• 17/02/2014

    Nota de apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra à luta do Povo Tupinambá de Olivença

    Brasília, 13 de Fevereiro de 2014.


    O Povo Tupinambá historicamente habitou grande parte do litoral brasileiro, incluindo a região de Olivença, localizada em Ilhéus/Bahia. Após 513 anos da chegada dos portugueses, de invasões, imposições socioculturais, expulsões, massacres e prisões este Povo ainda resiste bravamente às ações de violência, difamação, criminalização e perseguição. Os Índios de Olivença são os legítimos herdeiros das terras ancestrais e sua luta é motivo de orgulho para todo Brasil.


    O modo de cultivar a terra dos Índios é totalmente diferente daqueles que só a desejam para exploração agrícola, pecuária e mineral. Os Tupinambá cultuam e cultivam o seu Território Sagrado, que vai além da visão da terra como mera mercadoria, porque nele estão os ancestrais e os encantados. Onde existem Índios a natureza é preservada e graças à resistência dos Tupinambá Olivença ainda mantém parte de sua riqueza natural preservada.


    Em 2002 ocorreu o reconhecimento étnico e em 20/04/2009 foi publicado no Diário Oficial da União o Relatório Circunstanciado de Delimitação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença pela FUNAI. Já se passaram mais de cinco anos desde a publicação do Relatório Demarcatório feito pela FUNAI e a efetiva demarcação ainda não ocorreu. São mais de 513 anos de Luta e Defesa do Território Originário.


    A demora do governo – com a concordância do judiciário federal – em finalizar demarcação tem causado a situação de conflito existente na região e obrigado os Índios de Olivença a realizar a justa Autodemarcação de seu Território através de Retomadas Legítimas. Enquanto a imprensa, ruralistas e elites locais criaram um clima de guerra contra os indígenas, que além de taxados como “invasores”, agora são apresentados cada vez mais como ladrões, criminosos e bandidos. O conflito vem se agravando com atos de vandalismo praticados por supostos produtores financiados por interesses contrários à demarcação, resultando em destruição de patrimônio público e privado, prisões arbitrárias de indígenas, atentados, agressões e mortes. Ameaçados por pistoleiros e pela própria população manipulada pelo poder político e meios de comunicação, as aldeias vivem em clima de terror, chegando a suspender aulas nas escolas indígenas, dadas o cotidiano de humilhações e atentados.


    Neste momento a mídia local e nacional, aliada aos ruralistas, tenta colocar em conflito a Comunidade Indígena e os Trabalhadores Rurais da região – históricos aliados na luta pela terra – buscando imputar a um dos Caciques Tupinambá a morte violenta do agricultor Juraci José dos Santos Santana, liderança do Assentamento Ipiranga, no Maroim, em Una, no sul da Bahia. Imprensa e os ruralistas, antes de qualquer apuração policial, logo trataram de mais uma vez criminalizar os indígenas numa evidente articulação para por em conflito Trabalhadores Rurais e Comunidade Tupinambá, que devem seguir juntos contra a exploração e perseguição dos ruralistas, difamação pela mídia e repressão das forças policiais e militares – estes sim inimigos históricos e comuns.


    O assassinato desta terça-feira (11/02) se dá num contexto de ocupação do território indígena pela Força de Segurança Nacional e Policia Federal, presença que só tem elevado a insegurança e o clima de tensão. Somente este ano já ocorreram cinco mortes violentas na região ligadas direta e/ou indiretamente a luta pela terra. Enquanto o judiciário local deferiu mais de 20 liminares de “reintegrações de posse”, permitindo a invasão da Terra Indígena pelas forças policiais e militares para seu cumprimento deixando centenas de índios sem moradia.


    Ao invés de oficializar a demarcação, com a homologação do Relatório produzido pela FUNAI, única medida capaz de pacificar em definitivo a região, o governo federal e do Estado da Bahia investem vultosas somas de recursos públicos no envio de tropas para o território indígena. Valores que poderiam ser melhor investidos no pagamento das indenizações cabíveis aos proprietários que pacificamente já se conformaram com a inevitabilidade da demarcação. Esta atitude, promovendo maior demora na demarcação e aumento das forças militares na área indígena só tem aumentado o número de vítimas e agravado o quadro de conflito na região.


    Este quadro se coaduna com as investidas anti indígenas dos poderes constituídos, que visam a alteração da política demarcatória, sucateamento da FUNAI e intervenção do Ministério da Agricultura (aliado aos interesses da bancada ruralista e da Confederação Nacional da Agricultura – CNA) na formulação dos relatórios de terras indígenas, para anular os relatórios já feitos e a rever os limites das terras demarcadas. Assim como se promove o sucateamento da política de Reforma Agrária – com número ínfimo de desapropriações no atual governo – o governo procura através da edição de portarias e aprovação de leis emendas à Constituição retroceder nos direitos indígenas já conquistados com muita luta e a custa do sangue dos Povos Originários. É o caso da Portaria 303 da Advocacia Geral da União – AGU e do PLP 227 (apontando as restrições e exceções ao direito de uso exclusivo dos indígenas das terras tradicionais) e da PEC 215 (que visa transferir para o Congresso Nacional a decisão final sobre as demarcações).


    Por estas razões o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST REPUDIA A TENTATIVA DE CRIMINALIZAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS E EXIGE A APURAÇÃO DOS FATOS QUE ENVOLVEM A MORTE DO AGRICULTOR ASSASSINADO!


    – PELA UNIÃO DOS TRABALHADORES RURAIS E POVOS INDÍGENAS!


    – PELA IMEDIATA OFICIALIZAÇÃO DA DEMARCAÇÃO DO TERRITÓRIO INDÍGENA TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA PELO GOVERNO FEDERAL


    – PELO FIM DAS INJUSTAS “REINTEGRAÇÕES” DE POSSE


    – PELA RETIRADA IMEDIATA DAS FORÇAS DE SEGURANÇA NACIONAL, FORÇAS ARMADAS E DA POLICIA FEDERAL DO TERRITÓRIO TUPINAMBÁ


    – PELO FIM DA VIOLÊNCIA, PERSEGUIÇÃO, CRIMINALIZAÇÃO DO POVO TUPINAMBÁ


    – PELA REVOGAÇÃO DA PORTARIA 303 DA AGU E A NÃO APROVAÇÃO DA PEC 215 E DO PLP 227


    – PELA DEMARCAÇÃO DE TODAS AS TERRAS INDÍGENAS NÃO DEMARCADAS

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  • 14/02/2014

    Nota dos bispos do Tocantins sobre o conflito de terra em Campos Lindos

    “Se eu saio para os campos, eis as vítimas da espada; se eu entro nas cidades, eis as vitimas da fome” (Jer 14,18). Leia o documento:

    Nós, bispos das cinco dioceses do Regional Norte III, da CNBB, no Estado do Tocantins, ao tomarmos conhecimento do acirrado conflito de terra e dos problemas ambientais, com ameaças de despejo de mais de 80 famílias, no município de Campos Lindos, vimos, em nome de Jesus Cristo, pedir as partes em conflitos, diálogo, amor, justiça e reconciliação. Para tudo isto, nos colocarmos à inteira disposição das duas partes para mediar este conflito.

    O município de Campos Lindos é um grande celeiro, a céu aberto, de soja, no Estado do Tocantins. No entanto, apesar disso, possui o segundo pior IDH do Estado. Significa dizer que as riquezas que circulam no município, decorrentes desta produção, não contribuem para o desenvolvimento da região e nem beneficiam a população local.

    Além do mais, foi em uma fazenda desta mesma região que se deu o primeiro caso de trabalho escravo no Estado do Tocantins, com o resgate de 29 trabalhadores. A Campanha da Fraternidade deste ano de 2014 que tem como Tema “Fraternidade e Tráfico Humano”, diz, em grandes linhas, que são situações como esta que rompem com o projeto de vida na liberdade e na paz e violam a dignidade e os direitos do ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus. “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gal 5,1).

    Nossa solicitude pastoral se dirige, primeiramente, às famílias atingidas pelo Projeto Agrícola Campos Lindos, que já ocupavam estas áreas há décadas, e que hoje correm sério risco de perder e ser despejadas das terras, desde que, em 1997, foram confinadas em sua área de reserva. Nossa orientação é que façam valer os seus direitos, através de um diálogo progressivo e construtivo, mediado pelas autoridades constituídas para estes fins.

    Dirigimo-nos, de igual modo, aos produtores de soja, membros da Associação Planalto, a fim de que retirem todas as ameaças às referidas famílias que vivem nestas áreas de conflito e não contaminem mais o meio ambiente pelo uso intensivo de agrotóxicos nas lavouras de soja.

    Por fim, conclamamos o Ministério Público Estadual, o INCRA e o Tribunal de Justiça, e outros, para que, dentro da legalidade, acompanhem, de perto, a revisão do mandado de reintegração de posse, em favor da Associação Planalto, e que estas famílias tenham as suas terras regularizadas e tituladas.

    Queremos, com este nosso apelo, fazer jus ao nome de Campos Lindos desta querida cidade. É Jesus que nos pede para que sejamos sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-14). A respeito disto, sugestivas são as palavras do papa Francisco: “com uma vida santa, daremos sabor aos diversos ambientes e os defenderemos da corrupção, como faz o sal; e levaremos a luz de Cristo com o testemunho de uma caridade autêntica. Mas se nós, cristãos, perdemos o sabor, apagamos a nossa presença de sal e luz, perdemos a eficácia. É também muito bonito conservar a luz que recebemos de Jesus. Guardá-la. Conservá-la. O cristão deveria ser uma pessoa luminosa, que traz a luz, que sempre dá luz. Uma luz que não é sua, mas é um presente de Deus, o presente de Jesus. E nós levamos em frente esta luz. Se o cristão apaga esta luz, a sua vida não tem sentido: é um cristão somente de nome, que não leva a luz, uma vida sem sentido” (cf. Angelus, 09/02/2014).

    Certos de sermos atendidos, em nossa solicitação, nos colocamos à inteira disposição dos senhores para mediar este conflito.

    Na caridade de Cristo, Bom Pastor, com nossa bênção.

    Em nome dos 5 bispos do regional da CNBB – Norte 3; Dom Pedro Brito Guimarães- Arcebispo de Palmas; Dom Romualdo Matias Kujawski – Bispo de Porto Nacional; Dom Giovane Pereira de Melo- Bispo de Tocantinópolis; Dom Rodolfo Luiz Weber- Bispo da Prelazia de Cristalândia;

    Dom Philip Dickmans,

    Bispo de Miracema do Tocantins e Presidente do Regional norte 3 da CNBB.

    Miracema do Tocantins, 10 de fevereiro de 2014.


    NOTA PÚBLICA: Ameaça de Despejo de famílias em Campos Lindos, TO

    A Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra vem a público externar sua apreensão diante do risco iminente de despejo de suas terras de cerca de 80 famílias camponesas, em Campos Lindos, TO.

    O juiz da Comarca de Goiatins emitiu, em 18/09/2013, mandado de reintegração de posse em favor da Associação de Plantadores do Alto do Tocantins (Associação Planalto) do Projeto Agrícola Campos Lindos, município de Campos Lindos, nordeste do Tocantins. Na ação, a Associação Planalto alega que as famílias invadiram a área de reserva em condomínio, o que estaria prejudicando a regularização ambiental do projeto. O recurso apresentado pelos posseiros foi julgado em 29 de janeiro de 2014 pela 5ª Turma da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Tocantins, a qual manteve a sentença de despejo.

    Na verdade a alegação de invasão de área de reserva não corresponde à realidade. Em torno a 160 famílias que, há pelo menos quatro décadas, ocupavam a área, foram pressionadas e encurraladas em reduzido espaço para dar lugar ao Projeto Agrícola Campos Lindos, criado em 1997, pelo governo Siqueira Campos. Em consequência, mais de 90 mil hectares já ocupados por camponeses foram transferidos para fazendeiros, empresários e políticos, entre os quais a atual senadora Kátia Abreu e o ex-ministro da Agricultura Dejandir Dalpasquale. Em uma verdadeira “reforma agrária às avessas”, cada beneficiário pagou apenas 10 reais por hectare.

    Depois de muita pressão, aproximadamente 80 famílias tiveram seus direitos reconhecidos pelo Instituto de Terras do Tocantins, Itertins. Grande parte, porém, ficou sem o reconhecimento legal de suas posses. Pais e filhos que moravam perto foram considerados um único núcleo familiar e a eles foi atribuído um único lote. Por isso continuaram na área reivindicando uma solução definitiva.

    As últimas sentenças judiciais determinam o despejo de todas essas famílias. A Polícia Militar já fez o reconhecimento de campo e se planeja para, em breve, realizar a ação.

    Mais uma vez a propriedade, nem tão legítima como poderia parecer, fala mais alto que os legítimos direitos dos camponeses que, há dezenas de anos, trabalham, produzem e vivem nesta área. Ao invés de tentar conhecer a fundo a realidade, a Justiça se restringe a examinar documentos e papéis. A história escrita e esculpida na terra com o suor e o trabalho das pessoas não conta.

    O Ministério Público Federal havia determinado, após audiência pública realizada em 2013, um estudo antropológico sobre a ocupação da área. O laudo do antropólogo foi concluído e publicado somente no dia 28 de janeiro de 2014, na véspera da sentença do Tribunal de Justiça, reconhecendo a ocupação antiga e coletiva da área.

    Diante disto, a Coordenação Nacional exige que o despejo seja suspenso e que se garantam os direitos das famílias que, há 18 anos, vivem constantemente sob pressão, na incerteza de como será o dia de amanhã.

    Goiânia, 6 de fevereiro de 2014.

    Dom Enemésio Lazzaris

    Presidente da CPT Nacional

    Maiores Informações:

    Edmundo Rodrigues (coordenação nacional da CPT e CPT Tocantins) – (63) 3412-3200 / (63) 9293-1426

    Cristiane Passos (assessoria de comunicação CPT Nacional) – (62) 4008-6406 / 8111-2890

    Antônio Canuto (setor de comunicação CPT Nacional) – (62) 4008-6412

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  • 13/02/2014

    URGENTE – PYELITO KUE SOB RISCO DE ATAQUE IMINENTE

    Mensagem urgente por Tonico Benites Ava Guarani Kaiowá, porta voz da Aty Guasu.

    "O funcionário da FUNAI Sr. Paulo de CTL-FUNAI Iguatemi-MS comunicou que hoje (13/02) fazendeiros estão se organizando para atacar os indígenas manifestantes do acampamento Pyelito kue/Mbarakai-município de Iguatemi-MS. Além disso, os fazendeiros recomeçaram a ameaçar os funcionários da FUNAI de Iguatemi-MS, e estão várias camionetas das fazendas cercando e isolando a entrada do Pyelito kue não deixando a entrar os funcionários da FUNAI. Em qualquer momento podem atacar e massacrar a comunidade Guarani Kaiowa do Pyelito kue em manifestação. Diante disso, o Sr. Paulo falou me que vai fechar o escritório da FUNAI em Iguatemi por falta de segurança. Tres funcionários estão tentando ir ao acampamento Pyelito kue, mas os fazendeiros estão todos armados pela estrada. Há risco iminente de acontecer ataque à comunidade. Por isso precisamos com urgência a presença e intervenção da Polícia Federal e Força Nacional na região de Iguatemi-MS, sobretudo para proteger os funcionários da FUNAI e da comunidade do tekoha Pyelito kue".

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  • 12/02/2014

    Guarani Kaiowá retomam mil hectares de Pyelito Kue no MS

    Cerca de 250 Guarani Kaiowá retomaram nesta quarta, 12, a área da fazenda Cambará, incidente sobre o tekoha Pyelito Kue/Mbarakay, em Iguatemi (MS), fronteira com o Paraguai. O grupo vivia, desde agosto do ano passado, em um hectare às margens de estrada vicinal. Homens não identificados atiraram contra a comunidade, de acordo com as lideranças indígenas. Por enquanto, não há confirmações sobre feridos. Segundo as lideranças indígenas, a fazenda tem cerca de 1200 hectares.

    Sem comida, água, convivendo com a poeira e debaixo de lonas, os indígenas decidiram retornar ao local de onde os mais velhos foram expulsos. O grupo divulgou uma carta, no final de 2012, afirmando a decisão de resistir em suas terras até as últimas consequências, o que despertou a atenção da opinião pública nacional e internacional. Na ocasião eles viviam na beira do rio Hovy.

     

    No início da tarde, conforme relato dos Guarani Kaiowá, fazendeiros se aglomeraram a poucos metros da retomada, antes da linha formada pelos indígenas na vicinal. O clima é de tensão e os indígenas estão vigilantes diante das ameaças de ataque. A Funai se dirigiu ao local no início desta noite.

     

    O tekoha Pyelito Kue/Mbarakay é parte de área identificada com 41.571 hectares de extensão pelo Grupo de Trabalho (GT) da Bacia Iguatemipeguá, localizada nas proximidades da Terra Indígena Sassoró. A fazenda Cambará é apenas uma das várias propriedades incidentes sobre a área identificada.

     

    As lideranças pedem às autoridades garantias para ficar no tekoha, posto que foram expulsos por pistoleiros antes do relatório de identificação ter sido publicado pelo Ministério da Justiça. 


    Leia mais:

    Pyelito Kue: "esgotou a nossa paciência"

    Fazendeiro entra com interdito proibitório contra indígenas de Pyelito Kue, MS

    MS: pistoleiros rondam e atacam comunidades Guarani e Kaiowá

    “Ainda estamos vivendo em um hectare de terra”

     

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  • 12/02/2014

    Deputado diz que quilombolas, índios e homossexuais são “tudo o que não presta” e incita a violência

    Um vídeo gravado em audiência pública com produtores rurais, em Vicente Dutra (RS), registra discursos de deputados da bancada ruralista estimulando que agricultores usem de segurança armada para expulsar indígenas do que consideram ser suas terras.

    “Nós, os parlamentares, não vamos incitar a guerra, mas lhes digo: se fartem de guerreiros e não deixem um vigarista desses dar um passo na sua propriedade. Nenhum! Nenhum! Usem todo o tipo de rede. Todo mundo tem telefone. Liguem um para o outro imediatamente. Reúnam verdadeiras multidões e expulsem do jeito que for necessário”, diz o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS). “A própria baderna, a desordem, a guerra é melhor do que a injustiça”, defende.

    Ele afirma que o movimento pela demarcação de terras indígenas seria uma "vigarice orquestrada” pelo ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. Moreira diz também que tal movimento seria patrocinado pelo Ministério Público Federal, o qual, segundo ele, defenderia a “injustiça”.

    No vídeo, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado federal Luís Carlos Heinze (PP-RS), diz que índios, quilombolas, gays e lésbicas são “tudo que não presta”.

    “Quando o governo diz: ‘nós queremos crescimento, desenvolvimento. Tem de ter fumo, tem de ter soja, tem de ter boi, tem de ter leite, tem de ter tudo, produção’. Ok! Financiamento. Estão cumprimentando os produtores: R$ 150 bilhões de financiamento. Agora, eu quero dizer para vocês: o mesmo governo, seu Gilberto Carvalho, também é ministro da presidenta Dilma. É ali que estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas. Tudo o que não presta ali está aninhado”, discursa Heinze.

    Ele também sugere a ação armada dos agricultores. “O que estão fazendo os produtores do Pará? No Pará, eles contrataram segurança privada. Ninguém invade no Pará, porque a brigada militar não lhes dá guarida lá e eles têm de fazer a defesa das suas propriedades”, diz o parlamentar. “Por isso, pessoal, só tem um jeito: se defendam. Façam a defesa como o Pará está fazendo. Façam a defesa como o Mato Grosso do Sul está fazendo. Os índios invadiram uma propriedade. Foram corridos da propriedade. Isso aconteceu lá”.

    Veja os principais trechos do filme aqui:

    Promovida pelo também deputado ruralista Vilson Covatti (PP-RS), que pertence à Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) da Câmara, a audiência pública aconteceu em novembro do ano passado e seu tema foi o conflito dos produtores rurais com os indígenas do povo Kaingang, que vivem na Terra Indígena Rio dos Índios, de 715 hectares.

    Em dezembro do ano passado, produtores rurais do Mato Grosso do Sul organizaram um leilão para arrecadar recursos para a contratação de seguranças privados para impedir a ocupação de comunidades indígenas. O evento recolheu mais de R$ 640 mil e foi apoiado pela bancada ruralista. Parlamentares como a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), estiveram presentes e defenderam a iniciativa.

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  • 12/02/2014

    Nota de solidariedade aos povos indígenas da região da Transamazônica no sul do estado do Amazonas

    Nós missionários/as, religiosos/as, leigos e lideranças indígenas convidadas reunidos na XXXIV Assembleia do Cimi regional Norte I, nos dias 06 a 08 de fevereiro de 2014, depois de analisarmos o contexto do conflito no sul do estado do Amazonas com o desaparecimento e morte de três pessoas, envolvendo os povos indígenas desta região manifestamos:

    Nossa solidariedade aos povos Tenharim, Jahoi e Parintintim atacados e criminalizados de forma indiscriminada, com manifestações estimuladas pelo preconceito e financiadas por aqueles interessados nos recursos naturais de suas terras.

    Muito ao contrário do que tem sido propalado pela mídia e pelas redes sociais o problema não são os povos indígenas e tão pouco são eles os culpados pela morte das três pessoas. Esta generalização, alimentada inescrupulosamente, como é sabido por todos, independentemente se cometida por quem, deve ser apurada e os fatos criminosos devem ser punidos.

    Os povos indígenas tampouco são os responsáveis pelas difíceis condições de vida da população da região, pela ausência de políticas públicas adequadas e pelo abandono do interior. O conflito entre indígenas e a população da região interessa muito aqueles que vivem à custa da exploração humana e da depredação da natureza. Neste sentido devem ser compreendidas as manifestações de setores da sociedade que vem demonstrando interesse corrosivo nas riquezas naturais contidas no território tradicional, que se aproveitam da dor das famílias das três vítimas para alimentar uma campanha contra os direitos constitucionais dos povos indígenas.

    Identificamos com muita clareza na origem do conflito a violência de que foram vítimas os povos indígenas, sobretudo por ocasião da construção da Transamazônica, e suas consequências nefastas que se reproduzem até hoje nas aldeias, sem que o estado até o momento tenha tomado alguma atitude para repará-la ou minimizá-la.

    É inaceitável que os indígenas da região tenham cerceado o seu direito de ir e vir revelando um verdadeiro apartheid social. É imprescindível que o poder público assegure o livre trânsito dos indígenas, e garanta a atenção à saúde e a educação, dentro e fora de suas terras.

    Na apuração de crimes que envolvem grande comoção social requer-se um cuidado dobrado na identificação dos culpados para que inocentes não sejam expostos a execração pública (todos são inocentes perante a lei até que seja comprovada sua culpa mediante o devido processo legal) e no caso para não fomentar ainda mais o ódio e discriminação em relação aos povos indígenas. Achamos por isso precipitada a prisão preventiva dos cinco indígenas Tenharim, com base nas suspeitas da PF, sem que tenham tido a oportunidade de oferecer a sua defesa.

    Que o Deus da Vida ajude a encontrar o caminho da verdadeira Justiça e da reconciliação, possibilitando a convivência pacífica entre os povos indígenas e a população local na luta pela superação de todas as formas de preconceito, injustiça e desigualdade.

    Manaus, 08 de fevereiro de 2014.

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  • 12/02/2014

    Um adeus no Apyka’i

    Outro atropelamento, outra morte na mesma BR, a 463, nos mesmos Km 04, 05, 06. Outra vida é ceifada à beira do caminho. Ao todo, em nome do desenvolvimento nos últimos anos, são sete vítimas. Uma vida jovem!

    A comunidade de Apyka’i vive uma situação muito delicada frente a tantas ameaças. Um lugar que no passado foi o paraíso deste povo hoje está sendo o contrário, o tormento. Até que o Governo Federal e a Justiça decidam pela demarcação da terra da comunidade do Apyka’i.

    As famílias da comunidade revezam-se, durante as noites, em vigília e sentinela para proteger o seu tekoha (sua terra). E, na noite de 07 de fevereiro, enquanto as famílias Kaiowá realizavam rituais e atividades de proteção de seu tekoha, Delci, de 17 anos de idade, viveu os seus últimos momentos.

    Por volta das 21 horas, quando pretendia atravessar a BR-463, foi atropelada por um caminhão que transportava bagaços de cana-de-açúcar. Segundo testemunhas, o caminhão, apelidado de Julieta, de propriedade da Usina São Fernando, que trafegava em alta velocidade, atropelou e matou Delci.

    O sepultamento do corpo ocorreu no dia 10 de janeiro após um ato de protesto contra todas as práticas de violência. Lideranças indígenas de diversos tekohas participaram dos rituais de despedida da jovem Delci.

    Uma jovem mulher, uma mãe foi plantada no solo sagrado. Muitos diziam, mas ela era tão jovem… O pai, a mãe, os irmãos, as irmãs de Delci se aproximaram do caixão para o último adeus! O povo entristecido gritou: “Delci você é mais um anjo no céu para fortalecer a nossa luta na terra”.

    Naquele dia, por três vezes, um avião sobrevoou o local da comunidade. Parecia estarem vigiando o lugar. Quem seria? Qual sua intenção? Jogar flores? Claro que não.

    Quando uma semente morre no solo fértil que grita por justiça, brota com mais vigor, com mais força e produz mais sementes. Nas palavras repetidas pelos Nhanderu (lideranças religiosas) se ouvia o clamor por justiça e a denúncia às violações aos direitos humanos: “Não é matando o nosso povo que vão resolver isso. Se matar resolvesse este problema a solução já teria acontecido, pois o solo de Mato Grosso do Sul está encharcado de sangue indígena”.

    A comunidade continua decidida a permanecer no seu tekoha, mesmo que custe as vidas de todos.

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  • 10/02/2014

    Fé, fome, suor e sangue. Religiosidade e mística nordestina. Entrevista especial com Paulo Suess

    “Vida espiritual significa vigilância sobre um projeto civilizatório, capaz de alienar-nos de nós mesmos, do outro e do mundo. O tema do 13º Intereclesial de CEBs, Justiça e Profecia a Serviço da Vida, é expressão dessa vigilância em defesa do bem viver para todos e do discernimento crítico”, destaca o religioso.

    Em janeiro deste ano a cidade de Juazeiro do Norte (CE), terra de Padre Cícero, abriu as portas para fiéis de vários outros padrinhos. As fileiras dos romeiros engrandeceram com a presença dos mais de 5 mil participantes do 13º Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, cujo tema foi Justiça e Profecia a Serviço da Vida. Além das delegações, estiveram presentes bispos, padres, lideranças indígenas e membros de várias outras religiões (mesmo as não-cristãs).

    De acordo com o Paulo Suess, alemão radicado no Brasil, o que mais marcou o encontro foi a força da mística nordestina. Em uma região onde a religiosidade se mistura ao imaginário dos beatos e beatas, dos padres messiânicos e cangaceiros, a força da religiosidade popular se manifesta de maneiras únicas, ainda que em diálogo com inquietações de todo o Brasil. Assemelham-se nas lutas por justiça e lutas justiceiras, nos messianismos políticos e mesmo nas loucuras messiânicas (como no emblemático caso da Pedra do Reino). “Em cada um de nós, a religião pode alimentar desespero e esperança. Saber para que lado do muro se deve pular é decisão da fé. Mas a fé não é necessidade, é opção.”

    Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Suess destaca as mudanças na visão da religiosidade popular a partir do Concílio Vaticano II, o papel da espiritualidade na vida contemporânea, os desafios da igreja e da sociedade e a busca pelo Bem Viver (Sumak Kawday), baseado na simplicidade, na vida em comunidade, na comunicação e no equilíbrio. “O equilíbrio vivencial encontra-se nas relações que aparentemente são caracterizadas por oposições ou contradições: o indivíduo se desenvolve na comunidade, o trabalho integra o lazer (dança, música, arte), o jejum faz parte do comer. O equilíbrio entre essas oposições garante a vida em sua plenitude”, defende o religioso.

    Paulo Suess, padre, doutor em Teologia Fundamental com um trabalho sobre Catolicismo popular no Brasil. Em 1987 fundou o curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, onde foi coordenador até o fim de 2001. Recebeu o título de Doutor honoris causa das Universidades de Bamberg (Alemanha, 1993) e Frankfurt (2004). É assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor no ciclo de pós-graduação em missiologia, no Instituto Teológico de São Paulo – ITESP. Entre suas publicações, citamos Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007).

    Confira a entrevista.

    Paulo Suess. Foto: marista.edu.br

    IHU On-Line – Uma das grandes dificuldades das confissões religiosas nos dias de hoje é vincular a espiritualidade às práticas do cotidiano. Muitos enxergam uma fratura entre o reino de Deus e a vida material, como se fossem espaços dissociados. Como as CEBs colaboram para a construção de pontes entre os "dois mundos"?

    Paulo Suess – Na passagem pelos documentos do Concílio Vaticano II (1962-65) aprendemos que a “autonomia das realidades terrestres” está vinculada à responsabilidade da humanidade “perante os seus irmãos e a história”. Ao mesmo tempo, ela não está desvinculada da ordem da criação.

    A autonomia se desdobra na liberdade da autodeterminação e da criatividade, e como tal é constitutiva para a dignidade humana. A criação do mundo continua nas “práticas do cotidiano” em todas as suas dimensões. Por isso não faz sentido falar em “fratura entre o reino de Deus e a vida material”, porque nem o reino de Deus está desprovido da vida material, nem “a vida material” está desprovida do espírito.

    A física quântica nos esclareceu sobre o fato de que no fundo da “vida material” encontra-se energia, luz, vida, espírito, processos em mutação permanente. As CEBs vivem esses processos de encarnação na vida. Suas raízes têm asas! Aprenderam no seguimento de Jesus que a vida material nunca é o fim último nem realidade definitiva, e que a vida espiritual está embutida na terra e na água, na dor cotidiana e na morte que é passagem.

    IHU On-Line – Como evangelizar sem alienar? Ou seja, é possível viver em espiritualidade mantendo um pensamento crítico?

    Paulo Suess – O que é “alheio” e produz alienação, e o que é “próprio” e fortalece a identidade? A relação entre ambos é resultado de acordos, consensos e negociações históricas. Tanto “alienar” como “pensamento crítico” pressupõem um fundo de valores e normas constitutivos e assumidos em liberdade por uma determinada comunidade. Quem se “aliena”, se afasta desses valores que compõem uma visão do mundo compartilhada. O pensamento crítico aponta para esse distanciamento da visão do mundo compartilhada e reivindica a volta ao “ideal” abandonado.

    A proposta comum das CEBs, seu ideal, é sua articulação entre fé e vida. Nas CEBs, a relevância da fé é permanentemente aferida a uma vida na qual o fruto do trabalho de todos é repartido igualmente entre todos e apropriado em harmonia com a natureza, tendo particularmente em vista as futuras gerações. O “pensamento” crítico, inerente ao Evangelho, fortalece a “espiritualidade”.

    A vida espiritual, como as CEBs a compreendem, faz um esforço permanente para resistir contra certo “essencialismo nas nuvens” e fora dos contextos e da história. Vida espiritual significa vigilância sobre um projeto civilizatório, capaz de alienar-nos de nós mesmos, do outro e do mundo. O tema do 13º Intereclesial de CEBs “Justiça e Profecia a Serviço da Vida” é expressão dessa vigilância em defesa do bem viver para todos e do discernimento crítico.

    IHU On-Line – De que forma o trabalho promovido pelas CEBs dialoga com a lógica do bem viver (sumak kawsai)?

    Paulo Suess – O bem viver, como está inscrito nas Constituições da Bolívia e do Equador, é um processo de conquistas e esforços históricos permanentes contra tudo que estorva a vida de pessoas, comunidades e sociedades. No horizonte dessa luta está a transformação do Estado do Bem-Estar para poucos em um Estado do Bem Viver para todos (fim da sociedade de classes e dos privilégios) e para sempre (memória dos antepassados, projeto para hoje e para as futuras gerações).

    As comunidades construídas por beatos e beatas nordestinos do século XIX foram herdeiras e construtoras do bem viver rural e precursoras das CEBs de hoje. Da afinidade entre o projeto do bem viver e o projeto das CEBs, emergem eixos comuns. Primeiramente, a simplicidade garante a dignidade da vida para todos. Essa simplicidade nos faz gastar o necessário para todos. Ela não é uma extensão da miséria ou da pobreza; pelo contrário, ela faz todos viverem melhor com menos e em equilíbrio com a vida em sua totalidade.

    A simplicidade é vivida em comunidade que protege contra as tendências de apropriação privada dos bens do planeta Terra através de indivíduos isolados. As comunidades incentivadas pelo padre Cícero viviam segundo um código ecológico ainda hoje válido. O comunitarismo protege contra a emergência permanente de uma sociedade de classe. Tanto nas comunidades nordestinas do século XIX que os beatos animaram, como no paradigma do bem viver almejado pelo mundo andino e nas CEBs de hoje, a vida é marcada pelo trabalho, pela mística e pela redistribuição dos bens. O fracasso dessa redistribuição dos frutos do trabalho seria o fracasso do projeto comunitário como tal. Todos esses projetos (comunidades dos beatos, comunidades do bem viver e CEBs) desencadearam lutas contra a modernização na qual está embutida a promoção individual e concorrencial.

    Sumak Kawsay

    Na base do bem viver das comunidades está o equilíbrio entre os saberes ancestrais e os científicos.

    O sumak kawsay faz parte daquela sabedoria que a humanidade adquiriu ancestralmente nas relações vividas e transmitidas entre gerações. A ciência é parte complementar desse saber adquirido. O equilíbrio vivencial encontra-se nas relações que aparentemente são caracterizadas por oposições ou contradições: o indivíduo se desenvolve na comunidade, o trabalho integra o lazer (dança, música, arte), o jejum faz parte do comer. O equilíbrio entre essas oposições garante a vida em sua plenitude.

    Nos três tipos de comunidades (comunidades dos beatos, comunidades do bem viver e CEBs) prevalece a comunicação oral. O bem viver comunitário exige a superação dos conflitos pelo diálogo e a participação de todos e todas. Essas práticas de oralidade apontam para uma espécie de “democracia participativa” que questiona a escrita e a delegação representativa da ação.

    Vai fazer 60 anos que Lévi-Strauss, em seu Tristes Trópicos, nos lembrou: a escrita “parece favorecer a exploração dos homens, antes de sua iluminação. Essa exploração, que permitia reunir milhares de trabalhadores para obrigá-los a tarefas extenuantes […]. Se a minha hipótese for exata, é necessário admitir que a função primária da publicação escrita foi a de facilitar a servidão”.

    Por fim, ao não se realizar historicamente em sua plenitude, o bem viver das comunidades tem no seu horizonte rupturas sistêmicas e conversão pessoal. Ruptura e conversão têm dimensões religiosas, sociais, políticas, éticas, econômicas e escatológicas.

    IHU On-Line – Este ano o Intereclesial ocorreu em Juazeiro do Norte, terra de Padre Cícero, um religioso que por muitos anos foi recusado pela Igreja. Atualmente, o Vaticano prepara a reabilitação e a possível canonização do padre. Independentemente da decisão de Roma, no entanto, para seus milhares de fiéis espalhados pelo país, Padre Cícero já é santo. Qual a importância deste reconhecimento oficial?

    Paulo Suess – A canonização do padre Cícero não acrescenta nada às curas, graças e consolos que o povo recebe de seu Padim. Mas o povo quer partilhar as suas graças recebidas com toda a Igreja em busca de sua conversão pastoral. O primeiro milagre de Juazeiro do Norte aconteceu na hora da comunhão, da eucaristia, da ação de graças.

    Entre as três forças (o Estado, a Igreja e o Povo), os beatos, via de regra, foram questionados pelos seus poderes políticos e eclesiásticos. Não foi diferente com Padre Cícero, que nasceu em 1844, em Crato, no Ceará. Juazeiro do Norte, onde morreu, em 1934, originalmente pertenceu a Crato, de onde só em 1911 foi emancipado. Por 11 anos e a pedido do povo, o Padre Cícero, que desde 1872 era morador de Juazeiro, foi seu primeiro prefeito.

    A partir de 1872, Cícero desenvolveu intenso trabalho pastoral, com pregações, visitas domiciliares e confissões. Os peregrinos e retirantes foram recebidos em Juazeiro com dignidade. Nunca o padre Cícero mandou alguém de volta para os territórios da fome. Todos foram assentados em comunidades de oração e trabalho.

    Os milagres do Padrinho do Nordeste

    Seguindo a experiência do Padre Ibiapina, Cícero recrutou mulheres solteiras e viúvas para ajudá-lo nos trabalhos pastorais. No dia 1º de março de 1889, ao participar de uma comunhão geral oficiada pelo Padre Cícero na Capela de Nossa Senhora das Dores, a beata Maria de Araújo, ao receber a hóstia consagrada, não pôde degluti-la, pois a hóstia se transformou em sangue.

    O fato se repetiu várias vezes e causou perplexidade na casa episcopal de Fortaleza. Em plena época de romanização, milagres poderiam acontecer na Europa, em Lourdes (11-02-1858) e mais tarde em Fátima, mas não em Juazeiro do Norte. As censuras eclesiásticas de Fortaleza e Roma não se demoraram. O bispo de Fortaleza, D. Joaquim José Vieira, se mostrou muito irritado com o “milagre” de Juazeiro do Norte. O Padre Cícero foi suspenso de ordem. Durante toda sua vida tentou em vão revogar essa pena.

    Cem anos depois, o milagre de Juazeiro passou a ser novamente estudado e as conclusões mostram que não houve embuste atribuído ao Padre Cícero. A grande mudança na abordagem do “caso Cícero” veio com a sedimentação do Vaticano II e com a atitude do atual bispo de Crato, Dom Fernando Panico, em 2001. No Concílio, a Igreja católica procurou fortalecer as Igrejas locais e superar a fase da romanização anterior; fortaleceu a voz do povo de Deus, sobretudo a dos leigos.

    Os romeiros de Juazeiro do Norte tiveram confirmadas a sua voz teológica, a sua infalibilidade no ato da fé (in credendo): “O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo, não pode enganar-se no ato de fé”. O povo de Deus recebeu do Espírito o “senso da fé”. O Papa Francisco, que enviou aos participantes do 13º Encontro Intereclesial das CEBs uma mensagem animadora, diria: “faro da fé”. Tudo isso foi confirmado pelo bispo de Crato, Dom Fernando, que atribuiu sua cura de um câncer, que parecia incurável, à intercessão do Padre Cícero.

    A fidelidade do povo simples, que sempre se soube amparado por seu Padim, e a humildade e gratidão de Dom Fernando conseguiram abrir as portas para a reabilitação e, quem sabe, para a beatificação oficial do Padre Cícero. O “faro da fé” do povo de Deus é como um GPS que indica ruas e veredas da fé. A canonização poderá confirmar esses caminhos e veredas.

    IHU On-Line – A experiência mística nordestina é marcada por beatos, padres e outros personagens emblemáticos que se envolveram em diversas lutas sociais. Como esta mística se caracteriza? De que forma ela se diferencia daquela encontrada no restante do Brasil?

    Paulo Suess – A “mística nordestina” precisa ser analisada em sua grande diversidade. Comum à maioria dessas experiências é o “comunitarismo interno” e o “ceticismo externo” dispensado pela Igreja oficial, romanizada e distante do povo simples. Ao desenhar uma tipologia dessas místicas podemos elencar cinco grupos diferentes.

    Fé e fome

    Primeiramente, o grupo “fome-fé”, cuja organização comunitária, originalmente, acolheu os retirantes das secas e migrantes em busca de condições de uma vida digna. O Padre Ibiapina foi um dos primeiros a se dar conta de que a fome não pode ser combatida somente com fé. Ele acrescentou o que aprendeu na casa dos beneditinos, cujo lema fundacional é “reze e trabalhe” (ora et labora). Nessa casa funcionava a Faculdade de Direito, e Ibiapina ampliou o binômio “fome-fé” por dois componentes essenciais: “trabalho” e “vida em comunidade”. Seu espírito de uma mística articulada com necessidades históricas concretas percorreu todo o sertão.

    O resultado de todas essas comunidades guiadas por fé, fome, trabalho e vida comunitária era a possibilidade de a festa fazer um eixo estruturante da vida. Geralmente, quando se fala da mística nordestina, pensa-se nesse grupo “fome-fé-trabalho-vida comunitária-festa”, composta pelos padres Ibiapina e Cícero, pela beata Maria de Araújo como pars pro toto para tantas outras beatas que sustentaram o trabalho comunitário e social, e pelo beato Zé Lourenço.

    Messianismo

    Ao lado dos grupos “fome-fé-trabalho-comunitarismo-festa” devemos lembrar o grupo da “pedra do Reino”. Durante três anos, de 1835 a 1838, em Pernambuco, uma comunidade com cerca de mil pessoas morou próximo às pedras de 30 e 33 metros de altura. Sua crença era baseada numa visão messiânica, com raízes no sebastianismo de Portugal. Dom Sebastião foi o rei português morto em 1578 quando, aos 24 anos, se lança numa Cruzada, rumo ao Marrocos. Seu corpo nunca fora encontrado e sua volta, sempre esperada.

    No sertão pernambucano, o jovem João Antônio foi o primeiro a pregar a volta do rei Sebastião para consertar a precariedade da vida social. Seu sucessor, que rachou radicalmente com a Igreja Católica institucional, foi o cunhado João Ferreira. O fanático João Ferreira reunia seus seguidores em torno de um grande rochedo (a "Pedra do Reino") e dizia que, para que o rei Sebastião revivesse e pudesse realizar o milagre da riqueza, era preciso que a grande pedra ficasse totalmente tingida com sangue humano.

    Quem doasse o sangue para a volta do rei seria recompensado: velhos ressuscitariam jovens; pretos voltariam brancos; e todos, além de ricos, seriam imortais na nova vida. Famílias empobrecidas de agricultores, com a última camisa da esperança, acamparam em volta da rocha e passaram a aguardar o milagre. A espera terminou com o massacre da Pedra do Reino, promovido por João Ferreira. Entre os dias 14 e 16 de maio de 1838, 53 pessoas foram sacrificadas. Uma patrulha do exército massacrou os sobreviventes.

    A este leque de místicos nordestinos pertence também o movimento messiânico de Antônio Conselheiro (1830-1897), fundador da Cidade Santa de Belo Monte, destruída na “guerra santa” de Canudos (1897), e o capuchinho italiano Frei Damião, com uma mensagem de conteúdo moral, apologético e espiritualista que divulgou em Santas Missões, confissões, celebrações eucarísticas, sempre convidando à conversão. Por causa de sua mensagem estritamente religiosa, Frei Damião foi um dos poucos “beatos” do Nordeste, política e eclesiasticamente, não perseguido. Por causa de sua amabilidade e fidelidade ao seu estilo de peregrino-missionário do Nordeste, o povo o “adorou” como um santo e os governos federal e estadual declararam luto oficial no dia de sua morte.

    Cangaço

    Nesta ciranda de místicas nordestinas falta ainda a mística guerrilheira do grupo de Lampião. Com certa espiritualidade escatológica e com pitadas de Robin Hood, alegou defender os pobres, espalhando terror. Lampião, em certo momento de suas andanças, chegou também em Juazeiro do Norte (1926), de onde o Padre Cícero, com delicadeza e prudência, logo conseguiu afastá-lo.

    Lampião atuou durante as décadas de 20 e 30 do século XX em praticamente todos os estados do Nordeste. Por parte das autoridades, Lampião simbolizava a brutalidade; para uma parte da população do sertão, ele encarnou valores como a bravura, o heroísmo e o senso da honra. Em 1938, Lampião e sua companheira Maria Bonita com mais nove cangaceiros foram assassinados por ordem do Estado Novo.

    A mística de Lampião e do cangaço tem traços da mística de certos profetas do Antigo Testamento. Confirmou a experiência de que todas as religiões lutam no decorrer de sua história contra traços de violência embutidos no perfil de seus seguidores. As religiões podem ser amortecedores e articuladores de violência.

    A mística nordestina

    Cada um dos cinco grupos (Fome-fé, Pedra do Reino, Antônio Conselheiro/Canudos, Frei Damião, Cangaço de Lampião) mereceria uma análise profunda. A partir das respectivas opções político-religiosas, essa análise poderia mostrar as grandes diferenças dessas místicas entre si e com o “restante do Brasil” — por exemplo, com o Contestado de João Maria —, mas também semelhanças significativas: lutas por justiça e lutas justiceiras, messianismos políticos e loucuras messiânicas, pregações alienadas e alienantes, opções suicidas e opções pela vida. Em cada um de nós, a religião pode alimentar desespero e esperança. Saber para que lado do muro se deve pular é decisão da fé. Mas a fé não é necessidade, é opção.

    IHU On-Line – Qual sua avaliação sobre o 13º Intereclesial de CEBs? De que forma as discussões apresentadas no evento dialogam com os desafios contemporâneos da Igreja?

    Paulo Suess – Através do 13º Intereclesial de CEBs pôde-se mostrar a relevância de processos — e a irrelevância de eventos — para o diálogo com desafios contemporâneos da Igreja. A Jornada Mundial da Juventude, que ocorreu entre 23 e 28-07-2013 no Rio de Janeiro, por exemplo, foi um evento organizado em torno da visita do Papa Francisco, que conseguiu fazer passar a sua mensagem. No entanto, ao lado das belas mensagens de Francisco, o evento deixou dívidas extraordinárias que obrigaram a Igreja local a vender um prédio do hospital Quinta D’Or por R$ 46 milhões. Mesmo assim, ainda restou um rombo de R$ 90 milhões. Já do 13º Intereclesial de CEBs, organizado seis meses mais tarde em Juazeiro do Norte (07 a 11-01-2014), não constam dívidas significativas. O evento reuniu mais de 5 mil pessoas em Juazeiro do Norte (CE), deixou saudade e impulsos para a prática da justiça a serviço da vida.

    A partir das experiências de Juazeiro do Norte e do Rio de Janeiro eu arriscaria a tese: “eventos” no âmbito eclesial se tornam, economicamente, cada vez mais insustentáveis e, espiritualmente, com nenhum impacto sobre ações de conjunto dos participantes. Eventos podem ser progressivamente substituídos pela mídia: videoconferências, internet, Facebook, Skype, etc. “Processos” são escolas de vida e fé, portanto, escolas políticas e religiosas, escolas de mística militante missionária, capazes de dar impulsos concretos para a transformação da realidade que oprime os pobres.

    No Intereclesial, o diálogo com os desafios contemporâneos da Igreja aconteceu em vários níveis. Numa época de “vacas magras”, mostrou que a autossustentação, articulada com a solidariedade internacional, é capaz de realizar um evento desta magnitude. Além disso, já é uma longa tradição, no processo em que as CEBs se constituíram, que os Intereclesiais nacionais sejam precedidos por encontros nas regiões onde acontece o diálogo real com os desafios contemporâneos da Igreja no mundo de hoje, com seus reflexos nas Igrejas locais.

    A Organização do Intereclesial

    O Intereclesial Nacional é povoado por delegados que participaram do processo preparatório nas regiões. Eles são os que trazem o mosaico da realidade regional, as vitórias e derrotas, as alegrias e as dores de suas comunidades para o gran finale — em nosso caso, o 13º Intereclesial de Juazeiro do Norte. Em reuniões plenárias, em grupos e subgrupos dos participantes acontece o processo de partilha das diferentes realidades e a troca dos figurinos. Assessores ajudam a integrar as diferentes realidades numa visão global e oferecem impulsos para políticas de ação.

    O conjunto do acontecimento de Juazeiro do Norte e de seus encontros preparatórios estava seguindo indicações da V Conferência de Aparecida (2007): seguir Jesus que é o caminho, testemunhar o Deus Amor, que “se mostra mais nas obras do que nas palavras”, anunciar o Reino da vida, denunciar — “como profetas da vida” — a crise civilizatória e as políticas governamentais que beneficiam as elites e não os pobres e, por fim, celebrar o dom da vida.

    O processo preparatório dos Intereclesiais, a partir das comunidades e regiões, permite a intervenção permanente da realidade na caminhada. Esse processo próximo às bases permite a autossustentação dos encontros e facilita a articulação entre fé e vida.

    (Por Andriolli Costa)

     

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  • 09/02/2014

    Jovem Guarani Kaiowá morre atropelada em rodovia às margens do tekoka Apyka’i

    Por Renato Santana,
    de Brasília (DF)

    Deuci Lopes, 17 anos, jovem Guarani Kaiowá, morreu atropelada na noite deste sábado, por volta das 21 horas, às margens do tekoha Apyka’i, no KM 5 da BR-463, corredor que liga Dourados a Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Deuci, que deixa um filho de dois anos, estava acompanhada do marido quando um caminhão carregado com bagaço de cana a atingiu arrastando-a por alguns metros.

    De acordo com indígenas que testemunharam o atropelamento, o caminhão pertencia a Usina São Fernando, grupo que arrenda as terras, reivindicadas pelos indígenas do Apyka’i, de um fazendeiro já acusado de ataques contra os Guarani Kaiowá.

    O motorista do veículo não reduziu a velocidade e fugiu do local sem prestar socorro. A jovem morreu na hora. A velocidade permitida no trecho em que ocorreu o atropelamento é de 60 km. No entanto, de acordo com os indígenas, o veículo vinha a cerca de 120 km.  Esta é a sexta morte por atropelamento de indígenas no Apyka’i desde 2009, ano em que foram expulsos da terra tradicional. O último, em março do ano passado, matou um garoto de quatro anos.

    “Acontece (atropelamentos) de indígenas em todo estado. Ali no Apyka’i é o sétimo. Sempre de forma bem parecida: o veículo passa por cima e vai embora, sem prestar socorro. Isso é crime e as autoridades precisam investigar. Fora os atropelamentos que não acabam em mortes, mas deixam índios gravemente feridos”, destaca Tonico Benites, liderança da Aty Guasu, organização do povo Guarani Kaiowá. 

    Benites ressalta que há 14 anos a comunidade de Apyka’i está às margens da BR-463. Para ele, os envolvidos no transporte da cana para as usinas nos centros urbanos sabem do tráfego e residência das comunidades Guarani Kaiowá na beira da rodovia. “A área ali está em processo de demarcação, já teve retomada e expulsão. Pistoleiros atacaram. Me pergunto: porque insistem em passar no local acima do limite de velocidade, atropelam e não prestam socorro?”, questiona.

    Em setembro do ano passado, os Guarani Kaiowá de Apyka’i retomaram um pequeno pedaço da terra tradicional, onde incide a Fazenda Serrana, que arrenda a área para a Usina São Fernando. O trecho retomado, que desde então a comunidade está instalada, fica a poucos metros da BR-463 e a cerca de sete quilômetros de Dourados. A rodovia, portanto, é a única forma dos indígenas se locomoverem a pé, pelo acostamento, entre a aldeia e a cidade.

    “Quando eles foram retirados do local em 2009, se dirigiram para a beira da rodovia. Mesmo assim foram atacados por pistoleiros. Em agosto de 2013, a Aty Guasu denunciou que seguranças da Gaspem impediam a comunidade de acessar um córrego para obter água”, lembra Tonico Bentites.

    Com a ocupação de setembro do ano passado, os indígenas receberam a notícia de que a Justiça despachou, mais uma vez, reintegração de posse a favor do fazendeiro para o final deste mês. Liderados por Damiana, que já teve o marido, dois filhos, além de netos e sobrinhos, mortos por atropelamentos, os Guarani Kaiowá do Apyka’i resistem ao despejo, a rodovia e aos pistoleiros.

    Enquanto isso, no cemitério do Apyka’i, o sétimo túmulo será aberto: seis vítimas de atropelamentos e uma idosa que morreu intoxicada pelo veneno despejado por um avião sobre a lavoura que cresce numa terra que deveria estar ocupada pelos Guarani Kaiowá.    

    Usina São Fernando

    De acordo com os Guarani Kaiowá do Apyka’i, o caminhão que atropelou Deuci e não prestou socorro é da Usina São Fernando, instalada desde 2009 em Dourados. Segundo apuração da ONG Repórter Brasil, a propriedade em que o tekoha Apyka’i está foi arrendada para o plantio de cana-de-açúcar pela Usina São Fernando.

    A usina, por sua vez, é um empreendimento da Agropecuária JB (Grupo Bumlai) com o Grupo Bertin, um dos maiores frigoríficos da América Latina.

    “Acreditamos que a demora em demarcar as terras e as seguidas reintegrações de posse são as principais razões para estes atropelamentos. Se a terra tivesse demarcada e a comunidade nela, nada disso teria acontecido”, ressalta Tonico Benites.

    Pela demarcação e contra a reintegração de posse, foi lançada nesta última semana a Campanha pela Demarcação da Terra Indígena Apyka’i. Com um abaixo-assinado, os Guarani Kaiowá pretendem sensibilizar as autoridades.

    Acesse: campanhaguarani.org/apykai

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  • 08/02/2014

    Os discursos e estratégias contra as demarcações de terras dos povos indígenas e quilombolas no Rio Grande do Sul

    No Rio Grande do Sul, se intensificam os ataques às demarcações de terras para comunidades indígenas e quilombolas. Nos discursos disseminados nos meios de comunicação, especialmente por autoridades, os problemas causados pelas demarcações são explicados basicamente a partir de três argumentos: o primeiro afirma haver interesses de grupos estrangeiros nas terras indígenas e isso explicaria o empenho de ONGs e entidades indigenistas (de assessoria aos índios) na defesa das demarcações. O segundo afirma que se trata de muita terra para os "índios", porque estes "não trabalham" e/ou porque arrendam as terras que possuem. O terceiro argumento, e certamente o mais contundente, reitera que não se pode, a pretexto de demarcar terras para índios, cometer injustiças com os agricultores que “produzem” alimentos para a população.

    Em um primeiro olhar, esses argumentos podem parecer bastante convincentes, porque estão naturalizados especialmente nos discursos midiáticos e cotidianos, mas eles têm sido utilizados como escudo para desviar a atenção de questões bem mais complexas (a exploração ao meio ambiente, favorecimento aos setores do agronegócio e o racismo institucionalizado). Antes de tudo, é necessário esclarecer que povos indígenas têm seus direitos originários (sobre as terras que ocupam) amparados pela Constituição Federal de 1988 – Art.231 e 232. Tais direitos já estavam resguardados, antes da promulgação desta lei, através de outras normas que a precederam e onde se previa que terras indígenas fossem reservadas aos “índios”. Basta lembrar que as primeiras demarcações de terras – na forma de reservas indígenas – ocorreram há mais de um século. Antes ainda, há registros de que os povos indígenas tenham obtido a garantia de suas terras por serviços prestados ao governo, por exemplo, na Guerra do Paraguai, em 1864. Portanto, não é nenhuma novidade a necessidade de se demarcar terras indígenas.

    Em relação ao primeiro argumento elencado anteriormente, de que nos movimentos em defesa das demarcações de terras indígenas haveria algum tipo de complô de interesses "estrangeiros" contra a "Nação", basta lembrarmos que as terras indígenas são bens da União, que devem ser protegidas e resguardadas ao uso exclusivo dos povos indígenas. Este dispositivo legal é suficiente para mostrar que, se há interesses estrangeiros sobre terras brasileiras, certamente as áreas indígenas seriam as menos adequadas, porque qualquer investimento sobre elas que não possua a autorização do Congresso Nacional é considerado ilegal. A pressão do movimento indígena e de setores aliados pela demarcação é, portanto, legítima e se orienta pelos termos da própria Constituição Federal de 1988 que estabeleceu, no artigo 67 das Disposições Transitórias, um prazo de cinco anos para que o governo procedesse às demarcações de todas as terras indígenas. Passaram-se 26 anos, e a maioria das terras ainda não foi regularizada. Não bastasse a demora na demarcação das terras, indispensáveis à manutenção física e cultural das comunidades indígenas, elas são ainda vítimas do preconceito, posto que se imagina haver “outros interesses” que as manipulam, como se seus direitos não fossem legítimos.

    O segundo argumento contrário às demarcações, no qual se afirma que "é muita terra para poucos índios", filia-se a um entendimento de que as terras são recursos necessários ao desenvolvimento nacional, regional, local e que, por isso, devem ser produtivas. Nessa direção, indaga-se sobre o porquê de os índios quererem “tanta terra” acionando-se uma lógica racista a partir da qual se avaliam as formas de viver e de trabalhar de todos os povos e culturas a partir dos critérios ocidentais e de uma racionalidade neoliberal, tomada como universal. Por essa ótica racista, só trabalha quem efetivamente faz a terra “produzir”, quem atua sobre ela aproveitando seus potenciais; em oposição, aqueles que desenvolvem uma relação mais respeitosa com o ecossistema e uma atitude preservacionista são vistos como sujeitos que não trabalham, não tem ambição, não sabem dar valor (econômico) à terra.

    E o argumento de que se trata de muita terra para os índios se desdobra em outro – de que eles não precisam da terra, por isso a arrendam. Mesmo que eventualmente se registrem casos isolados de arrendamento em terras indígenas, vale lembrar que esta é uma prática ilegal, passível de penalização, e que a fiscalização sobre as terras indígenas é de responsabilidade do poder público. A Constituição Federal instituiu, para as comunidades indígenas, o direito a posse permanente e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam (Art. 231, § 2º). O usufruto nas terras indígenas tem caráter coletivo e não individual e, portanto, o direito é das comunidades indígenas e não de cada pessoa individualmente, não podendo ser utilizadas por terceiros. Se o arrendamento ocorre, tal fato denota muito mais a omissão do poder público, que não fiscaliza e não assegura o usufruto exclusivo aos indígenas, o que prejudica enormemente as comunidades por práticas como estas.

    O terceiro argumento contrário às demarcações também pode ser desnaturalizado: trata-se da ideia corrente de que, a pretexto de demarcar terras para índios, não se poderia cometer injustiças com os agricultores que produzem o alimento da população. Para entender essa questão, é necessário retomar alguns aspectos históricos que nos levam a situação atual, em que índios e agricultores disputam as mesmas terras.

    Nas primeiras décadas do século XX, sob argumentos positivistas e desenvolvimentistas, os governos empenharam-se em promover a ocupação territorial e a colonização de espaços considerados “devolutos”. Neste período, a literatura sobre o tema registra a ocorrência de inúmeras práticas de “limpeza étnica”, a partir das quais aldeias inteiras foram exterminadas. Centenas de outras comunidades foram expulsas de suas terras tradicionais e despejadas em outras localidades. Tais remoções forçadas ao longo da história originam os conflitos contemporâneos, posto que, são estas as terras, loteadas e vendidas pelo governo do estado do Rio Grande do Sul em décadas anteriores, que agora estão sendo pleiteadas para demarcação. Tanto do lado dos povos indígenas e quilombolas, quanto do lado dos agricultores (que hoje residem sobre as terras) há muitos homens e mulheres que vivenciaram aquele período e que relatam os acontecimentos, indicando que nas terras pleiteadas para demarcação existem indícios materiais da presença indígena e de quilombos, como cemitérios, destroços de antigas moradias, restos de artefatos utilizados para caça, entre outros.

    Pois bem, se a tradicionalidade da ocupação indígena e de quilombos não pode ser negada, valem os preceitos constitucionais de que estas terras – no caso das indígenas – são bens da União, que são inalienáveis e indisponíveis e que os direitos indígenas sobre elas são imprescritíveis (Art. 231, §4º). Não é possível, portanto, imaginar que o erro cometido pelo Estado – ao disponibilizar para colonização e titular terras que não lhe pertenciam – não seja corrigido agora para evitar que ocorra uma injustiça contra os agricultores. É necessário, isso sim, exigir que o Estado responda por seus erros sem que se penalizem os agricultores, estes que, com seu suor, produzem alimentos. Eles têm direito a uma justa indenização e a uma alternativa viável, que deve ser apresentada pelo Estado, para continuar a viver da agricultura, em terras legalmente tituladas e compatíveis com seus modos de produção.

    Também é importante lembrar que, entre os injustiçados, as maiores vítimas são os povos indígenas e quilombolas, porque não têm acesso às condições mínimas de vida, estão confinados em pequenas porções de terra. Exemplo disso é o que ocorre na área indígena Estiva, onde 40 famílias do povo Guarani sobrevivem em apenas sete hectares. Outras tantas comunidades indígenas vivem em acampamentos provisórios, aguardando que o poder público realize os procedimentos de demarcação: são pelo menos 18 acampamentos situados às margens de rodovias no estado do Rio Grande do Sul. Não é por acaso, portanto, que os maiores índices de desnutrição, de incidência de doenças e de mortalidade infantil são registrados entre as populações indígenas.

    E mais uma vez, por falta de vontade política para proceder às demarcações das terras indígenas e quilombolas, se apresenta como alternativa a remoção das comunidades para pequenas áreas adquiridas pelo estado. A pergunta que fica, diante destas propostas, é: por que o governo não oferece terras para o reassentamento dos agricultores? Aos povos que estão em luta pela demarcação às propostas apresentadas significam, no limite, a negociação do direito constitucional. Através do reassentamento em pequenas porções de terra e de assistência às necessidades básicas, as comunidades abririam mão de territórios tradicionais que hoje estão em processo de demarcação, “finalizando-se” assim os conflitos. Essa é uma solução que se supõe justa e pacífica, mas penaliza os povos originários, e mais uma vez se pratica uma violência contra estes.

    Aliás, violenta é também a forma de assédio que algumas comunidades vêm sofrendo, quando servidores do poder público estadual apresentam como única alternativa, neste contexto de disputas, a transferência de famílias indígenas para áreas que o estado está oferecendo, caso contrário, em não aceitando a proposta, permanecerão indefinidamente em acampamentos provisórios e em situação de abandono e de desassistência. Causa estranheza e preocupação o fato de o governo do Rio Grande do Sul em suas investidas para a remoção das famílias indígenas não apresentar como alternativa imediata à conclusão do procedimento de demarcação do “Parque Estadual de Itapuã”, atualmente administrado e explorado economicamente pelo Estado. Os estudos realizados pela Funai comprovaram que o parque é terra tradicional do povo Guarani.

    Por fim, não se pode a pretexto de retirar os "índios da beira das estradas", impor-lhes o castigo de nunca mais terem direito a demarcação de suas terras. Infelizmente vem sendo realizados acordos que prevê a redução dos limites de terras já demarcadas, caso de Mato Preto em Getúlio Vargas (onde o próprio procurador do MPF participou da negociação), bem como a transferência de comunidades para áreas distantes de suas terras tradicionais, casos das comunidades Guarani do Arroio do Conde e Irapuá.

    Na prática, os governos fazem uso da situação de miséria e pobreza em que se encontram algumas comunidades indígenas para relativizar o alcance de seus direitos constitucionais e impor, como contrapartida, medidas paliativas e compensatórias. Perpetuando-se, com isso, as injustiças aos povos indígenas e quilombolas.

    Em 07 de fevereiro de 1756 os Exércitos da Espanha e Portugal se uniram para massacrar os povos indígenas que lutavam pela defesa de seus territórios. Em uma das batalhas foram mortos mais de 1500 guerreiros Guarani e assassinado Sepé Tiaraju. Continua a luta de Sepé e seus companheiros 258 anos depois. Os povos indígenas e quilombolas, como naquele período, permanecem em batalha contra as injustiças, a discriminação e pelo direito de viverem num pedaço de terra.

    Porto Alegre, RS, 07 de fevereiro de 2013, dia de Sepé Tiaraju.

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