutas populares, construir uma agenda comum dos movimentos, pressionar o Estado para as transformações necessárias. A proposta se espalhou pelo Brasil e recebeu pronta adesão de centenas de movimentos e entidades do campo popular, em todas as regiões do país.

O governo Lula, na alça de mira dos investidores e de suas agências “calculadoras do risco Brasil”, dos editorialistas da grande mídia, das instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial, buscou apaziguá-los desembolsando recursos. Aos setores populares, que demonstravam o fim da paciência e o início da cobrança, também buscou apaziguá-los, prometendo recursos.

Aqui, começou a se revelar o centro da trama e a essência do drama: um Estado feito à imagem e semelhança de suas elites centenárias funciona à perfeição para garantir seus privilégios e seu controle sobre as políticas e recursos públicos e, absolutamente, não funciona para transformar promessas e compromissos com a questão social em políticas e recursos públicos disponíveis para ações concretas de governo junto aos setores populares organizados e junto à massa excluída da população.

A continuidade, assumida publicamente pelo governo Lula, da política econômica do governo FHC e o agravamento da crise social passam a assumir contornos nítidos e cores fortes: desemprego próximo aos 20%; queda na renda dos trabalhadores; crescimento econômico negativo; aumento da violência urbana e da ousadia militarista do narcotráfico; sucateamento dos serviços públicos; insatisfação social disseminada…

No princípio de 2004, os movimentos sociais já percebem o perigo instalado e planejam ações organizadas que explicitam uma pauta de reivindicações e propostas e que revelam o desafio colocado para o governo Lula e para a sociedade brasileira: o desafio de mudar o modelo econômico e de se construir um projeto verdadeiro de nação, livre, democrática e soberana.

A lucidez, simples e concreta, dos setores populares articulados na Coordenação dos Movimentos Sociais, é transformada num crescendo permanente de marchas, greves de servidores públicos e outras categorias, ocupações de latifúndios, ocupações de prédios e terrenos urbanos, mobilizações sindicais, mobilizações de estudantes, protestos dos povos indígenas, protestos do movimento negro, protestos de mulheres, paralisações de metalúrgicos etc.

Com o mês de abril, as mobilizações populares adquirem densidade, velocidade e força social acumulada. A mesma onda de esperança revelada nas eleições de 2002, que colocou no governo da nação o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e colocou no Congresso Nacional uma ampla bancada de esquerda, volta agora a se revelar, buscando ser vista, escutada, respeitada e atendida em suas reivindicações concretas. Em 2002, esta onda popular explicitou suas expectativas gerais de mudança; em 2004, esta mesma onda popular explicita suas expectativas concretas de demandas a serem atendidas, categoria por categoria, pauta por pauta, reivindicação por reivindicação, proposta por proposta, número por número, no Orçamento Geral da União. O que foi abstrato e geral em 2002 tornou-se concreto e específico em 2004.

As elites e suas mídias logo perceberam o que estava em jogo: a continuidade ou não do modelo econômico, pois o que está aí não permite o atendimento das demandas populares. A partir daí, desencadearam uma nova fase de sua guerra contra os setores populares, criminalizando suas ações e suas lideranças. Um fantasma passou a rondar o Brasil: o fantasma do “abril vermelho”.

A morte de 29 garimpeiros, invasores da terra indígena Roosevelt, do povo Cinta Larga, em Rondônia, completa o cenário de regressão política da sociedade ao olhar, à ideologia e ao imaginário das elites mais retrógradas: “índios selvagens matam cidadãos trabalhadores, é preciso reduzi-los à força”; “camponeses radicais invadem fazendas produtivas, é preciso reprimi-los com firmeza”; “miseráveis das cidades invadem propriedades privadas, é preciso prendê-los”.

A continuidade da guerra das elites por outros meios volta com toda força com os ventos de maio, como ecos da guerra colonial, como prenúncios de guerras futuras. Por um lado, os setores populares, protagonistas principais na construção de um novo e justo Brasil; por outro, as elites, defensoras violentas do velho e injusto Brasil.

Necessário se faz voltarmos ao professor Milton Santos, que nos ensinava que quem faz a grande política hoje são as elites mais poderosas e os pobres mais excluídos. Neste momento crucial, nossa Nação e nossa História voltam o olhar interrogante para o governo Lula e para toda uma geração de militantes políticos que assumiu o governo em nome da transformação da sociedade brasileira. Nas bocas e nos textos a serem escritos enuncia-se a questão fundamental: de que lado vocês estão?


Texto Publicado no Jornal do MST e no Jornal Porantim – edição n.º 265 – Maio-2004

Fonte: Cimi
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