• 14/01/2013

    Povo Pukobjê-Gavião: mais uma ação contra a invasão de seu território

    A situação de invasão do território Governador, do povo indígena Pukobjê-Gavião, tem sua origem nos anos 50, quando estes quase foram dizimados por uma epidemia de gripe provocada pelos não índios, invasores, vindo das mais variadas regiões do Brasil.

     

    Os sobreviventes dessa epidemia juntaram-se em uma única aldeia, a Governador. O território, quando demarcado, recebeu o mesmo nome.

     

    O ponto alto das invasões do território dos Pukobjê-Gavião deu-se durante o governo do então presidente Juscelino Kubitschek, responsável pela abertura da estrada Belém-Brasília, que consequentemente atraiu fazendeiros da região sudeste (São Paulo e Minas Gerais) para a terra indígena.

     

    Essa invasão do território indígena fez com que os Pukobjê-Gavião perdessem sua paz, como aconteceu em 1976, quando a aldeia foi atacada por fazendeiros, destruindo as casas dos indígenas com fogo. Durante o ataque, indígenas fugiram para a aldeia Governador, onde viveram por muitos anos.

     

    Mesmo com a demarcação do território Pukobjê-Gavião em 1982, os problemas de invasão não cessaram e persistem em tempos atuais. Tanto que as lideranças indígenas prenderam na tarde de ontem, 13, quatro caminhões e um trator que tiravam madeira ilegalmente de seu território.


    Os caminhões e o trator foram levados para a aldeia Governador. Os indígenas solicitam urgentemente a presença de representantes da Funai e da Polícia Federal. Os mesmos temem que aconteçam novos conflitos com os madeireiros por conta das ameças que estão recebendo por parte destes, proprietários dos caminhões.


    Os indígenas ressaltam que a ação foi realizada por conta das constantes invasões e que não suportam mais ver os recursos de seu território serem explorados cotidianamente.

     

    Na defesa de seu habitat, os indígenas continuam enfrentando invasões de aldeias, como a que aconteceu em 2010, quando 40 madeireiros invadiram a aldeia Rubiácea para retirar apreendidos naquela ocasião.

     

    Vale ressaltar que a terra indígena Governador está passando por um processo de nova demarcação, e que, portanto, a mesma deveria estar livre da ação dos madeireiros de outros fatores que vão de encontro aos direitos dos povos indígenas.

     

    Acredita-se que a luta dos povos indígenas, em particular o povo Pukobjê-Gavião, ainda durará mais algum tempo, caso não seja implementada uma política de proteção do território Governador. Enquanto isso não acontece, veremos os indígenas organizando-se para enfrentar aqueles que destroem seu território.

     

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  • 10/01/2013

    Informe nº 1047: Funai reconhece terra indígena Guarani-Kaiowá

    Por Luana Luizy,

    de Brasília

     

    Em estudo antropológico, a Fundação Nacional do Índio (Funai) reconheceu como tradicional a terra indígena Iguatemipegua, dos Guarani-Kaiowá, localizada no estado de Mato Grosso do Sul, há 460 km de Campo Grande. O território corresponde a 41.571 hectares. A decisão foi publicada na última terça-feira, 8, no Diário Oficial da União.

     

    “Os relatos orais indígenas, registros e documentação escrita comprovam o uso e a ocupação tradicional kaiowá dos espaços territoriais constituído pelas terras da margem esquerda do rio Iguatemi. Está evidente que no século XIX, migrantes paulistas, mineiros, gaúchos e paranaenses começaram a se fixar no estado de MS, dando início a atividades agropecuárias na região, disputando terras e estabelecendo sérios obstáculos à ocupação indígena”, aponta o relatório.

     

    Vivem na região 1.793 índios dos tekohas – territórios sagrados – Pyelito e Mbarakay. Dentre eles 170 indígenas que divulgaram no ano passado uma carta, em que diante da ameaça de despejo pediram ao governo para serem enterrados ali mesmo junto aos antepassados, o que foi motivo de repercussão nacional e internacional.

     

    Após a necessária publicação do relatório no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso do Sul e fixação na prefeitura de Iguatemi, correrá um prazo de 90 dias para contestações ao mesmo. Em seguida a Funai terá 60 dias para analisar os questionamentos e encaminhá-los com seu parecer ao Ministério da Justiça, para assinatura de portaria declaratória e posterior demarcação e desintrusão da área. “O relatório comprova que os Guarani-Kaiowá têm mais uma vez todo o direito de cobrarem e exigirem que o Estado reconheça e finalize o processo de demarcação, para que eles possam, enfim ter o acesso e retomar a posse da terra de onde foram expulsos”, reitera Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi.

     

    Cenário nebuloso

     

    O estado do Mato Grosso do Sul é um exemplo emblemático do descaso brasileiro com a questão indígena e tem sido foco de conflitos e mortes na luta pelo reconhecimento das terras indígenas. A lentidão do reconhecimento das terras deixa os indígenas fragilizados e é uma das principais razões para a alarmante violência na região. Só no ano de 2012 foram 55 assassinatos indígenas em todo país, 37 desses no estado do Mato Grosso do Sul, o que corresponde a 67% de todas as mortes em nível nacional, conforme dados preliminares do Cimi.  A região também lidera o ranking de ameaças e tentativa de assassinatos.

     

    O governo de Dilma Rousseff tem sido inoperante no que diz respeito ao reconhecimento de terras indígenas, com apenas 10 homologações em seus dois anos de mandato, média anual de apenas cinco homologações, número inferior a todos os governos pós-redemocratização.

     

     

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  • 09/01/2013

    Povo Xavante denuncia despejo de veneno próximo à Marãwaitsédé

     

    Por Luana Luizy,

    de Brasília

     

    Indígenas Xavante denunciam despejo de agrotóxico próximo a Terra Indígena (TI) Marãwaitsédé, no último dia 26 de dezembro. Um avião teria pulverizado uma área próxima a aldeia durante 20 minutos. Aproximadamente 20 Xavante que estavam no local relatam que sentem fortes dores de cabeça e febre alta após a ação.

     

    “Foi um ataque visível para nós, eu vi um pequeno avião jogando veneno aproximadamente às 8 horas da manhã do dia 26, bem próximo a aldeia, eu mesmo estou com problemas de vista e dores de cabeça após o despejo”, afirma o Padre Aquilino Xavante. O mesmo conta que não é o primeiro caso de despejo de veneno e que já ocorreram mortes nos Xavante em função de pulverização em locais próximos a aldeia.

     

    A fazenda ao lado da terra é constituída de plantação de soja e fica a menos de 10 km da TI.  Cosme Xavante, uma das lideranças de Marãwaitsédé afirma que o avião passou rapidamente por cima da aldeia. “Nós temos uma lavoura na divisa com a fazenda. Eles passaram jogando veneno na semana passada também, sempre teve pulverização, mas nunca tão perto, nossa saúde está prejudicada”.

     

    A liderança afirma que a Funai compareceu na aldeia e que o órgão alegou encaminhar o caso para investigação pelo Ibama. Em entrevista ao Cimi, o órgão indigenista afirmou que não há nenhuma comprovação por intoxicação ou despejo de agrotóxicos, mas que estão apurando a denúncia.

     

    A operação de desintrusão da TI está em andamento e segundo informe da Funai: “Quem não sair terá os bens confiscados pela Justiça e deverá responder pelo crime de desobediência”. Os invasores tentam intimidar os indígenas após o mandado de desintrusão dos ocupantes ilegais pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 18 de outubro, pelo então presidente do STF, o ministro Carlos Ayres Britto.

     

    De lá para cá intimidações e ataques pelos fazendeiros têm sido constantes. No dia 3 de novembro de 2012, um indígena foi perseguido na cidade de Água Boa por dois carros com pessoas que reconheceu serem do núcleo da invasão no território indígena Marãiwatsédé e capotou o veículo, sofrendo algumas escoriações.

     

    Outro caso de intimidação que teve repercussão foi do bispo emérito de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, que se afastou no início de dezembro de 2012 de São Félix. O bispo foi acusado de ter sido responsável pela decisão do STF. Ameaças haviam se tornado cada vez mais insistentes e perigosas: "O bispo não verá o fim de semana".

     

    Histórico

     

    Marãwaitsédé está localizada nos municípios de Alta Boa Vista e São Félix do Araguaia, estado do Mato Grosso e começou a ser invadida durante a década de 1950 sendo adquirida na década seguinte irregularmente pela agropecuária Suiá-Missu. Os indígenas acabaram sofrendo migração forçada para a Missão Salesiana de São Marcos, 400 km longe de Marãiwatsédé, onde houve epidemia de sarampo. Cerca de 150 indígenas morreram e em 1980, a terra foi vendida para a empresa petrolífera italiana, Agip.

     

    Durante a Conferência de Meio Ambiente realizada no início de 1990 no Rio de Janeiro, a Eco 92, a Agip anunciou, sob pressão, que devolveria Marãiwatséde aos Xavante. Dos 165 mil hectares homologados e registrados pela União, apenas 20 mil estão ocupados pelos indígenas. A terra foi homologada pelo Executivo em 1998 e mesmo com o reconhecimento, os indígenas sofrem grandes pressões de latifundiários e do poder político local para que Marãiwatsédé permaneça nas mãos dos fazendeiros.

     

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  • 09/01/2013

    Em 2013 continuemos Kaiowá Guarani

    O ano mal começa e chegam as notícias de Mato Grosso do Sul. Adão Gomes, pai do cacique Nisio Gomes, morreu na primeira semana de 2013, aos 87 anos. Partiu sem saber do paradeiro do corpo de seu filho assassinado em novembro de 2011 no tekohá Guaiviry. "Genito comunicou também que o Valmir [filho do cacique Nisio Gomes] sofreu uma ameaça. Ele foi chamado para ir a entrada da área. Disseram que era da saúde. Quando chegou lá tinham várias pessoas com facão, flecha… e o ameaçaram. Ele tentou segurar o pessoal lá, chamou a Força Nacional, mas foram embora. Eles estão muito assustados".

     

    Outra manchete que circula nas redes sociais dá conta do grau de ameaças que pesa sobre lideranças desse povo.

     

    “GUARANI-KAIOWÁ URGENTE: Jagunço recebe arma, celular e R$ 600 para matar líderes Kaiowá” (Rede ANAIND).

     

    Sabemos que a estratégia de intimidar as lideranças e as comunidades indígenas em luta pelas suas terras, sempre foi usada pelos inimigos dos direitos indígenas. A diferença que hoje se percebe é que, apesar dos assassinatos, as lideranças externaram sua disposição de não se deixar intimidar pelas ameaças. Continuam resolutas no único caminho que lhes resta, o retorno às suas terras tradicionais.

     

    O ano da terra Kaiowá Guarani

     

    Marta do Amaral Azevedo, presidente da Funai, prometeu publicar pelo menos o relatório do grupo de trabalho de Iguatemipeguá antes que o ano de 2012 terminasse. Não conseguiu cumprir sua promessa. Mas, finalmente, no dia 7 foi publicado no Diário Oficial o relatório circunstanciado da terra indígena Iguatemipeguá I (Pyelito Kuê-Mbarakay). Essa comunidade Guarani-Kaiowá, teve uma das mais incríveis histórias de resistência contra todos os decretos de morte e violência. Conseguiram dizer ao Mato Grosso do Sul, ao Brasil e ao mundo sua inabalável decisão de morrer pelo seu chão sagrado, se preciso fosse. A justiça brasileira, diante do clamor mundial, lhes reconheceu o direito de permanecer em um hectare de terra até que a Funai concluísse o trabalho de identificação. Esse é apenas um passo no difícil processo de reconquistarem partes de seu território tradicional. Que as previsíveis reações do agronegócio, procurando impedir ou retardar ao máximo a devolução das terras aos Kaiowá Guarani, sirvam de estímulo não apenas para continuar a campanha e mobilizações em favor da vida e direitos desse povo, mas nos motive a ampliar as mobilizações para que essa questão seja resolvida definitivamente.

     

    Se o ano de 2012 foi o grande momento de visibilidade, mobilização e solidariedade com os Guarani-Kaiowá, este povo espera que o governo dê passos decisivos, com a urgente publicação das portarias declaratórias, que o Judiciário julgue no tempo mais breve possível as ações que paralisam as demarcações, e que o Legislativo assegure no orçamento recursos necessários para a solução constitucional, justa e decisiva.

     

    Egon Heck

    Povo Guarani Grande Povo

    Início de 2013

     

     

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  • 04/01/2013

    Informe nº 1046: 2012 e a Conjuntura da Política Indigenista

    Povos indígenas e o desenvolvimentismo do governo Dilma Rousseff

     

    Ao examinar a conjuntura indigenista brasileira, em 2012, salta aos olhos a intensificação de campanhas contra os direitos indígenas, protagonizadas especialmente por políticos, empresários, latifundiários e organizações ruralistas. A Folha de S. Paulo tem publicado, no caderno Mercado, uma coluna escrita por Kátia Regina de Abreu, senadora pelo PSD, do estado do Tocantins. A vinculação da senadora com setores empresariais e pecuaristas fica evidenciada na vigorosa campanha contra as demarcações de terras indígenas, da qual ela se tornou porta-voz.

     

    Algumas ideias defendidas na referida coluna compõem uma plataforma claramente articulada em defesa do agronegócio. Kátia Abreu afirma, por exemplo, que a situação de violência contra o povo Guarani-Kaiowá será resolvida com ampliação da assistência e não com garantia de terras; que não se trata de um conflito entre os indígenas e o agronegócio e sim da tentativa de ONGs e da Funai de impor sua vontade; que o direito indígena a terra deve estar subordinado aos interesses dos setores considerados produtivos; que a ideia de que os índios vivem em condições abjetas, possuem poucas terras e estão entregues à própria sorte é um equívoco. Tais afirmações são sustentadas em rasos argumentos de base quantitativa, gerados em pesquisas cujos procedimentos estão longe de resguardar parâmetros constituídos no sólido terreno dos estudos antropológicos.

     

    Outro exemplo das investidas contra os direitos indígenas são os pronunciamentos ofensivos ou as ameaças claramente formuladas contra as comunidades indígenas por parte de grandes proprietários de terras, fazendeiros, empresários cujas alegadas propriedades estão sobrepostas à terras tradicionais de alguns povos indígenas. É o caso, por exemplo, dos pronunciamentos do ex-garimpeiro Claudino Garbin, que possui uma empresa de terraplanagem, comprou terras no Paraguai e uma propriedade de 33 hectares no entroncamento das BRs-101 e 280, em Araquari/SC. Ele argumenta que o processo de expansão econômica não pode sofrer interferências, pois é o maior valor a se resguardar. Diferente do que pensa o empresário, os preceitos constitucionais são, isto sim, o que se deve resguardar acima de qualquer interesse privado.

     

    Em uma reportagem publicada no site Notícias do Dia, em 24 de novembro de 2012, Claudino Garbin afirma: “Se colocarem índios aqui, a bala vai comer solta. Que não sejam loucos”[1].

     

    Na mesma reportagem, o deputado federal Valdir Colatto (PMDB/SC) insurge-se contra os direitos indígenas com a absurda afirmação de que “a Constituição determinou que as terras deveriam ser demarcadas até cinco anos da promulgação, portanto as terras que não foram demarcadas nesse período não são indígenas e não necessitam de regulamentação”. De acordo com a tese do parlamentar, a inoperância, a morosidade, a omissão do governo anularia os direitos assegurados na Constituição. Se assim fosse, praticamente todos os direitos sociais da população brasileira seriam nulos, considerando-se que os governos raramente cumprem prazos determinados.

     

    Os exemplos destacados mostram como se concretiza, em discursos variados, publicados em diferentes fontes, uma onda antiindígena com argumentos racistas, preconceituosos, que apelam para uma classificação e hierarquização dos segmentos sociais para justificar que os direitos de alguns (fazendeiros, ruralistas, grandes empresários) sejam respeitados, enquanto os de outros (povos indígenas, quilombolas) sejam negligenciados.

     

    Observam-se também no parlamento brasileiro expressões desses diversos interesses nas terras e em seus potenciais, ao considerar os projetos de lei que tentam impedir que se concretizem as demarcações. Exemplo disso é a PEC 215/2000 que propõe que as demarcações de terras sejam autorizadas pelo Congresso Nacional. Sem contar as dezenas de outros projetos de lei apresentados por parlamentares para, de algum modo, restringir os direitos indígenas.

     

    Orçamento indigenista contingenciado e violações dos direitos humanos

     

    Os dados da execução do orçamento indigenista, ao longo do último ano, também demonstram o descaso do governo Dilma para com os povos indígenas. Chegamos ao final de 2012 com apenas 71,37% do orçamento indigenista liquidado, conforme dados do programa Siga Brasil/Senado Federal. Programas e ações fundamentais para a garantia da vida dos povos indígenas tiveram uma pífia execução de seus recursos. É o caso do item Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras Indígenas, no qual foram utilizados apenas 37,66% dos R$ 15.878.566,00 alocados para este fim. Tal aspecto, em si, já é evidência da falta de vontade política para que se cumpram os dispositivos constitucionais que asseguram as terras a estes povos. E se considerarmos que apenas 34% das terras indígenas encontram-se registradas, vemos que, além de ser insuficiente, o orçamento para 2012 sequer foi executado pelo governo, que preferiu, mais uma vez, ceder às pressões de segmentos veementemente opostos aos direitos indígenas.

     

    A falta de uma atuação mais decisiva por parte do governo no tocante às demarcações é demonstrada pelas 339 terras indígenas que ainda encontram-se sem nenhuma providência por parte do poder público. Fica mais clara ainda a negligência se olharmos apenas para o ano de 2012 quando apenas sete terras indígenas foram homologadas pela presidente da República.

     

    A morosidade e negligência na condução dos processos de regularização das terras indígenas têm efeitos diretos sobre a vida de centenas de pessoas. Não podemos deixar de observar também as crescentes demandas judiciais contra procedimentos de demarcações de terras, em curso ou até em fase de julgamento definitivo. Normalmente as decisões têm um caráter liminar que suspendem os procedimentos demarcatórios até que o mérito seja decidido pelas instâncias superiores, no caso Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal. Exemplo disso é a decisão do TRF da 4ª Região, que suspendeu os efeitos da Portaria Declaratória da terra indígena Mato Preto, no estado do Rio Grande do Sul. Em função destas manobras jurídicas, os processos se arrastam por décadas sem que haja uma solução para o litígio imposto.  

     

    Há, inclusive, uma correlação entre este aspecto e o estado caótico em que se encontra a saúde dos povos indígenas. Seja porque, somente quando têm a posse da terra é que as comunidades conseguem restabelecer algumas condições culturais fundamentais, seja porque somente com a finalização do processo de demarcação as pressões e violências praticadas por setores interessados nas terras são atenuadas.

     

    Não bastasse isso, observa-se no atual governo a continuidade de uma modalidade de discriminação cruel, que é a recusa, por parte Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), de atendimento de indígenas que não vivem em áreas demarcadas ou regularizadas. Neste caso, os indígenas são duplamente penalizados: primeiro, pela negligência e morosidade na condução dos processos de demarcação e, segundo, pela desassistência praticada para conter gastos com demandas sociais, fundada sob o argumento de que os indígenas não necessitariam de atenção especial por viverem em periferias urbanas, em áreas (ainda) não reconhecidas.

     

    Outro item da execução orçamentária de 2012 a ser considerado é o que se destina à Estruturação de Unidades de Saúde para Atendimento à População Indígena, para o qual o governo estava autorizado a gastar o montante R$ 26.650.000,00 e liquidou somente R$ 2.176.388,00 (o que corresponde a tão somente 8,17% do previsto). Vale ressaltar que a situação da saúde indígena (gerada em grande medida pela falta de assistência adequada) é tão grave que os procuradores da República na 6ª Câmara de Revisão e Coordenação Ministério Público Federal, ao participar de uma reunião com integrantes de diferentes regiões do Brasil no mês de novembro deste ano, constataram que os índios estão morrendo hoje não por epidemias, mas por displicência do governo. Como resposta a essa grave situação, o Ministério Público deflagrou uma campanha denominada “Dia D da Saúde Indígena”, na qual várias ações judiciais foram propostas exigindo do Governo Federal a adoção de medidas para tentar solucionar problemas como falta de medicamentos, ausência de água potável, transporte adequado para pacientes que vivem nas comunidades etc.

     

    Em documento assinado por procuradores da 6ª Câmara, denuncia-se que a mortalidade de crianças indígenas, por exemplo, está acima da média nacional. A cada mil crianças indígenas nascidas vivas, 52,4 morrem na infância – índice duas vezes maior que o do restante da população do país[2].

     

    Enquanto o governo Dilma investe em grandes obras, contingenciando os recursos orçamentários imprescindíveis para assegurar dignidade e atendimento adequado à população indígena, agravam-se os problemas de saúde e precarizam-se as já escassas estruturas existentes. Tanto é assim que, nas 4.750 aldeias mapeadas pela SESAI, existem apenas 717 postos de saúde, sendo que a maioria deles não dispõe de equipamentos e pessoal para seu efetivo funcionamento.

     

    De acordo com a vice-procuradora-geral da República e coordenadora da Câmara das Populações Indígenas do MPF, Dra. Deborah Duprat, nas aldeias indígenas “está faltando tudo: médico, remédio, transporte para levar pacientes para os hospitais. O quadro é de extrema indigência”.

     

    Retomando os números da execução orçamentária de 2012, o dado mais impactante é, sem dúvida, o de Saneamento Básico em Aldeias Indígenas para Prevenção e Controle de Agravos, com previsão de R$ 67.986.192,00 dos quais foram aplicados apenas R$ 86.403,00 (o que corresponde à vergonhosa cifra de 0,13%). Para ressaltar a displicência do Governo Federal em relação a este quesito, basta retomar dados divulgados pelo Censo 2010 do IBGE, que indicam que nas áreas indígenas registram-se os maiores déficits em redes de esgoto sanitário, se comparadas com as demais residências em diferentes regiões do país. Em apenas 2,2% das terras indígenas todos os domicílios estão ligados à rede de esgoto, rede fluvial ou fossa séptica e somente 16,3% são atendidos pela coleta de lixo.

     

    Diante da grave situação vivida pelas comunidades e povos em todo o país, a falta de execução do orçamento previsto para a questão indígena é injustificável e se caracteriza como uma violação dos direitos humanos.

     

    Nesta mesma direção, intensifica-se a perseguição e criminalização de lideranças indígenas que lutam pela terra, em especial nos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia, Pernambuco, Pará e Maranhão. Somem-se a isso as dezenas de casos de agressão contra comunidades, resultando, em 2012, no assassinato de pelo menos 55 pessoas.

     

    A omissão do governo em relação ao intenso processo de violências enfrentadas pelos Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul, e que se pode caracterizar como genocídio, é talvez o elemento mais significativo deste processo amplo de agressão aos direitos do ser humano. Os abusos contra este povo são denunciados por organizações no Brasil e no exterior. Vale ressaltar, ainda, que o estado de Mato Grosso do Sul continuou sendo, em 2012, recordista em violências contra os povos indígenas, e ali as comunidades são obrigadas a viver em beira de estradas – uma situação de “miséria cercada de riquezas por todos os lados”. Realidade semelhante vive o povo Guarani no estado do Rio Grande do Sul, submetidos em maioria a uma vida em acampamentos provisórios, sem condições adequadas de saúde, de saneamento, de alimentação.

     

    Registre-se aqui que das sete homologações de terras indígenas assinadas pela presidente da República em 2012, nenhuma se destinou a povos de Mato Grosso do Sul ou do Rio Grande do Sul.

     

    Ao fazer esta breve retrospectiva da política indigenista em 2012 constata-se a absoluta falta de disposição política, por parte do governo Dilma, para que os programas e projetos que beneficiem as comunidades indígenas sejam efetivamente executados. Tal fato estimula a cobiça de segmentos econômicos e políticos que ambicionam a exploração das terras indígenas e seus recursos ambientais, hídricos e minerais. O desenvolvimentismo proposto pelo governo visa essencialmente fortalecer os grandes conglomerados econômicos independentemente dos povos, culturas, pessoas e do meio ambiente.

     

    Há grandes desafios a serem enfrentados pelos povos e suas organizações: entre eles, o de apresentar as demandas, mobilizar-se em torno delas para que efetivamente sejam acolhidas e transformadas em políticas públicas, assegurando sua participação em todas as etapas; e o de pressionar o poder público para que as terras sejam efetivamente demarcadas, protegidas, estando na posse e usufruto assegurados aos povos e comunidades.

     

    Sem que isso aconteça, não é possível vislumbrar o efetivo combate às violências, ao descaso, à omissão e à dependência de “políticas” paliativas e compensatórias. Sem isso, na hora de discutir políticas públicas os povos indígenas serão tratados como "entraves" num modelo de desenvolvimento sem garantias, que privilegia alguns setores e penaliza muitos.

     

    Porto Alegre (RS), 04 de janeiro de 2013.

     

    Roberto Antonio Liebgott

    Cimi Regional Sul – Equipe Porto Alegre

     

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  • 02/01/2013

    Questão indígena: violações, condicionantes…, por Kenarik Boujikian Felippe e Luiz Henrique Eloy Amado

    Kenarik Boujikian Felippe e Luiz Henrique Eloy Amado[i]

     

    Os três poderes do Estado brasileiro são os grandes autores das violações aos direitos indígenas, por ação ou omissão. Não é por outro motivo que a sociedade se mobiliza na campanha “Eu Apoio a Causa Indígena”, para se manifestar frente a esses poderes referindo-se a eixos essenciais de violações de cada um deles, que atingem os povos indígenas de todo o Brasil.

     

    As violações de direitos humanos em relação aos povos indígenas têm caráter internacional, pois atingem as comunidades de inúmeros países e fortemente os da América Latina e Caribe.

     

    Os instrumentos normativos internacionais e regionais de direitos humanos – especialmente após a Declaração Universal de Direitos Humanos –, que têm a dignidade humana como referencial ético, não foram suficientes para o resguardo dos direitos relativos aos povos indígenas. Na medida em que tais instrumentos centram sua atenção na perspectiva dos direitos individuais, ficava descoberta a necessidade de proteção sob a ordem coletiva desses povos, afetando sua dignidade como grupo humano com identidade cultural própria.

     

    Diante da constatação desse vazio, foram adotados instrumentos internacionais de caráter coletivo. O primeiro foi o Convênio 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, revisado pelo Convênio 169 da OIT, de 1989, posto que aquele tinha visão integracionista. Outros exemplos são a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.

     

    Sublinhamos os principais direitos e princípios básicos consagrados no convênio 169: princípio da não discriminação; direito dos povos indígenas de posse das terras tradicionalmente ocupadas; direito de que sua cultura, integridade e instituições sejam respeitadas; direito a determinar sua forma de desenvolvimento; direito de participar diretamente da tomada de decisões acerca de políticas e programas de seus interesses e que lhes afetam; e direito a ser consultado sobre medidas legislativas ou administrativas que também possam os afetar.

     

    Na órbita da ONU, vale destacar que, em 2012, o Brasil se submeteu ao processo de Revisão Periódica Universal, e diversas entidades, dentre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Associação Juízes para a Democracia (AJD), encaminharam suas reflexões sobre o descumprimento das normas de proteção dos povos indígenas do Brasil. Vários países, como Alemanha, Noruega, Polônia, Marrocos, Peru, Turquia, Vaticano e Tailândia, também apresentaram específicas recomendações ao Brasil no tocante aos povos indígenas.

     

    Em termos regionais, ainda não possuímos tratado específico referente a esses povos (a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas está em fase de longa gestação). Mas a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem tomado posições protetivas importantes, como no caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku versus Ecuador, de junho de 2012, oportunidade em que reconheceu as violações do direito de consulta e à identidade cultural, pois se permitiu que uma empresa petrolífera privada realizasse atividades de exploração no território desse povo, no fim dos anos 1990, sem a realização de consulta. Essa decisão é certamente o norteador na luta dos povos indígenas da América Latina e Caribe.

     

    No Direito interno, a Constituição de 1988 é um marco fundamental do direito dos povos indígenas, protagonistas das conquistas nela estabelecidas, com o acolhimento do princípio da diversidade e alteridade, que consagrou o direito congênito às terras tradicionais ocupadas e declarou nulo todo e qualquer negócio jurídico que as tenha por objeto. Mas o que vemos são comunidades expulsas de suas próprias terras e vistas como invasoras de territórios que há muito são habitados por seus ancestrais, ou como uma ameaça à soberania nacional, principalmente em faixa de fronteira, que sempre defenderam.

     

    Diante das inúmeras violações, vejamos o alerta do professor Dalmo Dallari:

     

    O tratamento que vem sendo dado aos índios brasileiros, as agressões às suas pessoas e comunidades, as invasões mais ostensivas e atrevidas de suas terras, as ofensas frequentes, toleradas ou mesmo apoiadas por autoridades públicas, atingindo a dignidade humana do índio e outros de seus direitos fundamentais, tudo isso mostra a necessidade de um despertar de consciências. Do ponto de vista jurídico, é absolutamente necessário que as autoridades competentes para os assuntos relacionados com os direitos dos índios e de suas comunidades exerçam, efetivamente, suas atribuições legais, pois além das ações arbitrárias os índios estão sendo vítimas de omissões das autoridades.[ii]

     

    O fato é que os três poderes do Estado brasileiro são os grandes autores das violações, por ação ou omissão. Não é por outro motivo que a sociedade se mobiliza na campanha “Eu Apoio a Causa Indígena”, a partir de documento aberto a subscrições (www.causaindigena.org), para se manifestar frente a esses poderes referindo-se a eixos essenciais de violações de cada um deles, que em sua essência estão atrelados ao descumprimento do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição, que obriga a União a concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos – ou seja, 1993.

     

    A campanha quer que a presidenta da República estruture e disponibilize o necessário para que seja resguardada a vida dos indígenas, que se dê garantia de segurança e proteção a eles; que se resguarde a incolumidade das comunidades indígenas em todos os aspectos, especialmente quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais; que faça respeitar o caráter sagrado da terra atribuído pelos povos indígenas, providenciando com urgência as demarcações; que escute suas demandas quando da realização de obras públicas; que adote políticas públicas para a emergente regularização de todas as terras indígenas.

     

    No tocante ao Congresso Nacional, alerta para a existência de cláusulas pétreas, que jamais poderão ser modificadas, razão pela qual repudia a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que pretende retirar do Executivo o processo administrativo das demarcações e homologações de terras indígenas, transferindo-o para o Legislativo.

     

    Em relação ao Judiciário, o que se pede é a urgência e a prioridade nos julgamentos, pois a falta de delimitação e demarcação dos territórios tradicionais aguça os conflitos, que se retroalimentam da inoperância desse poder. A garantia de duração razoável do processo, direito humano previsto no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição, é reforçada no tema das demarcações pelo marco estabelecido para que elas fossem efetuadas.

     

    Cabe ao Judiciário ser o garantidor dos direitos nela assegurados, especialmente quando os demais poderes não cumprem esse papel. O Judiciário deve ser o garantidor da Constituição, da vontade soberana do povo, emanada do processo constituinte. Porém, ser garantidor é muito diverso de atuação, como se fosse legislador – algo que não é permitido por ultrapassar os limites impostos na matéria pela própria Constituição –, o que pôde ser observado no julgamento da Petição 3.388 – Raposa Serra do Sol, oportunidade em que o Judiciário impôs condicionantes para balizar critérios para a demarcação das terras indígenas, exclusivamente em relação àquele processo.

     

    No caso Raposa Serra do Sol, foram estabelecidos, por iniciativa do ministro Menezes Direito, do Superior Tribunal Federal (STF), 19 condicionantes para a demarcação contínua, sendo necessário registrar que algumas decorrem de previsão constitucional e legal, mas outras afrontam os direitos indígenas, destacando algumas neste espaço.

     

    A condicionante número 4 dispõe: “O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira”. A evidência não está de acordo com a quadra constitucional. Primeiro porque o § 7º do art. 231 da Constituição Federal estabelece que não se aplicam às terras indígenas as regras que disciplinam a permissão de lavra de garimpo. Em segundo lugar, sendo a terra tradicionalmente de ocupação indígena, o usufruto exclusivo pertence ao índio. Ainda, a lei 7.805/89, que trata do regime de permissão de lavra garimpeira, não se aplica aos índios. Logo, a permissão de lavra garimpeira em terras indígenas deve ser possível desde que exclusivamente em benefício dos índios que tradicionalmente a ocupam, após um licenciamento ambiental e também uma avaliação antropológica, necessitando regulamentação normativa específica.

     

    A condicionante 5, que trata dos atos de relevante interesse da União, dispõe:

     

    O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai.

     

    A de número 7, que igualmente trata dos atos de relevante interesse da União, diz: “O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação”.

     

    Em relação às condicionantes 5 e 7, o art. 231, § 6°, da Constituição estabelece que quaisquer atos de relevante interesse da União poderão restringir a posse, a ocupação e o usufruto exclusivo dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mediante previsão de lei complementar. Dessa forma, políticas que visem o interesse da coletividade poderão ser executadas em terras indígenas, desde que em perfeita harmonia com o direito constitucional dos povos indígenas. A condicionante atropela o direito de participação daqueles que exercem a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos da terra indígena.

     

    O STF, mais uma vez, não faz o juízo de convencionalidade e fere o art. 6°, 1, “a” e 2, da Convenção 169 da OIT, que garante o direito à consulta livre, prévia e informada e real, que o Estado brasileiro insiste em não cumprir, como se constata na realização de diversas obras ao arrepio dessa normativa, negando a autonomia das comunidades indígenas.

     

    A condicionante 11 trata do ingresso, trânsito e permanência de não índios em terras indígenas, dispondo: “Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai”. O ingresso, o trânsito e a permanência de não índios nas terras indígenas devem estar submetidos ao adequado e correto exercício do poder de polícia da União, que o exercerá por meio de seu órgão federal de assistência ao índio. Entretanto, deve-se observar, os índios têm legitimidade para autorizar ou não o ingresso de quem quer que seja em suas terras tradicionais, conforme suas próprias formas de organização social.

     

    A condicionante 17 prescreve que “é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”. A demarcação de terra indígena é um ato declaratório de um direito já existente – o das terras tradicionalmente ocupadas –, e se faz no “bojo de um processo administrativo”, com cumprimento de diversas etapas: identificação e delimitação, demarcação, homologação e regularização fundiária. A terra, objeto de estudo de identificação com o intuito de se averiguar se é ou não de ocupação tradicional, passa pelo estudo histórico e antropológico – as partes têm oportunidade de manifestação e produção de provas; depois é expedida a portaria declaratória, que pode ser levada à apreciação do Judiciário. Posto isso, quando uma terra é demarcada respeitando-se todos os requisitos legais, não há que se falar em ilegalidade, visto que o processo passou pelo trâmite legal. Isso não significa que as demarcações não possam ser corrigidas, especialmente aquelas feitas em forma de ilhas para passarem à forma contínua.

     

    Essa condicionante não pode ser aplicada aos casos das reservas, que são fruto da política indigenista do antigo Serviço de Proteção ao Índio, criadas sem respeito às tradições, traduzindo-se em verdadeiros “confinamentos”. Como exemplo, verifique-se a Terra Indígena Taunay/Ipegue, pois os estudos antropológicos realizados constataram que suas terras são bem maiores do que as atualmente ocupadas por eles, reservas derivadas da política indigenista da época de Rondon.

     

    Por fim, há casos em que a terra foi demarcada conforme prevê a lei, mas, com o passar do tempo, a comunidade foi crescendo, chegando ao ponto de o território ocupado ser insuficiente para a subsistência. Nesse caso, a ampliação do território indígena é necessária, e a União deve providenciá-la com base diversa da demarcação, utilizando o instituto da desapropriação.

     

    Finalmente: as condicionantes, ainda pendentes de recurso, dizem respeito exclusivamente ao caso Raposo Serra do Sol, mas, no âmbito do sistema de Justiça, vale apontar outra violação: trata-se da Portaria 303, da Advocacia Geral da União (órgão que representa a União e que assessora juridicamente o poder Executivo), que quer transportar para todas as demarcações as restrições que o STF impôs. A portaria tem propósitos claros: restringir os direitos constitucionais dos índios, pois afasta expressas determinações constitucionais relativas ao usufruto dos recursos naturais das terras indígenas, em relação à necessidade de consulta a essas populações para aproveitamento de recursos hídricos e para a pesquisa e lavra das riquezas minerais. Ou seja, traz conceito minorante de terras indígenas e, como se não bastasse, quer determinar a retroação para afetar os procedimentos finalizados.

     

    Voltemos agora à Declaração das Nações Unidas já mencionada para registrar o que em seu preâmbulo está inscrito:

     

    Afirmando que todos os povos indígenas são livres e iguais em dignidade e direitos, de acordo com as normas internacionais, e reconhecendo o direito de todos os indivíduos e povos de serem distintos e de se considerarem distintos, e serem respeitados como tais. Considerando que todos os povos contribuem para a diversidade e a riqueza das civilizações e culturas, as quais constituem patrimônio comum da humanidade.

     

    O caminho histórico de 512 anos mostra as grandes dificuldades dos povos indígenas, que só sobreviveram graças à sua resistência, suplantando as pressões dos poderes econômicos, que são cada vez mais fortes e violentos.

     

    O mínimo esperado é que o Estado brasileiro faça valer as leis que o povo elegeu e estabeleceu na Constituição de 1988 e através dos documentos internacionais com os quais se comprometeu. Só assim poderemos afirmar que estamos em um Estado brasileiro para os brasileiros e para a humanidade, e não para os interesses econômicos.

     

    O Estado não tem o direito de estar de outro lado.

     



    [i] Kenarik Boujikian Felippe é desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, cofundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia. Luiz Henrique Eloy Amado, terena da aldeia Ipegue, é assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário do Mato Grosso do Sul (Cimi-MS) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local em contexto de territorialidades.

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  • 02/01/2013

    Resistem as gentes na Aldeia Maracanã

    Fotos: Ricardo Casarini

     

    Contra o “negócio” Copa do Mundo, a beleza e a força do mundo indígena se levantam

     

    1556. Rio de Janeiro. Território Tupinambá

     

    No meio da mata os Tupinambás espiam a baia. Desde há muito tempo (1502) que por ali havia chegado uma gente estranha. Traziam cruzes e armas que cuspiam fogo. Por anos foram empurrando os nativos para longe da praia, expulsando das terras que ocupavam em paz e destruindo seu modo de vida. Muitos tinham sido mortos, outros escravizados e uns poucos se embrenhavam para dentro da floresta, ainda livres. As batalhas eram frequentes, mas desiguais. Em 1554, um jovem índio chamado Aimbiré, filho do cacique Kairuçu, depois de ver o pai capturado e morto por conta dos maus tratos na fazenda de Brás Cubas, em São Vicente, consegue fugir do cativeiro e começa a reunir-se com chefes de grupos indígenas que ainda andavam livres pela região. É ele quem vai costurar uma aliança histórica de resistência.

     

    Naqueles dias andavam pela baia também os franceses, loucos para abocanhar riquezas. Os Tupinambás – que nos tempos da invasão dominavam todo o litoral – por algum motivo, acreditaram que aqueles poderiam ser amigos e se aliaram a eles para expulsar os portugueses. Lograram um pacto com os Goitacazes e os Guaianases, e essa parceria se configurou na famosa Confederação dos Tamoios, liderada por Aimbiré. Os indígenas pelearam por mais de 10 anos contra os portugueses. Traziam na pele a marca da opressão e queriam suas terras de volta.

     

    Em 1565, Estácio de Sá desembarca perto do que hoje é o Pão de Açúcar e começa dali a resistência portuguesa contra os franceses e os indígenas.  É quando funda a vila de São Sebastião do Rio de Janeiro. Com a ajuda do padre Anchieta, os portugueses vão se misturando a outras etnias indígenas, conquistando amizades e enfraquecendo a Confederação. Naqueles dias a coroa não atinava perder o comércio do pau-brasil, abundante na região. Por dois anos deram batalha aos indígenas. Esses eram chefiados pelo valente cacique Aimbiré, que conduzia os guerreiros pelas canoas através da baia da Guanabara em duros confrontos contra os invasores. Ainda assim, Estácio de Sá seguia distribuindo terra aos amigos portugueses, visando fortalecer suas posições. Em 1567, os portugueses conseguem abafar o movimento indígena e expulsam os franceses da região. A Confederação dos Tamoios é derrotada, os povos originários do lugar são dizimados, as lideranças caem nas batalhas, e poucas famílias conseguem escapar pelo mato, garantindo assim a continuidade do povo indígena na região.

     

    2006. Rio de Janeiro. Ocupação Guajajara

     

    No meio dos prédios os Guajajaras espiam o grande estádio do Maracanã, templo de um esporte que chegou ao Brasil pelas mãos dos ingleses, num tempo em que a Inglaterra era dona do mundo. Remanescentes dos velhos guerreiros da Confederação dos Tamoios, os indígenas se embrenham na cidade maravilhosa para recuperar o que acreditam ser seu: uma pequena fatia de território. O mesmo espaço que foi palco da disputa sangrenta entre portugueses e tupinambás nos primeiros anos de invasão. O lugar em questão é um velho prédio localizado ao lado do estádio, que de 1953 até 1977 abrigara o Museu do Índio, criado por Darcy Ribeiro para ser justamente um espaço onde o homem branco pudesse compreender o modo de vida dos povos originários.

     

    O território onde está o prédio tem larga vinculação com os indígenas. Primeiro, era o seu mundo original. Depois, com a vitória portuguesa foi passando por várias famílias até que em 1865, o então proprietário, Duque de Saxe, doou a grande mansão que construíra para que o governo federal a transformasse em Centro de Pesquisa sobre a cultura indígena. Nada aconteceu. A casa acabou abrigando a Escola Nacional de Agricultura e só décadas depois sediou o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Quando o SPI foi transferido para Brasília em 1964, o prédio passou para a mão dos militares. Foi só em 19 de abril de 1953 que o casarão retornou para a vida indígena, quando Darcy Ribeiro instituiu o Dia do Índio e criou ali o museu.

     

    Mas, o espaço não ficaria muito tempo dedicado ao abrigo da história indígena. Em 1977 o museu é transferido para o bairro do Botafogo e o prédio passou para o controle da Companhia Nacional de Abastecimento, que praticamente o abandonou. Ao longo dos anos, a velha casa foi ruindo e nunca sequer foi tombada pelo Patrimônio Histórico.

     

    Só que para os indígenas aquele lugar é espaço sagrado, templo de resistência e foi assim que em 2006 cerca de 20 pessoas – indígenas de várias etnias – decidiram ocupar o prédio, dispostos a fazer dali um ambiente de acolhimento para todos os irmãos que chegam à cidade maravilhosa, além de guardar a memória ancestral das gentes que viveram naquele território desde os tempos imemoriais. A casa foi tomada e começou a batalha pelo tombamento e recuperação. Desde então as comunidades originárias vem travando grande batalha institucional para manter o prédio, criando um polo de produção de cultura e de conhecimento sobre os povos originários. Mas, a exemplo dos tempos da invasão, novos Estácios de Sá armam suas esquadras e dão combate aos indígenas. Ao que parece, nada muda nas terras de Pindorama.

     

    2012. Rio de janeiro. Copa do Mundo

     

    Pois em julho desse ano, completamente surdo aos desejos dos povos indígenas e dos movimentos sociais para que fosse feito o tombamento do lugar, o governo federal vendeu a área ao governo do Rio de Janeiro. A proposta do governador Sérgio Cabral, singela, é derrubar o prédio para que sirva de espaço de mobilidade para as pessoas que virão assistir aos jogos da Copa do Mundo de 2014. Mais uma vez, a cultura indígena sendo solapada em nome de um deus estranho: nesse caso, o dinheiro.

     

    Hoje seguem vivendo no prédio perto de 20 pessoas, representando etnias de diversas regiões do país: Guajajara, Pankararu, Xavante, Guarani, Apurinã, Fulni-ô, Pataxó e Potiguara, entre outras. Várias casas foram erguidas no lado de fora, uma vez que o prédio principal está em ruinas, apesar de servir para algumas atividades. A proposta dos ocupantes é recuperar o prédio e transforma-lo na primeira Universidade Indígena do país. Atualmente já são ministradas aulas de língua Tupi Guarani, inclusive para professores universitários e acontecem manifestações culturais, rituais, pinturas de corpo, feitura de comidas típicas das etnias na cozinha coletiva, ensinadas medicinas nativas e contadas histórias das tradições indígenas. Segundo as lideranças vivem mais de 30 mil índios no espaço urbano do Rio de Janeiro e o casarão deverá ser também um ponto de referência para a sobrevivência da cultura de todos eles.

     

    Nesses dias, quando a demolição se aproxima, muito mais gente está se unindo aos moradores originários, tentando fazer pressão para que o governo estadual reverta a situação. Já foram feitas audiências públicas na assembleia estadual, caminhadas, protestos, ações judiciais. Tudo o que dá para fazer dentro da ordem burguesa. Mas, nos governos, todos estão surdos. Para se ter uma ideia do que pensam basta espiar a fala do Superintendente Federal de Agricultura no Estado do Rio de Janeiro, Pedro Cabral, em entrevista aos jornais: “A memória dos índios será preservada, talvez com uma loja de artesanato para eles venderem seus materiais”. Para eles, índio é folclore. Já Sérgio Cabral insiste: “vamos derrubar”. Mas, na aldeia Maracanã, o povo segue em resistência.

     

    E tu, cara pálida?

     

    A verdade pode soar incômoda, mas, índio, no Brasil, é estorvo. Por conta disso, eles são assassinados, estuprados, dominados, chutados, queimados, escondidos, degradados. Só que nem sempre foi assim. Antes da invasão dos portugueses os grupos étnicos, mais de 200, iam construindo suas vidas, dentro dos limites de suas culturas. Vivendo em terras férteis e abundantes não chegaram a constituir uma civilização como os astecas, incas e maias, premidos pelas dificuldades geográficas. Eram caçadores, coletores, e sentiam-se livres na imensidão das terras tropicais. A chegada dos estrangeiros colocou o mundo de cabeça para baixo, todo um modo de vida ruiu. Com os portugueses vieram a cruz e o arcabuz, exigindo a fé num deus estranho e impondo a escravidão. Estarrecidos diante da violência dos homens de além-mar, os habitantes originários dessas terras foram se embrenhando no interior. Os que não conseguiram foram exterminados. E assim foi se fazendo esse imenso Brasil. O índio era um animal sem alma que não servia sequer para ser escravo. Por isso, o extermínio, o genocídio.

     

    Com o passar do tempo, as etnias que se embrenharam pelo interior também foram sendo encontradas. Com a chegada dos imigrantes, as terras que eram espaços de liberdade, começaram a ser aradas e escrituradas, passavam para outras mãos, viravam mercadoria, coisa que se compra. Na solidão das noites, os grupos indígenas que tinham sobrevivido ao massacre dos primeiros tempos também foram sendo destruídos, um a um. Eram chamados de bugres, selvagens, animais. Precisavam ser “civilizados” para que aceitassem pacificamente o roubo de suas terras e vidas. Assim se criaram os “bugreiros”, os bandeirantes, uma gente que fez fortuna caçando e matando índio e que até hoje são apontadas como “heróis nacionais”. De novo, os habitantes originais da grande Pindorama eram um entrave para o progresso que representavam os imigrantes.

     

    No início do século XX uma nova versão de contato começou a se fazer. Já não era mais o tempo da morte, do extermínio, mas da inclusão. Os indígenas começaram a ser procurados para que pudessem sair do seu estado “selvagem” fazendo parte da “civilização”. Com o lendário Marechal Rondon acabava-se a caça e começava um processo de integração. Foi ele quem criou o Serviço de Proteção ao Índio, em 1910, com sede no Rio de Janeiro, então capital da República. O objetivo era dar amparo e ajudar no processo de integração. Mas, apesar de todos os esforços e da boa vontade de muita gente do calibre de um Rondon, a integração do índio à sociedade que se criou a partir do genocídio nunca se deu de verdade. Fora do seu lugar sagrado, os povos originários seguiram sendo vistos como um estorvo. Os que se integraram na vida fora das matas, foram perdendo suas referências culturais, e ainda assim seguiram sendo discriminados. E os que aceitaram viver em aldeias, amargam até hoje a falta de direitos e de terra.

     

    Apesar da história triste de morte, destruição e genocídio, os povos indígenas nunca se entregaram sem luta. Desde os primeiros dias da invasão, quando perceberam que ali estava a opressão, as comunidades resistiram. Resistem ainda hoje por todo o país, na luta pela demarcação das terras, contra a invasão de seus territórios, contra os megaprojetos que destroem a vida, pela garantia de seus direitos. E não é diferente o que acontece hoje no Rio de Janeiro. Tão pouco o que querem: um prédio, uma universidade, um espaço para que sua gente possa descansar a cabeça e cultivar sua cultura. Ainda assim, a sanha por lucro, dinheiro, negócios, prevalece. A Copa do Mundo, que pretende atrair turistas de todo o planeta, trará com ela mais um massacre.

     

    Que fazer diante disso? Da impotência frente à fria lógica do capital? Talvez seja hora de evocar Aimbiré, a alma sagrada da Confederação tamoia, o desejo secular de liberdade das gentes indígenas para viver sua cultura, seus deuses, seu modo de vida. E, com essa força, iniciar uma rebelião que acerte o ponto mais sensível dessa gente que quer derrubar a aldeia Maracanã: o bolso. As formas? Haveremos de encontrar…

     

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  • 21/12/2012

    Dom Leonardo escreve aos bispos sobre os Xavante e dom Casaldáliga

    Secretário geral da CNBB enviou, nesta terça-feira, 18 de dezembro, carta aos bispos esclarecendo a situação do Povo Xavante e dando notícias do bispo emérito de São Felix do Araguaia. “Dom Pedro está sereno e acompanhando todo o processo de devolução da terra aos índios”, diz dom Leonardo Steiner.

     

    O secretário diz ter recebido mensagens e telefonemas buscando informações sobre os acontecimentos na Prelazia. Dom Leonardo então resolveu divulgar algumas informações que podem ajudar a compreender o que está acontecendo de modo a favorecer também a união solidária de todos com o Povo Xavante, com as famílias dos pequenos agricultores e com Dom Pedro Casaldáliga e Dom Adriano Ciocca Vasino, o bispo de São Felix..

     

    “Dom Adriano, por telefone, comunicou-me que a Polícia Federal diante das ameaças de morte havia aconselhado Dom Pedro a deixar temporariamente São Félix”, explicou dom Leonardo. “Apesar da idade e do estado de saúde, ele viajou no mesmo dia com Pe. Paulo, agostiniano, que o assiste diariamente, tendo sido fraternalmente acolhido por irmãos nossos em outra diocese”, complementou.

     

    Dom Leonardo esclarece as razões da saída de dom Pedro: “a decisão de Dom Pedro de deixar São Félix foi motivada pela reação dos ocupantes não índios diante decisão judicial de retirar os não índios da terra do Povo Xavante localizada nos municípios de São Félix e Alto Boa Vista. Como a Prelazia sempre defendeu a devolução da terra aos índios, sempre houve uma certa tensão e ameaça. Com a desintrusão elas aumentaram. A saída de Dom Pedro mostra mais uma vez que a violência não vem dos índios, como também não vem dos pequenos agricultores”.

     

    A situação de conflito da terra Xavante não é de hoje, segundo a exposição do secretário. “É uma longa história de êxodo e sofrimento de um povo. A terra indígena, após a retirada forçada dos Xavante nos anos 60, foi sendo dividida em grandes fazendas. Para assegurarem essas terras invadidas, incentivaram a vinda de famílias que adquiriram lotes na terra Xavante”, detalha dom Leonardo. Ele ainda lembra que “após anos de disputa judicial, houve a determinação da desintrusão da terra indígena. A Prelazia sempre insistiu com os diversos órgãos do executivo e do judiciário para que houvesse justiça com o Povo Xavante e com as famílias dos pequenos agricultores”.  E informa: “foram envolvidos cinco ministérios na preparação e execução do plano de retirada dos não índios, para cumprir o que a justiça havia determinado, seguindo o que reza a Constituição Brasileira. O plano elaborado pelo Governo atende a insistência da Prelazia”.

     

    O secretário admite que todos sabiam da tensão e da dor que chegariam, “especialmente às famílias de pequenos agricultores que venderam a propriedade em outros Estados para adquirir terra indígena de pessoas que a negociavam ilegalmente”.  Na condição de antecessor de dom Adriano, o bispo auxiliar de Brasília dá testemunho de que “a Prelazia, na pessoa de seus Bispos e Agentes de pastoral, acompanhou durante todos esses anos a luta do Povo Xavante em todos os momentos, bem como das famílias dos pequenos agricultores. Os Padres salesianos cuidam pastoralmente da aldeia, e a Prelazia está presente com a Pastoral da Criança e outras iniciativas. Estive muitas vezes entre os Xavante, como também visitei a comunidade católica na região”.

     

    Dom Leonardo finaliza a carta aos bispos com um apelo: “acompanhemos com nossas preces e nossa solidariedade fraterna a Dom Pedro, a Dom Adriano, a toda a Prelazia nesse momento de sofrimento”.

     

    Eis a carta:

     

    Brasília, 18 de dezembro de 2012

     

    Caro irmão no episcopado,

     

    paz e bem!

     

    A todos os irmãos votos de abençoado Natal. Deus criança, nossa esperança, ilumina nossa vida e ministério!

     

    Recebi mensagens e telefonemas buscando informações sobre os acontecimentos que obrigaram o nosso irmão Dom Pedro Casaldáliga Plá a deixar São Félix do Araguaia.

     

    Envio a todos os irmãos algumas informações que podem ajudar a compreender o que está acontecendo na Prelazia de São Félix e nos sentirmos unidos ao Povo Xavante, às famílias dos pequenos agricultores e aos nossos irmãos Dom Pedro Casaldáliga e Dom Adriano Ciocca Vasino.

     

    Dom Adriano, por telefone, comunicou-me que a Polícia Federal diante das ameaças de morte havia aconselhado Dom Pedro a deixar temporariamente São Félix. Apesar da idade e do estado de saúde, ele viajou no mesmo dia com Pe. Paulo, agostiniano, que o assiste diariamente, tendo sido fraternalmente acolhido por irmãos nossos em outra diocese. Dom Pedro está sereno e acompanhando todo o processo de devolução da terra aos índios.

     

    A decisão de Dom Pedro de deixar São Félix foi motivada pela reação dos ocupantes não índios diante decisão judicial de retirar os não índios da terra do Povo Xavante localizada nos municípios de São Félix e Alto Boa Vista. Como a Prelazia sempre defendeu a devolução da terra aos índios, sempre houve uma certa tensão e ameaça. Com a desintrusão elas aumentaram. A saída de Dom Pedro mostra mais uma vez que a violência não vem dos índios, como também não vem dos pequenos agricultores.

     

    A situação de conflito da terra Xavante não é de hoje. É uma longa história de êxodo e sofrimento de um povo. A terra indígena, após a retirada forçada dos Xavante nos anos 60, foi sendo dividida em grandes fazendas. Para assegurarem essas terras invadidas, incentivaram a vinda de famílias que adquiriram lotes na terra Xavante.

     

    Após anos de disputa judicial, houve a determinação da desintrusão da terra indígena. A Prelazia sempre insistiu com os diversos órgãos do executivo e do judiciário para que houvesse justiça com o Povo Xavante e com as famílias dos pequenos agricultores.

     

    Foram envolvidos cinco ministérios na preparação e execução do plano de retirada dos não índios, para cumprir o que a justiça havia determinado, seguindo o que reza a Constituição Brasileira. O plano elaborado pelo Governo atende a insistência da Prelazia.

     

    Todos nós sabíamos da tensão e da dor que chegariam. Especialmente às famílias de pequenos agricultores que venderam a propriedade em outros Estados para adquirir terra indígena de pessoas que a negociavam ilegalmente.

     

    A Prelazia, na pessoa de seus Bispos e Agentes de pastoral, acompanhou durante todos esses anos a luta do Povo Xavante em todos os momentos, bem como das famílias dos pequenos agricultores.

     

    Os Padres salesianos cuidam pastoralmente da aldeia, e a Prelazia está presente com a Pastoral da Criança e outras iniciativas. Estive muitas vezes entre os Xavante, como também visitei a comunidade católica na região.

     

    Acompanhemos com nossas preces e nossa solidariedade fraterna a Dom Pedro, a Dom Adriano, a toda a Prelazia nesse momento de sofrimento.

     

    Maria, Mãe de Deus e nossa, nos acompanhe nesse tempo de Advento e nos ajude a encontrar a Deus envolto nas faixas de nossa fragilidade e humanidade.

     

    Com estima e consideração em Cristo,

     

    Leonardo Ulrich Steiner

    Bispo Auxiliar de Brasília (DF)

    Secretário Geral da CNBB

     

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  • 21/12/2012

    ”Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser”. Entrevista especial com Dom Erwin Kräutler

    “Evangelizar implica primeiro no testemunho de uma fé arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida”, diz bispo do Xingu.


    Confira a entrevista.


    “A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf. AG 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho”. É com esta declaração que Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, resume sua atuação no Brasil há mais de 40 anos, evangelizando sua comunidade. Nesta caminhada, ele esteve engajado em diversas causas, entre elas, a mais recente, em oposição à construção da hidrelétrica de Belo Monte. “Como bispo tenho que conviver com diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser”, disse o bispo à IHU On-Line.


    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Dom Erwin comenta a atual situação de Altamira desde a construção da hidrelétrica de Belo Monte e acentua o comportamento dos povos indígenas que vivem próximos ao canteiro de obras. “Aí se percebe nitidamente que a Norte Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé?”, questiona. 


    Ele conta que após a eleição de Dilma tentou agendar uma reunião com a presidente, mas ao ouvir o discurso de Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, a favor de Belo Monte, desmarcou o encontro. “O que ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a audiência”, lamenta. 


    Há dois anos de tornar-se bispo emérito, Dom Erwin diz que isso “não significa ‘entregar os pontos’. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os ‘excluídos do banquete da vida’ e minha defesa do meio ambiente, o ‘lar’ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o fôlego”.


    Dom Erwin Kräutler
     (foto abaixo) é bispo de Altamira, no Pará, e presidente do Conselho Indigenista Missioneiro – CIMI.


    Confira a entrevista. 


    IHU On-Line – Que avaliação faz da caminhada de luta em oposição a Belo Monte e aos projetos de infraestrutura na Amazônia durante os últimos anos?


    Dom Erwin Kräutler
      – Por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio+20, o movimento Xingu Vivo para Sempre convocou indígenas, pescadores, ribeirinhos, movimentos sociais, estudantes e acadêmicos, ativistas e defensores do Xingu para comemorar os 23 anos que se passaram desde o Primeiro Encontro dos Povos Indígenas do Xingu (20 a 25 de fevereiro de 1989) em Altamira. O evento foi chamado de “Xingu+23“ em analogia ao “Rio+20“ e quis lembrar a primeira grande vitória contra o projeto de barramento do rio Xingu que naquele tempo levou o nome de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó, o povo indígena mais numeroso do Xingu. Na realidade, a luta contra o projeto é bem mais antiga e começou já nos anos 1970 quando os militares cogitaram a construção de seis grandes usinas ao longo do rio Xingu: Jarina, Kokraimoro, Ipixuna, Babaquara, Kararaô e Iriri. O Encontro dos Povos Indígenas em 1989 tornou a rejeição do projeto da parte dos indígenas apenas mais visível e chamou a atenção do Brasil e da comunidade internacional para o planejado golpe no coração da Amazônia. 


    Ironia da história


    Ironia da história: Lula, que elegemos porque acreditávamos que outro Brasil fosse possível, pouco depois de tomar posse tirou o projeto das gavetas, desconsiderando o que durante a campanha eleitoral havia falado nos palanques sobre a Amazônia. Passou a defender o que antes severamente criticou e a considerar o projeto hidrelétrico no Xingu essencial para o progresso, vaticinando o colapso total da economia do país caso não seja concretizado. Substituiu-se apenas o nome de Kararaô por Belo Monte para ninguém mais lembrar o facão da Tuíra e os índios de 1989 pintados de urucum e jenipapo. 


    Não acredito que haja no Brasil outro movimento de luta em defesa do meio ambiente contra um megaprojeto governamental com uma história tão longa. Alguém talvez venha retrucar: “Mas, infelizmente, lutaram em vão, já que o projeto está sendo executado a pleno vapor e, depois de já ter gasto bilhões de reais, dificilmente o governo vai recuar!“ De fato, a cada dia que passa mais explosões ensurdecedoras atormentam a população no entorno do canteiro de obras. A cada dia que passa mais destruição se alastra pela região. A ensecadeira se estende rio adentro e o desmatamento avança nas ilhas e na terra firme da Volta Grande do Xingu. Mas, mesmo assim, nada de enrolar a bandeira! Sabemos que Belo Monte não é a única barragem planejada no Xingu. Nossa luta tem também por objetivo evitar que o antigo projeto dos militares seja desenterrado na sua totalidade. 


    Quantos cientistas e especialistas não alertaram o governo que o Xingu durante três ou quatro meses no ano não terá o volume d’água suficiente para rodar uma única turbina sequer? Muitos! E todo mundo sabe que é economicamente absurdo deixar sem funcionar as turbinas que são a parte mais cara de todo o empreendimento. A solução reside em mais barramentos rio acima como já foi previsto no projeto dos militares, com impactos mais desastrosos ainda que a própriaUsina Hidrelétrica de Belo Monte. Esse projeto de mais barragens é tratado como segredo de estado. Habilmente se evita toda a discussão em torno deste espectro que então sacrificará todo o rio Xingu com consequências não só para Altamira mas também para todas as vilas ribeirinhas e áreas indígenas nas margens do rio, chegando a atingir até a cidade de São Félix do Xingu.


    Cruzar os braços


    Outro motivo de não cruzarmos os braços são os mais de cinquenta (50!) processos que correm na Justiça brasileira e internacional denunciando violações da Constituição Federal e de tratados internacionais de que o Brasil é signatário. São ações movidas pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública Estadual do Pará como por entidades da sociedade civil, entre estas o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, organismo vinculado à CNBB. Estes processos estão, em parte há anos, sem a Justiça tomar nenhuma providência. Quais são os reais motivos desta morosidade? Omissão ou negligência são inaceitáveis num Estado que se diz democrático e de Direito.


    Finalmente, enquanto não forem cumpridas todas – todas mesmo! – condicionantes exigidas pelo Ibama e pela Funai como requisitos para dar início à construção deBelo Monte, não deixaremos de denunciar a ilegalidade da obra.


    IHU On-Line – Quais as principais alegrias e desafios de ser um líder religioso em uma região como a do Xingu, onde a comunidade e a Igreja estão divididas por causa de Belo Monte?


    Dom Erwin Kräutler 
    – A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf. Ad Gentes 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho. Esta missão não se restringe a um mero anúncio de verdades. Evangelizar implica primeiramente no testemunho de uma fé arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida. Evangelizar é estar continuamente a serviço deste Deus, consagrando a vida a Ele e a seu Povo, e isso sem medir esforços e alegar cansaço. “Amou-os até o fim” lemos no Evangelho de São João para introduzir o episódio do lava-pés (Jo 13,1). Evangelizar não exclui o diálogo aberto, franco, respeitoso. Um monólogo autoritário é antievangélico quando tenta arrasar com quem tem outra visão do mundo e condenar ao inferno a quem não reza pela nossa cartilha. Como bispo tenho que conviver com diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser. A decisão tomada pelos governos Lula e Dilma de construir Belo Monte é imperdoável porque nunca haverá uma chance mínima de reparar os erros monstruosos cometidos. Ao inaugurar Belo Monte teremos alcançado um ponto sem retorno. Em outras palavras: não adiantará mais chorar o leite derramado.


    O cenário mudou


    A Igreja, como o povo do Xingu em geral, está dividida na avaliação de Belo Monte. No entanto, os que defendem o projeto já não estão mais tão eufóricos como anos atrás quando colaram adesivos “Queremos Belo Monte” em seus carros. Os adesivos desapareceram. Os que aprovam o projeto, o fazem hoje com reservas e muitas exigências. Os políticos há tempo desceram de seus palanques porque esgotaram os argumentos bombásticos em favor do “progresso” que só Belo Monte seria capaz de trazer para a região. Ensacaram a viola. Aliás Belo Monte nem sequer foi tema nos comícios da última campanha eleitoral. Os candidatos bem sabiam por que evitaram falar em Belo Monte. Iriam levar estrondosas vaias. Incrível com que rapidez o cenário mudou. A tendência é que, na medida em que a obra avança, o povo está se dando conta de que, até agora, nada ou muito pouco do que foi prometido está sendo cumprido. Altamira, uma cidade de mais de 120 mil habitantes, está mergulhado num tremendo caos. Os operários contratados pela empresa CCBM logicamente apreciam ter encontrado emprego, se bem que seja temporário. Mesmo assim há frequentes manifestações de insatisfação. Há até operário preso. Com toda razão exigem melhores condições de trabalho e salários que permitam enfrentar a inadmissível carestia que impera em Altamira. 


    As feições do povo que frequenta as Igrejas em Altamira mudaram. Entre as (os) fiéis tradicionais aparecem muitos rostos novos. São homens e mulheres, casais e famílias, que vieram de outros estados e trabalham nas empresas ligadas à construção de Belo Monte. Querem participar das celebrações e iniciativas de sua Igreja e tem todo o direito de fazê-lo, mas é óbvio que não se manifestam contra Belo Monte ou criticam o projeto, pois provavelmente correriam o risco de perder o emprego.


    Inalterado, também dentro da Igreja, ficou o grupo que categoricamente rejeita Belo Monte. Embora sejam poucas pessoas em relação à grande massa que é indecisa e opta por uma posição de aguardar “para ver como é que fica“, essa parcela do Povo de Deus mais ativa e combatente não se deixa intimidar nem por ameaças, nem por calúnias, difamações e outros tipos de perseguição.


    IHU On-Line – Irmã Ignez Wenzel comentou sobre a desarticulação entre as comunidades indígenas por conta das obras. Quais são as razões desse comportamento? Pesquisadores, antropólogos e religiosos estão mais preocupados com a questão indígena do que os próprios índios?


    Dom Erwin Kräutler
     – A questão é complexa. É perigoso generalizar, afirmando que os indígenas estão menos preocupados. Do mesmo jeito como em toda a sociedade do Xingu (do Brasil e do mundo), há também entre os indígenas diferentes posições em relação a Belo Monte. Religiosos, antropólogos, professores e outros profissionais conhecem talvez melhor os meandros e as propostas insidiosas do sistema neoliberal que está na base do “desenvolvimentismo” que confunde desenvolvimento com crescimento meramente econômico, multiplicação de riqueza material, incremento do PIB, expansão do agronegócio, aumento de produção de biocombustíveis. Os indicadores sociais são colocados em um plano inferior. A defesa do meio ambiente não passa de recheio nos discursos da presidente em Brasília para impressionar quando fala na ONU e em outras oportunidades no exterior como há poucos dias em Paris.


    Essa realidade os indígenas, pelo menos os velhos caciques, certamente nunca estudaram e por isso não se dão conta do perigo que correm. No sistema vigente, o que importa é produzir, lucrar, tirar vantagem, consumir. O “ter“ triunfa sobre o “ser“. Esse sistema é cruel e diametralmente oposto ao que os indígenas andinos chamam de Sumak Kawsay (ou “Bem Viver“). É um câncer que dissemina metástases em todo o tecido social. E é uma ilusão pensar que os povos indígenas sejam imunes contra este câncer. Todo o nosso empenho e acompanhamento visam ajudá-los a evitar a contaminação.


    Posições 

    Os Kayapó do Alto Xingu, sob a liderança do cacique-patriarca Raoni Metuktire, rejeitam qualquer barragem do rio. É para eles uma questão fechada. Só que Belo Monte é geograficamente muito distante de suas aldeias e essas, na primeira fase da construção do complexo hidrelétrico do Xingu, não serão impactadas diretamente. Por isso os Kayapó do Alto Xingu não mais se manifestaram de modo tão contundente como antes o fizeram quando Raoni mesmo veio a Altamira para prestigiar eventos contra Belo Monte.


    Outra é a situação dos povos que vivem mais próximos ao canteiro de obras. Aí se percebe nitidamente que a Norte Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia e aceitá-los significa dar um um tiro no próprio pé? Quem antes foi tratado como pária e de repente avança para padrões de príncipe, dificilmente entende uma advertência de que essas regalias são prejudiciais a ele e a seu povo. Na realidade, o dinheiro fácil corrói a sociedade indígena, corrompe lideranças, destrói a organização interna de um povo, faz os índios perder a sua identidade. Tem sistema atrás disso. Quando os indígenas “deixam de ser indígenas“ perdem também suas terras ancestrais, cobiçadas desde sempre pelas mineradoras, pelos madeireiros e latifundiários. Chamo essa investida contra os índios de “auricídio“ (do latim aurum: ouro). Matam-se os indígenas com dinheiro, entopem-se-lhes as gargantas com dinheiro a ponto de não mais poderem gritar, implanta-se um consumismo desenfreado no seio das comunidades e exterminam-se deliberadamente os valores e a sabedoria milenar de um povo. E o pior é que se afirma em alto e bom som que tudo é feito “em favor dos índios para tirá-los finalmente da era da pedra lascada“. Através do dinheiro se tenta ressuscitar os parâmetros das antigas constituições brasileiras que defendiam “a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional“, programa etnocida que achávamos definitivamente superado com a Constituição de 1988. 


    IHU On-Line – O senhor voltou a dialogar com o governo na tentativa de paralisar Belo Monte? Como vê, nesse sentido, a atuação do Ministério Público Federal, que por vezes determina a paralisação da obra?


    Dom Erwin Kräutler 
    – Já em outubro 2009 percebi que o presidente Lula, embora tenha insistido em continuar o que chamou de diálogo, na realidade não estava nada interessado em discutir Belo Monte. Aliás o “diálogo“ de que ele falou não passou de encenação. Tentei ainda um encontro com a Dilma. Fui informado queGilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, estaria disposto a receber-me em audiência. Mas poucos dias antes da data marcada para a audiência ele discursou num encontro das pastorais sociais da CNBB e declarou que Belo Monte era irreversível e irrevogável. O que ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a audiência.


    E o papel do Ministério Público Federal? Das 15 ações judiciais contra ilegalidades no licenciamento da construção de Belo Monte, encaminhadas pelo Ministério Público Federal, apenas uma transitou em julgado. Este balanço revela a “importância“ que é dada hoje a este órgão de defesa dos direitos constitucionais do cidadão. Às vezes me dá até dó ver o esforço de nossos Procuradores da República. Será que não se sentem supérfluos e inúteis dentro do poder Judiciário, que não aprecia o seu empenho, engavetando sistematicamente as ações elaboradas com esmero e competência?


    IHU On-Line – Como o senhor vê a discussão acerca da mineração no Norte e Nordeste? É possível dizer que Belo Monte servirá para facilitar a mineração? 


    Dom Erwin Kräutler
     – Respondo com a pesquisadora Telma Monteiro, que colabora com o Xingu Vivo para Sempre e quem estimo muito. Num artigo publicado no Correio da Cidadania (11-09-2012) ela adverte que “a implantação do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de viabilizar definitivamente a mineração em terras indígenas e em áreas que as circundam, em particular na Volta Grande, trecho de mais de 100 quilômetros que vai praticamente secar com o desvio das águas do Xingu. E é justamente nas proximidades do barramento principal, no sítio Pimental, que está sendo montado o maior projeto de exploração de ouro do Brasil, que vai aproveitar o fato de que a Volta Grande ficará seca por meses a fio com o desvio das águas do rio Xingu“. Critica ainda: “Incrível como, além das hidrelétricas, os projetos de mineração, na visão do governo federal e do governo do Pará, também se tornaram a panaceia para solucionar todos os problemas não resolvidos de desenvolvimento social. Papel que seria obrigação do Estado, com o dinheiro dos impostos pago pelos cidadãos de bem“. Sempre o mesmo lero-lero que já estamos cansados de ouvir: os problemas sociais da Amazônia só poderão ser solucionados se, de mão beijada, a lotearmos e entregarmos lote por lote a empresas estrangeiras. Desta vez a felizarda é a Belo Sun Mining Corporation com sede em Toronto, Canadá, que em breve auferirá lucros astronômicos rindo da cara dos brasileiros. E ainda há quem brada que a “Amazônia é nossa“ e repete o discurso de Lula em 2007: “Precisamos dizer que somos os donos da Amazônia e que sabemos cuidar das nossas florestas, da nossa água, não precisa ninguém dar palpite”. Quem são realmente os donos? Sabemos realmente cuidar das nossas florestas, da nossa água? Não seria mais correto chorar desde já a mãe Amazônia pois ela foi vendida ao grande capital para ser violentada sem escrúpulos até morrer de inanição! 


    IHU On-Line – Daqui dois anos o senhor enviará ao Papa o pedido de renúncia, conforme denomina o Direito Canônico. O senhor já faz planos para os próximos anos? Pretende continuar na região do Xingu?


    Dom Erwin Kräutler
     – O Cânone 401 § 1 do Direito Canônico reza que o bispo “que tiver completado setenta e cinco anos de idade, é solicitado a apresentar a renúncia do ofício ao Sumo Pontífice, que, ponderando todas as circunstâncias, tomará providências“. Em outra palavras: é o Papa que decide se aceita logo a renúncia ou se pede ao bispo continuar por mais algum tempo. Não fiz nenhum plano para “o dia seguinte“, mas tornar-se bispo “emérito“, logicamente não significa “entregar os pontos“. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os “excluídos do banquete da vida“ e minha defesa do meio ambiente, o “lar“ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o fôlego.


    IHU On-Line – Como é para o senhor viver no Brasil, especialmente num estado em que há milhares de problemas sociais, ambientais, numa conjuntura completamente diferente da sua origem?


    Dom Erwin Kräutler
     – Cheguei a Altamira em dezembro de 1965, ainda jovem. A decisão pelo Xingu foi uma decisão pessoal. Os superiores religiosos apenas concordaram e me deram luz verde. Jamais me arrependi de ter feito esta opção. O Xingu tornou-se minha terra, o chão em que vivo a minha vida. Não nego as minhas raízes e não deixei de amar o país da minha família e de meus antepassados, mas nunca cultivei saudosismos para com a terra onde nasci, avaliando o que naÁustria estaria melhor ou analisando a conjuntura de lá, comparando-a com os problemas que aqui enfrentamos. 


    Tempos atrás redigi uma mensagem que muitas vezes já foi usada em celebrações de envio de missionárias e missionários. Esse texto traduz o que ser missionário sempre significou para mim:


    “Vai meu irmão, minha irmã! Lá, em tua nova missão, em tua nova terra, em tua nova pátria, anunciarás Jesus Cristo e o seu Evangelho. Servirás aos pobres, aos excluídos do banquete da vida, lavando-lhes os pés. Falarás com quem nunca andou ou não anda mais conosco. 

    Aproximar-te-ás com muito carinho a um povo com cultura e tradições diferentes. Chegando lá, estranharás, sem dúvida, os costumes e usos locais. Mas, não imporás as tuas ideias! Não apresentarás o país que te viu nascer como paraíso! Não dirás nunca que no lugar onde te criaste, as coisas estão bem melhores! 


    Não darás nunca a impressão de que vieste para ensinar, para civilizar, para instruir, para colonizar! Jamais violentarás a alma do povo que, doravante, será o teu povo!

    Oferecerás simplesmente o testemunho de tua fé, de tua esperança e de teu amor, e darás a tua vida até o fim, até as últimas consequências! Assim, tu terás o privilégio e a felicidade de viver a graça de todas as graças: encontrarás o Senhor que disse: ‘Depois que eu ressuscitar, irei à vossa frente para a Galileia’ (Mc 14,28). Missão é sempre ir à Galileia, às Galileias de todos os continentes!“


    IHU On-Line – Depois de todos esses anos na região, qual foi a luta mais difícil na sua trajetória?

    Dom Erwin Kräutler – Sempre lembro com carinho nosso empenho em 1987-1988 durante a Assembleia Nacional Constituinte para que os direitos indígenas fossem inscritos na Constituição da República. Foi uma luta sem tréguas, mas os povos indígenas e nós, os seus aliados, saímos vitoriosos. Para quem quiser conferir, há um capítulo específico na Carta Magna do País que fala “Dos Índios“ (Art. 231 e 232). Essa luta, porém não terminou. Trata-se de concretizar o que está escrito aí.


    A luta mais desgastante, no entanto, é sem dúvida a que travamos contra a hidrelétrica Belo Monte, que já dura tantos anos. 


    IHU On-Line – Estamos na época do Advento. O que esta época de natividade, como nascimento de Jesus, pode trazer de reflexão para os dias de hoje, para os governantes, especialmente em relação a Belo Monte?


    Dom Erwin Kräutler 
    – Eu não sei se o sentido profundo do Advento e Natal mexe com o coração de nossos governantes, ministros e outros membros do governo. Talvez nem falem mais em Natal. Preferem substituir a lembrança do Nascimento de Jesus com um termo mais secularizado: “Festas de Fim de Ano“. E muito menos sei se esta gente, ouvindo eventualmente o “Noite Feliz“, se lembra das famílias expulsas de suas terras por causa de Belo Monte. Essas famílias não experimentam nada de noite feliz, enquanto os responsáveis pela sua desgraça se banqueteiam em confraternizações com as mais finas iguarias, regadas a bebidas seletas. 


    IHU On-Line – O que a experiência de Jesus Libertador pode ensinar e inspirar a prática cristã de hoje?


    Dom Erwin Kräutler 
    – Responder a essa pergunta equivaleria a uma dissertação sobre os fundamentos e toda a história da Teologia da Libertação e sua contribuição valiosa para a Igreja na Amazônia, especialmente para as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que continuam sendo o chão concreto em que esta forma de reflexão teológica até hoje está dando seus frutos e que gerou seus mártires. Precisaria também desmontar todos os mal-entendidos a respeito desta teologia, disseminados pelo Brasil e mundo afora, especialmente em ambientes em que se fecham os olhos e se tapam os ouvidos diante das injustiças de um sistema desumano, excludente, opressor e de violências estruturais que causam a morte de tantos homens, mulheres e crianças e do meio ambiente em que vivem.  


    IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?


    Dom Erwin Kräutler 
    – Sim, votos de um abençoado Advento e Santo Natal do Senhor. Que Deus nos conceda sua graça e paz, neste Natal, durante o Ano Novo e sempre.

     

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  • 21/12/2012

    La Teologia India y su lugar en la Iglesia

    Clique aqui e acesse o artigo de Eleazar López Hernández, do Centro Nacional de Ayuda a las Misiones Indígenas, do México.

     

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