• 15/08/2014

    Boletim Mundo: Apib repudia novo modelo proposto pelo governo para atendimento à saúde dos povos indígenas

    A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou nesta sexta-feira (15) nota pública repudiando a proposta apresentada pelo ministro da Saúde, Arthur Chioro, para criação de um novo modelo de atendimento à saúde para as populações indígenas. Confira na íntegra:


    Nota pública sobre o novo modelo institucional proposto pelo governo para o atendimento à saúde dos povos indígenas

    A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), considerando a proposta de um “novo modelo institucional para atendimento de saúde às populações indígenas”, apresentado na segunda-feira, 4 de agosto, pelo ministro da Saúde Arthur Chioro e auxiliares, a lideranças da bancada indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista e dirigentes do movimento indígena, vem de público manifestar a sua indignação e repúdio a mais este ato de descaso do atual governo no tratamento dos direitos indígenas. Logo num contexto de ataques sistemáticos a esses direitos, agravados pela conivência e por este novo feito que ao invés de assegurar um futuro melhor torna mais imprevisíveis as políticas e práticas de atendimento específico e diferenciado aos povos indígenas, na área da saúde.

    Os povos indígenas por mais de 10 anos sofreram pelo atrelamento do subsistema de saúde indígena a interesses político-partidários que impossibilitaram que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) se estruturasse devidamente para implementar com eficiência a atenção básica à saúde dos povos indígenas. Por isso se envolveram totalmente nas articulações e mobilizações políticas e legislativas que possibilitaram a criação da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), e inclusive com a indicação, através de suas organizações representativas, do atual Secretário, do senhor Antonio Alves.

    Propor um novo modelo, por meio da criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI) sem sequer, depois de 4 anos, ter consolidado a Sesai e mostrado diferenças substanciais com relação ao atendimento oferecido pela Funasa, e menos ainda sem ter conversado com nenhum dos segmentos envolvidos na saúde indígena, principalmente os usuários, é de se lamentar e considerar que o Ministério da Saúde e o Ministério do Planejamento estão agindo de acordo com interesses não revelados, de má fé e falta de lealdade, principalmente por parte dos gestores que até o momento tiveram o respaldo do movimento indígena por meio de seus representantes, nas instâncias de controle social, que mesmo funcionando precariamente estão instituídos legalmente.

    Com esta medida, o governo, além de frustrar as expectativas dos povos, organizações e lideranças indígenas em relação às condições que poderiam melhorar o atendimento à saúde indígena, que envolve a autonomia política, administrativa e financeira dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), reivindicada há tantos anos, demonstra a sua incapacidade de lidar, senão o seu preconceito, com a diversidade étnica e cultural dos povos indígenas, acreditando que um novo arranjo institucional testado em espaços urbanos  e com perfil privatizante irá pôr fim ao atual quadro de descaso e atendimento precário em que está a saúde dos povos indígenas.   

    Ao invés de assumir a sua responsabilidade, o governo a transfere para o setor privado, possivelmente para se livrar das pressões e cobranças dos povos indígenas, intenção manifesta na explicita redução, quase que exclusão, do controle social no novo modelo proposto.

    Se foi possível a criação de condições para a contratação de servidores efetivos, via concurso, para a Fundação Nacional do Índio (Funai), que cuida de um dos aspectos fundamentais da vida dos povos indígenas –a demarcação e proteção de seus territórios- por quê o governo não faz o mesmo para esta área sensível que é a saúde indígena e prefere jogar recursos públicos para novos arranjos e ações cujos resultados não podem ser garantidos. Por exemplo, quem garante que o INSI facilitará a aceitação e legitimação dos profissionais pelas comunidades, a contratação de membros dessas comunidades e a superação da dificuldade de acesso às aldeias em razão da extensão territorial?  Para que mesmo vai servir a Sesai nesse contexto?

    Por essas e muitas outras razões, a Apib reivindica do governo, dos Ministérios da Saúde e do Planejamento, que desista desta nova tentativa de regredir com as conquistas dos povos indígenas, garantindo contrariamente a implementação efetiva da Sesai.

    Aos povos e organizações indígenas, a Apib chama para ficarem atentos e mobilizados contra quaisquer iniciativas que tentem reverter ou desconstruir direitos conquistados com muita luta, como a própria Sesai, pensada para superar as péssimas condições em que a Funasa deixou o atendimento básico à saúde indígena, mas que não se efetivou por falta de compromissos e vontade política. O governo não poderia ter feito esta absurda proposta que contraria todo o espírito do Sistema Único de Saúde (SUS) e do subsistema de saúde indígena, afrontando ainda “mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”, estabelecidos pelo Decreto No. 8.243, de 23 de maio de 2014, da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS).

    A Apib relembra por fim que está em andamento o processo de realização da I Conferência Nacional de Política Indigenista, na qual estará em discussão o tema “A relação do Estado Brasileiro com os Povos Indígenas sob o paradigma da Constituição de 1988”. Certamente essa será a ocasião para o movimento indígena reiterar a sua autonomia e a superação da relação colonialista que caracterizou a postura histórica desse Estado, bem como a reafirmação “das garantias reconhecidas aos povos indígenas no país” e a proposição de “diretrizes para a construção e consolidação da política indigenista nacional”, tal qual reza o Decreto No. 141 de convocação da Conferência. Nessa perspectiva a política da saúde indígena não pode tomar caminhos diferentes, a não ser para garantir o atendimento realmente de qualidade, específico e diferenciado aos povos indígenas.

    Brasília – DF, 14 de agosto de 2014


    Esta notícia foi veiculada no boletim semanal O Mundo Que Nos Rodeia. Para recebê-lo ou enviar sugestões de pauta, escreva para mundo@cimi.org.br

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  • 15/08/2014

    Bravos Índios Livres

    Por Renato Santana,

    Enviado a Feijó (AC)

    O barulho do batelão reverbera no interior da floresta. Sobre o teto do barco, no horizonte de pálpebras cerradas pelo sol do meio-dia, a zoada mais parece uma revoada de pássaros com asas de ferro invisíveis. A estridência metálica, dentro da mata, espanta araras, macacos e demais bichos no sincopado tu-tu-tu-tu do motor, som reconhecido pelos indígenas em situação voluntária de isolamento na Amazônia como sinal aliterado da sociedade que os envolve. É inverno nesta porção extrema do país.As águas correm abundantes e a embarcação singra, sem muitos percalços, as entrelinhas da lâmina de água, lidas atentamente pelo barqueiro que desvia de troncos, na maioria das vezes submersos, e evita trechos mais rasos ou de intenso rebojo. No verão o rio seca e apenas cascos pequenos conseguem passagem entre as praias naturais, cujas areias oferecem aos isolados ovos de tracajá. O calor e a umidade perpassam as estações, assim como os piuns e carapanãs. O batelão navega contra a corrente vazante, e sete dias depois da saída do porto movediço de Feijó (AC) chegamos à Terra Indígena Kampa/Isolados, demarcada no paralelo 10°S, Alto Rio Envira, já na fronteira do Brasil com o Peru, onde as águas tingidas pelos sedimentos e barro passam a dar vida ao Rio Xinane. Esse vasto mundo se reduz, a cada dia, para os isolados, ainda que tenha o mesmo tamanho.

    A região é uma das últimas no mundo a ter grupos de povos livres. Com a Constituição de 1988 e mais protegidos pelas demarcações, todavia vulneráveis às invasões dos territórios, eles conseguiram resistir aos massacres e dobraram suas populações nas últimas décadas. Exercem o pleno direito de resistência às vontades integracionistas da “civilização” e preservam suas próprias instituições sob a memória de uma vida de correrias. Chamadas na região de bravos, essas populações se negam ao contato com as sociedades que as envolvem – sejam as indígenas ou mesmo as ribeirinhas, cujas origens naquelas matas estão em famílias de seringueiros instaladas por ali desde o final do século XIX e decorrer do XX pelas frentes de colonização. Os ashaninka, tal como eles se autodenominam, dividem a Terra Indígena Kampa/Isolados com os bravos e os chamam de maxiriantsé, os valentes. A semântica oferece outro significado para o aparente tom pejorativo da palavra bravo, mas delimita a complexa noção de alteridade presente entre essas nações e seus convívios autodeterminados. No entanto, em terras onde grupos indígenas insistem contra a capitulação de suas formas livres de vida e outros lutam diariamente pela sobrevivência em interface com a sociedade branca, ser bravo, no sentido dado pela língua ashaninka, tornou-se um traço marcante entre esses povos. As relações culturais críticas dessas experiências, no reforço das alteridades tanto dos isolados como dos demais povos, geram um dos contextos mais complexos entre isolados e índios contatados do Brasil.

    Entre o final de junho e durante todo o mês de julho essa história ganhou mais um episódio. Um grupo de indígenas livres causou alvoroço ao entrar na aldeia Simpatia, onde vivem os últimos ashaninka antes da fronteira com o Peru. Durante o primeiro semestre deste ano, os ashaninka relataram acontecimentos similares, todos encaminhados ao Ministério Público Federal (MPF) e à Fundação Nacional do Índio (Funai) pelos indígenas por intermédio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Não se trata, portanto, de um contato inédito. Dessa vez, porém, a Funai decidiu agir e montou na aldeia, em parceria com o governo do Acre, a Operação Simpatia. Os indígenas ficaram impedidos de sair da comunidade. No dia 26 de junho, servidores do órgão indigenista e os ashaninka estabeleceram novo contato com alguns desses livres que, conforme a equipe de sertanistas, estavam com gripe. A Funai divulgou foto com três deles. Durante o tratamento realizado por profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), os indigenistas identificaram que esses livres falam um idioma do tronco linguístico pano, o mesmo de outros povos do Acre e Peru. Os isolados então puderam ser entendidos, de forma precária, sobre os ataques que vêm sofrendo, possivelmente de madeireiros e narcotraficantes peruanos. Em seguida voltaram para o interior da floresta no caminho das malocas de seu povo. Desativada há pouco mais de três anos, a Base do Xinane da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira retomará os trabalhos.   

    Frente da borracha… Frente Etnoambiental

    Na Terra Indígena Kampa/Isolados está instalada também a Base do Xinane, a três horas de barco da aldeia Simpatia no rumo da fronteira com o Peru. A estrutura foi abandonada depois de ataque de narcotraficantes, em junho de 2011.1 Antes, porém, de entender essa história que impactou a vida tanto dos ashaninka quanto dos bravos nos últimos anos, além do povo madja, também presente naquelas terras, precisamos fazer uma retrospectiva que remonta a cerca de cem anos atrás. No início do século XX, sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial, as mobilizações voltadas à ocupação territorial da região Norte do Brasil se acentuaram. Nas décadas de 1930 e 1940, com ênfase no governo de Getúlio Vargas e nos acordos firmados com os Estados Unidos ante os esforços da guerra travada na Europa, frentes de colonização foram organizadas e seguiram rumo aos confins da Amazônia. Se por um lado a exploração das seringas entraria em seus ciclos econômicos, por outro o Norte passaria a ser parcialmente povoado, e o “espaço vazio” brasileiro, assim considerado pelo governo central, preenchido. Todavia, aquelas florestas tinham dono. Não estavam vazias. Nelas viviam povos indígenas ainda sem contato, que também fugiam. Entrecortado por rios com nascentes nos Andes e correntes às águas do Amazonas, a grande serpente, o Acre foi um dos estados que teve suas seringas e nações indígenas rasgadas por inúmeras frentes de colonização da borracha.

    As varações e os igarapés entre os principais rios do estado foram as principais rotas de fuga dos povos indígenas. Os mais velhos chamam esse período de “tempo das correrias”. As mortes eram hediondas aos indígenas que resistissem à escravidão e às vontades dos senhores no poder. Caçadores de índios em nada perdiam aos seus antepassados que ilustraram em tintas de terror a história da invasão europeia à Ameríndia. No Rio Envira, onde, no Médio, viviam os huni kui e, no Alto, os madja, os grupos isolados, para fugir da violência das frentes de colonização, seguiram para mais perto da fronteira com o Peru e para além dela, numa área de circulação que lhes possibilitava resistir. Ao Envira, no entanto, as frentes de colonização não levaram apenas a própria sanha, mas também outros indígenas, que entre outros trabalhos atuavam como mateiros, além de intermediários ao contato agressivo com os povos livres. Afinal, se naquelas terras não viviam, ao menos circulavam. Os isolados, desde então, associam os ashaninka ao tempo dos massacres, contatos violentos, mortes e fugas. Com o fim dos ciclos da borracha, tais frentes de colonização desfizeram-se. Aos ashaninka e povos livres restou a herança do trauma coletivo, que segue pautando as relações entre essas sociedades. Nos últimos anos, com o retorno cada vez mais acentuado dos isolados a antigos territórios hoje ocupados pelos ashaninka, as excursões de livres às aldeias têm sido constantes. Levam terçados, roupas, redes, utensílios domésticos, tudo o que se pode colher nas roças e até mesmo crianças. Os ashaninka aprenderam a lidar com tais “delitos” sem violência, mas temem que em algum momento algo de mais grave aconteça – como antigamente. Caciques e demais lideranças tramam os fios tênues dessa história, elásticos como uma linha de borracha.

    “No Rio Envira, os ashaninka sempre andaram, mas nascer aqui só os mais novos. Os mais velhos foram trazidos de outros lugares pelo kairu (branco), de aldeias do Peru. Acontece que estamos aqui e enterramos nossos mortos, fazemos nosso ritual. Nossos filhos nasceram aqui. Nossas aldeias cresceram. Ashaninka não quer brigar com bravo, mas quem aguenta ter suas coisas levadas? Se eles matarem um ashaninka, como faremos?”, indaga Txate Ashaninka, que não sabe ao certo a própria idade, mas aparenta ter por volta de 75 anos. Os olhos vão de um lado a outro em movimentos curtos, num rosto magro, queimado de sol. O cuzmã, espécie de batina e vestimenta tradicional do povo, cobre do pescoço aos pés a baixa estatura de seu corpo de pássaro. As mãos ossudas de Txate alternam entre segurar o próprio queixo, numa postura de reflexão, e apontar a mata enquanto a cabeça mergulha nas memórias encravadas nas árvores que ladeiam o Envira. “Naquela ali eu subia com as outras crianças. Alta, né? Os macacos vinham para perto”, aponta da janela do barco. “Era aldeia antiga nossa. Mais para trás tem kamarambi(ayahuasca) e onde era a roça do meu tio. Saímos daqui por causa dos bravos, mas nunca ninguém morreu.Teve flechado, mas sem mortes”, recorda Txate.

    Tal como as árvores carregadas pelo Envira, cujas sementes germinam novas plantas em outras margens, as aldeias ashaninka desfeitas por conta da relação conflituosa com os povos livres reflorestaram o povo em outros pontos do rio, mais longe dos locais de aparição dos bravos. Na década de 1980, a aldeia Xinane foi um desses casos. Bem próxima da fronteira com o Peru, era constantemente alvo dos isolados. Os ashaninka que nela viviam a desativaram e se espalharam em outras aldeias ou fundaram novas. A elas os isolados também chegavam, e assim outras aldeias foram descendo o rio até quase o Médio. Com o aumento das tensões, e já sob uma nova política com relação aos povos em situação de isolamento voluntário, que previa o direito desses grupos de ter uma vida preservada da indesejada companhia das demais sociedades, a Funai construiu uma baseno local da antiga aldeia Xinane. O objetivo era identificar quem eram esses livres, demarcar o território e impedir conflitos entre eles e os ashaninka. Mais tarde, a estrutura passou a integrar a Frente de Proteção Etnoambiental do Xinane.

     

    “Sou o passado falando”

    O sertanista José Carlos Meirelles fundou a base e nela viveu durante 22 anos, entre 1988 e 2010. Criou filhos, que com o tempo passaram a trabalhar em frentes de proteção, manteve uma família e a ela agregou os peões que sobre os pisos de madeira da pequena vila também moravam. As histórias de Meirelles são despudoradas quanto a finais felizes e tampouco o transformam em herói defensor dos povos indígenas. “Sou o passado falando”, diz. Prefere a prosa ao discurso e não se priva de relatar, com seu sotaque de homem do interior, episódios de que não se orgulha, como quando se viu diante de isolados e, para defender parentes, precisou atirar.O indígena atingido acabou morto.2Ou quando foi atacado pelos isolados num igarapé próximo da base, enquanto pescava. Uma flecha atravessou seu rosto e ele precisou ser levado de helicóptero para um hospital de Rio Branco (AC). “Andávamos na mata, coisa hoje esquecida. Parece que hoje se monitora índio isolado e protege-se o território via notebook”, afirma. Não há indigenista atuante na temática dos isolados que não tenha ouvido as histórias de Meirelles, seja para criticá-lo ou para tê-lo como referência. Entender, porém, as problemáticas dos isolados do Envira e a política para os isolados da Funai passa necessariamente por um pouco de prosa com Meirelles.

    Quando chegou ao Xinane, o sertanista trabalhava com a informação de que apenas um povo isolado vivia na região. “Localizamos. Depois descobrimos que havia outro nas cabeceiras do Riozinho. Localizamos. Depois descobrimos mais um em 2008, além dos mascho piro que andam pelo Envira sazonalmente e com mais frequência de 2006 para cá. E muito provavelmente um quinto grupo que anda nas cabeceiras do Rio Jordão, oriundo da reserva Murunaua, no Peru”, explica Meirelles. O tempo e a perseverança, conta o sertanista, fiaram a metodologia de trabalho. As informações inicialmente eram de outros indígenas do Envira ou de ribeirinhos, mateiros. Com a consolidação da Frente do Xinane aperfeiçoou-se a captação de informações, com longas estadias no meio da floresta e monitoramentos por sobrevoos. Descobriu-se então que alguns desses povos são caçadores e coletores, caso dos mascho, que circulam na fronteira do Brasil com o Peru, nômades, e outros agricultores, com possível associação ao tronco linguístico pano. “Quando chegamos, ocorriam muitos conflitos entre os ashaninka e huni kui e os isolados. Em 1989 sobrevoamos suas pequenas malocas, que hoje já devem ser o dobro”, lembra Meirelles. O sertanista observa que esses povos tiveram um aumento populacional nos últimos anos e isso também provoca mudanças no comportamento. No Brasil, existem 94 povos em isolamento voluntário.

     

    Narcotraficantes atacam

    Se por um lado desde os anos 1980 se registram conflitos entre isolados e os demais povos das margens do Envira, por outro, a partir de 2005, data Meirelles, as cabeceiras do Envira no Peru, até então desabitadas pelo homem branco, foram invadidas por madeireiras e depois pela coca. Os empreendimentos, no geral, são de mesmo dono e a madeira é usada para lavar a coca. O avanço das fronteiras do crime organizado internacional para cima do território gerou o episódio de junho de 2011, quando a Base do Xinane foi cercada por narcotraficantes e a equipe de servidores da Funai retirada do local por helicópteros da Polícia Federal. Meses antes, em março, o traficante português Joaquim Antônio Custódio Fadista, condenado por tráfico de drogas no Brasil, Luxemburgo e Peru, foi detido na Base do Xinane depois de aparecer no local sozinho, portando uma mala com drogas e dólares e pedindo passagem. Levado para Rio Branco, foi extraditado para o Peru. Logo conseguiu liberdade e em junho regressou ao Xinane com capangas para se vingar de quem o havia detido e supostamente localizar a mochila recheada com drogas e dinheiro. Meses depois, em agosto, Fadista foi mais uma vez detido. Informados pelos ashaninka, a Polícia Federal e servidores da Funai chegaram ao Xinane para averiguar a circulação de supostos narcotraficantes. Durante a operação, a equipe localizou Fadista no meio da mata, nos arredores da Base do Xinane. O governo federal tem informações de queo narcotráfico, sediado do outro lado da fronteira, estuda a região com o intuito de utilizá-la.

    A ação de madeireiras, portanto, estaria atrelada ao narcotráfico e a intensidade da ação delas na região está submetida ao avanço do negócio da droga no território compartilhado pelos ashaninka e pelos isolados. Sobrevoos realizados pela equipe do Xinane, do final dos anos 1980 até sua desativação em 2011 sob fogo cerrado dos traficantes, comprovam a ação de madeireiros. No entanto, tais investidas diminuíram depois da demarcação e da consequente proteção do território. No lado brasileiro registra-se a incidência de pequenos madeireiros, além da utilização da área dos isolados “como supermercado de carne, peixe e madeira por parte dos brancos. Os ashaninka e os madja também pescam nessas áreas para vender em Feijó”, diz Meirelles. A tendência é de que a Funai retome os trabalhos da Base do Xinane, mas como impedir que o território deixe de ser acossado pelo narcotráfico? No último dia 24 de março, a presidente do órgão indigenista, Maria Augusta Assirati, reuniu-se em Lima com representantes do Ministério da Cultura peruano para a formalização interinstitucional de protocolos para a proteção e promoção dos direitos dos povos isolados e de recente contato, que vivem nas regiões de fronteira entre os países. Aos indígenas, porém, fica a relação com os isolados.

     

    “Sofreram muitas violências”

    O cacique Ominá Madja tem uma pequena coleção de objetos dos isolados recolhidos na mata. Um de seus filhos aprendeu a tocar uma pequena flauta tingida de urucum e musgo. As janelas da casa do cacique miram a floresta chuvosa. Naquele mesmo dia pela manhã, um isolado foi avistado espreitando dependurado numa árvore. Por trás do manto de água nada se esconde. “Eles sofreram muitas violências. Como a gente também. Toda vida que índio morre por um pedacinho de terra, seja querendo ou defendendo ela. Só que os bravos não sabem tudo o que a gente sabe de vocês [brancos]”, analisa. Cacique da aldeia Igarapé do Anjo, homônimo de um dos igarapés onde os isolados mantêm aldeias, o indígena afirma que a relação dos madja com os livres não é pautada pela violência, mas que alimentam desconfianças mútuas. “Tentamos falar com eles, apesar de a língua ser diferente. Como a gente não ataca, eles chegam perto cada vez mais. Achamos cerâmica deles, panelas, flechas e flautas. Estão perto da gente”, diz Ominá. O cacique aponta para a ação de madeireiros na região, o que justificaria a aproximação cada vez mais constante desses povos às aldeias madja. Como no decorrer do processo histórico os madja e os ashaninka passaram a casar entre si, algumas aldeias são compartilhadas. “Aqui a gente é madjaninka”, riem. Se por um lado as fronteiras impostas pelos Estados nacionais não existem para as populações em isolamento voluntário, que circulam entre alguns países num grande território ancestral, aos ashaninka e aos madja a demarcação da Terra Indígena Kampa/Isolados é apenas uma formalidade importante. A comunidade Igarapé do Anjo está dentro dessa terra indígena, assim como a aldeia Terra Nova, onde o cacique Isanami Madja é casado com uma ashaninka.

    Enquanto a esposa prepara caiçuma de mandioca, Isanami mostra a identidade puída. Levado junto com roupas e panelas, o documento foi encontrado tempos depois, num buraco, junto a outros objetos saqueados pelos isolados. Silenciosos e sem violência, os livres chegaram a levar o mosquiteiro de Isanami enquanto ele e a mulher dormiam. O episódio é lembrado com risos, mas nem sempre as histórias são irreverentes. Certa vez uma mulher madja estava na roça quando foi abordada por dois isolados. Primeiro tomaram o terçado das mãos da indígena e depois insistiram para que ela fosse embora com eles. Os homens da aldeia, tão logo ouviram os gritos da mulher, correram para a roça e lá chegando precisaram afugentar os livres. Tanto a Funai quanto os madja sabem que poucos quilômetros separam as aldeias das malocas dos isolados. Conforme Isanami, tal aproximação tem se intensificado nos últimos cinco anos, mas de uns três anos para cá deixou de ser sazonal e ocorre todas as semanas. “Já os vi muitas vezes, perto da aldeia e no meio da mata. São cabeludos e têm o corpo pintado de urucum e jenipapo. Já vi caçando macaco. Olham a gente e correm. Não ficam, não”, conta Isanami. Para o cacique, o mais difícil é ter roupas e utensílios sempre levados pelos isolados. “Olha, vou te dizer meu pensamento: não que tem de amansar ou fazer violência contra eles, madeireiro é quem faz assim, mas imagina ter suas roupas levadas toda hora por outras pessoas; ou a sua roça? Perder tudo. Isso deixa a gente triste”, conclui.

     

    Proposta diplomática

    Enquanto esteve na Base do Xinane, Meirelles realizou algumas oficinas com os ashaninka e os madja para tratar da relação com os isolados. “Creio que os isolados, pela nossa atitude de respeito, durante anos, com aquele território só para eles, consideram sua área de ocupação aquele pedaço. E é. Os ashaninka chegaram ao Envira na década de 1940, os isolados já estavam lá. Então quem invadiu a terra de quem?”, questiona o sertanista. A principal reclamação dos ashaninka é de que Meirelles não os deixava participar das ações da frente, e agora eles reivindicam mais protagonismo. Querem entender quem tem se movimentado pelo território além dos isolados. Pretendem desenvolver uma nova diplomacia. “Para a gente, tem peruano no meio e até outros indígenas do Peru juntos. Como vai dizer diferente? A gente quer ir ver mesmo, porque tem ashaninka no Peru que diz isso dos madeireiros e traficantes andando por aqui. Tanto os parentes bravos quanto nossas aldeias estão sem proteção”, conclui Txate Ashaninka. Na Base do Xinane, Txate e os ashaninka encontram razão para o argumento: pegadas de pés descalços e botas se misturam riscando o limo que cobre a madeira quebradiça das pontes que ligam as casas da estrutura. Antigo funcionário da base, Francisco das Chagas recorda que Meirelles temia a presença dos ashaninka na base por conta do histórico de conflitos entre eles e os isolados. “Seu Meirelles queria os bravos perto da base”, diz Chagas. O experiente mateiro lembra que muitos funcionários da frente foram alvo de flechadas, inclusive o próprio Meirelles, e que “só não morreram porque Deus foi camarada”. Os isolados costumavam andar perto das casas da base arremedando animais. E confirma: “Não sei bem a razão, mas os bravos estão cada vez mais em cima dos ashaninka. É de uns três anos pra cá, daqui acolá [gesticula com os braços] a gente vê eles atravessando o rio. Na aldeia Simpatia [última aldeia ashaninka antes da base] não faltam”. Chagas também não confirma a presença de peruanos não indígenas, mas salienta movimentações diferentes de isolados na região. O mateiro está há quase duas décadas no Envira, onde casou com uma ashaninka e hoje já cuida dos netos.

     

    Crianças levadas pelos bravos

    Outras histórias envolvendo os isolados dão conta de crianças levadas por eles. José Poshe e Bibiana Ashaninka nunca se esqueceram de uma festa ocorrida na aldeia há dezoito anos, quando a pequena Sawatxo foi carregada. Na época com 5 anos, a jovem dormia com os irmãos. Ao ouvir choros e gritos das crianças, Poshe correu para casa e, ao chegar, os mais velhos relataram que um bravo havia entrado na casa e levado Sawatxo.Foram muitos dias procurando pela menina na floresta. Em vão. “Deve estar grande. Já deve ter tido filhos. Ela deve ter se acostumado sem a gente. Todo mundo se acostuma a tudo”, diz Poshe olhando para o rio. Dezenas de outras tentativas foram relatadas pelos ashaninka. Do lado peruano, uma das histórias terminou em massacre. Entre os ashaninka do Envira, o ocorrido na comunidade Doce Glória, Departamento de Ucayali, Peru, em 2003, próximo à cabeceira do Rio Juruá, mesmo que não tenha tido a participação de indígenas do Brasil, é um fantasma que assombra as florestas do território que compartilham com os isolados. Enquanto preparava a comida para o marido e outros ashaninka que estavam pescando, uma mulher foi morta por um grupo de livres do povo mascho piro. Imediatamente os ashaninka arregimentaram um grupo e, na mata, deram o mesmo fim da mulher para cerca de trezentos isolados. O relato vem dos ashaninka do Envira, que têm parentes entre os ashaninka do Peru. “Então eu não sei se, caso um parente bravo mate um ashaninka, isso não pode acontecer [um episódio semelhante ao de Doce Glória] no Envira. Eu, como mais velho, digo aos mais novos para não fazerem nada. Para não irem à mata quando se sabe que eles estão lá, mas a gente não controla tudo”, afirma Txate Ashaninka.

    O fantasma dessa história, porém, tem razão de assombrar um povo tomado pelo mágico. Os indígenas afirmam que a movimentação dos mascho foi provocada pela ação de madeireiros ilegais vindos do Departamento de Madre de Dios, chegando às cabeceiras do Rio Juruá, perpassando territórios dos isolados, na Zona Reservada do Alto Rio Purus, uma unidade de conservação na Amazônia peruana criada ainda no governo Alberto Fujimori (1990-2000). “Eu penso que se não for retomado um trabalho aqui no Envira pode acontecer algo como lá no Peru. Isso dá mais medo em mim que as flechas dos parentes bravos. Mas a gente não quer que a Funai volte como era antes. Ashaninka e madja precisam estar juntos. Precisamos ser parte”, diz Txate.

    No último mês, lideranças ashaninka relataram a aparição de isolados na aldeia Simpatia. Na mesma comunidade, um indígena caiu em uma armadilha dos livres, no interior da floresta, mas não se feriu. No Igarapé do Anjo, aldeia do povo madja, a inserção dos livres acontece toda semana. A Base do Xinane, devorada pela fome úmida da floresta amazônica no paralelo 10°S, segue como símbolo do desafio da política indigenista aos isolados. Num paradoxo, como assegurar e garantir a liberdade desses povos? Enquanto isso, os livres exercem o direito de resistência e demonstram diplomaticamente que não irão aceitar as mortes de antigamente. As histórias circulam, e eles seguem o caminho de volta entrecortado por trilhas de outros povos. Por essas picadas, os livres também seguem, onde muitos deles tiveram a carne morta devorada pela terra. Um jardim de ossos na paisagem da memória. Num mundo brevemente grande, que já teve seu apocalipse de fogo para esses povos, tais encontros ocorrem entre as ruínas de raízes que insistem em tecer novos convívios e relações.

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  • 14/08/2014

    Nota de repúdio às reportagens da série “Terra Contestada” do Grupo RBS

    Os membros do Simpósio Temático nº 13: “Indigenismo e Movimentos Sociais Indígenas” proposto no XV Encontro Estadual de História, com tema “1964-2014 – Memórias, testemunhos e estado”, realizado entre 11 e 14 de Agosto de 2014, na Seção Santa Catarina (ANPUH-SC), vem a público divulgar Nota de Repúdio à Empresa Rede Brasil Sul de Comunicação (Grupo RBS) devido à reportagem “especial” veiculada em seus meios, sobretudo  no  Jornal Diário Catarinense, intitulada: Terra Contestada, nos dias 07 a 12 de Agosto de 2014.

    É importante salientar que não se pretende com esta nota, repetir o conteúdo vexatório, discriminatório, racista, tendencioso, “parcial” e contraditório das reportagens veiculadas, pois estaríamos corroborando com ideias e pensamentos que marginalizam os povos indígenas ao longo da História deste país. Estes povos vêm sendo paulatinamente execrados e deixados à margem de uma sociedade que se diz plural, diversa, pluriétnica e culturalmente rica quando se trata de divulgar e identificar a imagem da região a qual pertence este estado de Santa Catarina.

    Inicialmente, convém questionar e depois esclarecer a tão propalada imagem desta empresa, que tenta promover um jornalismo pautado na imparcialidade. Caso não seja de clareza de seus dirigentes e funcionários, as reportagens apresentam conteúdo conivente e subserviente ao sistema político e econômico dos setores administrativos dos governos, quer em esfera estadual ou federal.

    No que se refere à “imparcialidade” do caso em questão, foram ouvidas pessoas de duas entidades, uma governamental e outra não governamental, que segundo a própria reportagem, fazem o mesmo trabalho. Então, ao apresentar informações que denotam juízo de valor, verifica-se uma postura parcial, a qual confunde o leitor desavisado e leigo sobre o assunto. Os sujeitos envolvidos e atacados pela reportagem, sequer foram ouvidos, lideranças (cacique, professores, anciões), famílias Guarani que residem na comunidade Itaty do Morro dos Cavalos. A reportagem veiculou a entrevista de apenas um Guarani, que há algum tempo já não reside mais na Comunidade Itaty. Isso é parcialidade. A parcialidade está visível também em relação aos estudos, laudos e pareceres técnicos, pois são consideradas pela reportagem apenas informações fragilmente embasadas por um antropólogo já desligado formalmente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

    Poderíamos ainda elencar uma série de procedimentos equivocados no caso dessa série de reportagens e de outras que já foram veiculadas pela mesma empresa de jornalismo e comunicação. Na coluna política do Diário Catarinense é recorrente a postura de contradizer e execrar os indígenas da comunidade Itaty, Morro dos Cavalos, inclusive, impingindo aos Guarani,  a culpa pelas mortes ocorridas na BR -101.

    Além dos antropólogos, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), da Fundação Nacional do Índio (Funai), existem muitos pesquisadores realizando estudos com os indígenas, sobretudo com o povo Guarani, nas mais diferentes áreas do conhecimento: História, Biologia, Gestão Ambiental, Engenharia, Ciências da Saúde e outras.  Convém salientar os estudos realizados por estudantes indígenas Guarani, moradores da própria aldeia Morro dos Cavalos, acadêmicos da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na UFSC. Com isso, ressaltamos que os indígenas são agentes protagonistas de suas próprias histórias e suas opiniões e percepções devem ser consideradas em um Estado que se diz exemplo de multiculturalidade. 

    Em se tratando de verbas, trazemos à memória, os vários momentos em que foram dispensados recursos para a finalização das obras da BR-101. Nestes últimos 15 anos foram pelo menos três vezes em que foram anunciados recursos que possibilitariam a finalização da obra. Onde foram parar estes recursos?

    Não se pode conceber e calar-se sobre reportagens como estas, que são racistas, preconceituosas e incitadoras de violências, em um tempo em que o racismo tornou-se crime, o preconceito é próprio dos ignorantes e toda forma de violência contribui para a falta de diálogo e a intolerância nos contextos social, cultural e econômico.

     

    Assinam:

    Membros participantes do Simpósio Temático nº 13: “Indigenismo e Movimentos Sociais Indígenas” no XV Encontro Estadual de História: “1964-2014 – Memórias, testemunhos e estado” realizado entre 11 e 14 de Agosto de 2014.

     

    Florianópolis, 13 de Agosto de 2014

     

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  • 14/08/2014

    Povos indígenas e quilombolas: a mesma luta diante dos mesmos inimigos

    Augusta Eulália Ferreira*


    Para muitos pode parecer força de expressão afirmar que os inimigos dos povos indígenas são os mesmos dos quilombolas – e pode-se dizer também de outras comunidades tradicionais. Contudo, os fatos evidenciam que a realidade, infelizmente, é esta.


    O Brasil já há alguns anos, e cada vez mais, vem intensificando aspectos que caracterizaram o processo colonial primeiro, aquele iniciado ainda no século XVI. Entre estes aspectos destaca-se, em grande vulto, a reprimarização da economia. Ou seja, semelhante àquela aurora das primeiras invasões, hoje este continente destaca-se pela exportação de matérias primas. Da madeira e do açúcar, produtos principais dos saques iniciais, ampliou-se absurdamente a variedade de mercadorias exploradas e exportadas atualmente, como, por exemplo, os grãos, carnes e minérios. Na cadeia de produção, a exploração do ser humano e da natureza entram também como commodities disfarçadas nesta fase neocolonial.


    É justamente no literal lastro dessa exploração, os territórios invadidos, que se instalam os inimigos comuns de indígenas e quilombolas. Sabe-se que para a produção em larga escala, os monocultivos de base exportadora utilizam porções quilométricas dos solos brasileiros. Estes, não podemos esquecer, estão concentrados nas mãos de menos de 3% de proprietários que dominam mais de 60% das terras agricultáveis.


    Considerando que na essência do latifúndio e dos monocultivos estão a superexploração dos solos, o uso intensivo de venenos, a quebra do equilíbrio da natureza pelo emprego exagerado de maquinários e químicos, a “necessidade” de novas áreas constantemente é imposta. É aqui que entram, ou saem, os povos indígenas e as comunidades quilombolas.


    Para garantir a contínua expansão das terras e seus outros interesses, setores como o agronegócio e as empresas multinacionais vinculadas a ele vêm se fortalecendo de diversas maneiras e se confrontando aos direitos dos povos. Neste sentido, constata-se uma crescente articulação contra as garantias constitucionais, a duras penas conquistadas pelos povos indígenas e quilombolas. Destaca-se o amplo poder destes setores no Congresso Nacional e suas iniciativas para alterar ou criar leis que significam um verdadeiro retrocesso nos direitos territoriais. Da Câmara dos Deputados emanam  iniciativas absurdas como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 – e outras onze à ela apensadas -, que transfere do Executivo para o Legislativo a atribuição de demarcação de terras indígenas e titulação de terras quilombolas, além da criação de unidades de conservação ambiental. A bancada ruralista, minoria social brasileira, desproporcionalmente super-representada no Congresso, legisla em causa própria, ao avançar ofensivamente sobre as históricas conquistas dos movimentos indígena e quilombola.

    Além dos problemas acima expostos o poder Executivo, que tem a obrigação constitucional de efetivar o direito territorial dessas populações, soma-se ao rol dos inimigos dos povos. Um dos fatos que mais explicita essa postura do Executivo é a efetiva paralisação dos processos de demarcação das terras indígenas e titulação das terras quilombolas. Apesar de uma homologação ter sido assinada, nenhum procedimento demarcatório de terra indígena foi concluído em 2013. Desse modo, a média anual de terras demarcadas da presidente da República Dilma Rousseff diminuiu para 3,6, a pior média desde o fim da ditadura militar, consolidando-a como a chefe de Estado que menos demarcou terras indígenas na história recente do país. Muito possivelmente assim será também quanto às terras quilombolas. 


    Segundo a pesquisadora Rosa Elizabeth Marinho, da Universidade Federal do Pará (UFPA), não há nenhuma disposição do governo em efetivar este direito às comunidades. Ela afirma que esta paralisação nas titulações visa atender aos interesses do agronegócio. Ou seja, a subserviência governamental também se expressa quando o assunto é o direito quilombola. Dados de uma recente pesquisa divulgada pela Comissão Pró-índio, de São Paulo, indicam que neste ano não foi titulada nenhuma terra quilombola no Brasil. A mesma organização divulgou que em 2013 apenas quatro terras quilombolas foram tituladas, sendo que três receberam títulos parciais. Esta parece ser uma orientação do governo também para as terras indígenas, visto que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em suas pseudo negociações, reduziu terras já reconhecidas pelo órgão indigenista governamental, como as dos Guarani, no Rio Grande do Sul, e dos Xetá, no Paraná.


    O que não se reduz são os benefícios concedidos pelo governo ao agronegócio. De R$ 136 bilhões, em 2013, os recurso para o Plano Safra aumentaram para R$ 156 bilhões em 2014/15. Parece, portanto, não ser coincidência o fato de que este foi o setor que mais doou, até o momento, para a campanha à reeleição da presidente Dilma Rouseff, com destaque para a empresa JBS, que doou R$ 5 dos R$ 6,35 milhões repassados pelo setor , segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).


    Tudo indica que, como essas “trocas de gentilezas” tendem a se manter, aos povos indígenas e quilombolas restará intensificar os laços de união e as lutas conjuntas, como vêm acontecendo em diversas regiões do Brasil.


    Refazendo, reavivando ou intensificando as antigas alianças, como já ocorreu no passado quando se uniram para enfrentar a escravidão colonial, indígenas e quilombolas tecem as novas redes da história. “Com nossa cantoria e o toque do tambor, no gingado da nossa dança, reafirmamos nossa identidade quilombola. Com nossos maracás e nossos pés batendo forte no chão, anunciamos que somos povos indígenas desta terra e é nosso esse chão. Compartilhamos nossa alegria de viver, denunciamos as injustiças e anunciamos um novo tempo de luta e resistência”, afirmam conjuntamente[1].


    *Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

     


    [1] Encontro de Povos Indígenas e Quilombolas, Maranhão, novembro de 2013

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  • 13/08/2014

    Nota de repúdio às matérias do jornal Diário Catarinense contra a Terra Indígena Morro dos Cavalos

    O Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul vem a público manifestar sua indignação e repúdio às matérias publicadas pelo jornal Diário Catarinense, do grupo RBS de Comunicação, veiculadas entre os dias 7 a 11 de agosto, sob o título de “Terra Contestada”, que trata sobre o processo de demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, do povo Guarani localizada no município de Palhoça (SC).

    Por meio de um caderno “especial”, dividido em cinco partes, com 20 páginas no total, mais editorial, o jornal externa sua visão desqualificada e anti-indígena contra os Guarani, demonstrando uma profunda falta de conhecimento a respeito da realidade dos indígenas.

    A publicação é desqualificada por procurar influenciar os leitores no sentido de que a luta dos Guarani do Morro dos Cavalos pela demarcação de suas terras tradicionais seria fruto da manipulação de ONGs, e que estas estariam influenciando os Guarani. Além disso, também afirma que toda a ação foi desenvolvida por agentes externos, como se os Guarani não fossem agentes de seus processos históricos, como se fossem tutelados pelas ONGs e precisassem ser representados. Essas práticas, já condenadas pela literatura indigenista, só são utilizadas em casos de racismo e desrespeito por aqueles que desejam negar os direitos dessas populações. O jornal afirma ainda que os Guarani que vivem no Brasil são estrangeiros (requentando inverdades produzidas pela revista Veja, já amplamente contestadas). Além de demonstrar desconhecimento e desrespeito aos indígenas, trata-os com desdém, porque sequer foram ouvidos.

    O único Guarani ouvido vive fora da terra indígena há anos e é aliado de grupos contrários à demarcação, cujos argumentos e posição não são sustentados por nenhum outro Guarani. De maneira cínica, o editorial diz que não está contra os Guarani, mas em todo momento condena a demarcação da terra.

    O jornal comete inverdades também ao afirmar que os Guarani não habitam tradicionalmente o Morro dos Cavalos e que o Tribunal de Contas da União (TCU) teria manifestado que a TI Morro dos Cavalos não é tradicional e que os Guarani atrapalham a duplicação da BR-101. A ocupação tradicional da TI Morro dos Cavalos está amplamente demonstrada no procedimento administrativo de demarcação através de documentos históricos, mapas, livros e a memória oral. Toda documentação levantada explicita que a população que habita o Morro dos Cavalos faz parte do mesmo povo que habitava o litoral quando da chegada de Cabral, muito embora foram erroneamente nominados por agentes externos com os mais variados nomes. O TCU não é órgão competente para declarar a tradicionalidade de ocupação de Terra Indígena. Essa atribuição compete à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Ministério da Justiça. A construção dos túneis no Morro dos Cavalos não depende dos Guarani, mas do licenciamento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Os Guarani já manifestaram várias vezes, desde 2001, que não se opõem à construção dos túneis.

    Fontes desqualificadas

    Questionamos e repudiamos o fato de um jornal dar destaque para um antropólogo, no caso Edward Luz, que foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) por falta de ética profissional. O referido antropólogo não conhece os Guarani e é contratado pelo agronegócio para produzir contra laudos.  A atitude do jornal se assemelha a buscar um médico cirurgião expulso do Conselho Regional de Medicina ou um advogado expulso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

    Agressivo

    Questionamos e repudiamos a tentativa do jornal de querer desqualificar, de maneira agressiva, o trabalho do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), de São Paulo, e da antropóloga Maria Inês Ladeira, que foi coordenadora do Grupo Técnico de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos. Maria Inês há anos trabalha junto aos Guarani e tem um estudo aprofundado sobre o território desse povo, além de, principalmente, ser bastante respeitada pelos indígenas. Pelo nível de agressividade e intolerância, nos perguntamos: Que interesses há por trás da publicação de matérias como essas? Quem pagou por essas matérias? Quem pagou pela arte do site do jornal?

    Campanha anti-indígena

    Sabemos que essas matérias fazem parte de mais uma campanha orquestrada contra os direitos indígenas com o objetivo de criar uma animosidade da população. Essa campanha já foi denunciada em dezembro de 2013, quando várias entidades e pessoas da sociedade civil assinaram a “Carta de repúdio às manifestações e ações anti-indígenas em Santa Catarina”, onde denunciam que esse jornal, além de outros meios de comunicação, estava veiculando “notícias falaciosas e preconceituosas, além de fomentar opiniões declaradamente anti-indígenas. Estes veículos que deveriam primar pela verdade, pela imparcialidade e pela transparência, bem como pelo respeito à Constituição, têm, ao contrário, veiculado apenas as visões dos grupos que se opõem aos direitos dos povos originários, sem dar espaço a outros setores da sociedade e aos próprios indígenas”.

    O Cimi Regional Sul defende o direito de liberdade de expressão, mas condena o abuso de poder. Exigimos a retratação do jornal com o mesmo espaço para que a voz dos indígenas seja ouvida. Além disso, faremos uma reclamação junto à Associação Brasileira de Imprensa.

     

    Florianópolis, 12 de agosto de 2014

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  • 13/08/2014

    IV Encontro de Jovens Indígenas Tentehar/Guajajara da região Zutiwa e Angico Torto

    O IV Encontro de Jovens Indígenas Tentehar/Guajajara da região Zutiwa e Angico Torto aconteceu entre os dias 25 a 27 de julho de 2014, na aldeia Zutiwa, no município de Arame-MA. O encontro tinha como tema: Jovens Indígenas, e a Luta por seus Direitos. Com o objetivo de organizar a juventude para enfrentar a criação de leis de iniciativas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que tendem a restringir e retirar direitos que pareciam consolidados e definitivos para os indígenas no Brasil.

    Estiveram presentes jovens das aldeias, Zutiwa, Lago Branco, Nova Lima, Tarrafa, Papa Mel, Vargem Limpa, Formiga, São Domingos, Abraão, Patizal, Cajá, Portugal, Buritirana, Arymy, Alto Mirim, Ipiranga, Iarazu, Preguiça Queimado, Barro Branco, Bela Vista, Pitombeira, Naipó, Vila Nova, na Aldeia Zutiwa, Terra Indígena Araribóia, município de Arame-MA, no IV Encontro de jovens indígenas Tentehar/Guajajara da região Zutiwa e Angico Torto, somando mais de cem durante o encontro.

    A juventude Tentahar/Guajajara anuncia que a resistência será à luz da sabedoria dos ancestrais e da experiência de guerreiros e guerreiras apontando para um tempo de luta. Destacaram que garantia do território é o direito primário, e a condição para a sobrevivência física e cultural. “São os jovens que vão levar a luta para frente. É importante lutar pelos direitos”, afirma Edivan Guajajara.

    A união foi destaque durante o encontro. “Temos que nos unir para enfrentar as coisas que estão vindo. A Funai não está ligando para nós. Vamos reagir, levantar e lutar por nossos direitos”, diz Arthur Guajajara.

    Para os jovens indígenas Tentehar/Guajajara a defesa do território é de fundamental importância. Destacaram que sem o território, os povos indígenas não têm vida, exatamente porque não é possível plantar, caçar e pescar. A garantia do território é a condição primeira para a sobrevivência física e cultural.

    A juventude indígena enfatizou que a defesa do território significa a defesa da mãe natureza. Deuzimar Guajajara, da Aldeia Zutiwa falou emocionado e ao mesmo tempo preocupado, enfatizou que “a terra é a única riqueza que o índio tem e essa terra que os fazendeiros e as mineradoras estão querendo tomar de nós, nós não vamos deixar tomar o nosso lar a nossa casa é nosso direito. Quero dizer para nós índios de toda terra, vamos lutar com nossa força até morrer pelo que é nosso, que é nossa terra”.

    Os jovens indígenas Guajajara convidam a lutar pela terra e pela garantia de seus direitos, que logicamente, tendo os direitos e o território garantido, expressa a continuidade do Bem Viver que confronta com o projeto de morte que o sistema capitalista através do legislativo e do judiciário quer impor aos povos indígenas.

    Historicamente os povos indígenas têm resistido, e agora não será diferente como afirma a jovem Guajajra Janiaina. “Nosso dever é lutar pela nossa terra, pela educação e a saúde. Agente tem que falar por nosso povo que sofre muito. Devemos defender nosso direito e conseguir nosso objetivo”.

    Expressando muita garra e convicção que é necessário levantar a voz contra os projetos de mortes, os jovens indígenas se comprometem a: Lutar pelos direitos e permanência do território; pelo fortalecimento organizacional e cultural; pela criação de uma universidade indígena e melhoria na educação básica; lutar por uma saúde de qualidade nas comunidades e a realização de estudos de temas relativos à temática indígena.

    Por fim, a juventude e as lideranças presentes reafirmaram o compromisso de continuar lutando incansavelmente em defesa de seus direitos.

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  • 12/08/2014

    Foirn denuncia descaso e questiona “onde vai parar o dinheiro da Saúde Indígena?”

    Lideranças indígenas realizaram no dia 27 de julho uma avaliação da situação da saúde indígena na região do Rio Negro. Em levantamento participativo, identificaram os problemas administrativos como o principal entrave para a plena execução das ações previstas no modelo de atenção à saúde indígena. No dia 6 de agosto, as lideranças, em reunião na Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, aprovaram uma Carta Aberta denunciando o total descaso com a saúde indígena e propondo a adoção urgente de um conjunto de medidas para “destravar” a saúde indígena.

     

    Na Carta, as lideranças indígenas denunciam a precariedade da situação de infraestrutura, de equipamentos (foto abaixo) e de fornecimento de insumos para o atendimento com qualidade dos indígenas nas comunidades e nos postos de atendimento de referência (Polo Base); as condições inadequadas para o transporte das equipes de saúde e dos pacientes, pois faltam motores e botes de alumínio (foto ao lado); a continuidade da terceirização na contratação dos profissionais e a falta de uma política de profissionalização dos Agentes Indígenas de Saúde e de Saneamento, dentre outros problemas que são sintomas de uma crise de gestão administrativa que prejudica os serviços nas comunidades indígenas pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.  Esses problemas vêm desde sua implantação, quando estava na responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e continuam os problemas na gestão da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.

     

    Apesar do volume de recursos destinados à saúde indígena ter quadruplicado nos últimos quatro anos, segundo a Sesai, os resultados alcançados estão muito longe de corresponder a este grande investimento. Os povos indígenas continuam morrendo com doenças que poderiam ser prevenidas. “Onde vai parar o dinheiro da Saúde Indígena todos os anos? Por que os órgãos controladores não fazem nada? As ações até hoje para melhorar a saúde indígena não tiveram efeitos. Há violação dos direitos indígenas, legítimos e garantidos constitucionalmente, na área de saúde. Por isso devem ser investigadas todas as práticas de gestão administrativa no Subsistema e que apontam mudanças. Os povos indígenas do Rio Negro, que representam 10% do Brasil, querem saber para onde foi parar o dinheiro da saúde indígena”, afirma trecho da Carta.

     

    O Movimento pela Saúde Indígena do Rio Negro concluiu que o controle social é uma farsa na saúde indígena, pois suas centenas de contribuições na formulação e no controle da execução da política nacional de atenção à saúde indígena são totalmente ignoradas. O Movimento indígena se respalda na Constituição da República Federativa do Brasil (de 1988), em seu art. 232, garante que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

     

    No final da Carta, os indígenas da região do Rio Negro, dentre outras, pedem as seguintes providências: que o Ministério Público Federal investigue não somente a questão política, empenhos e notas fiscais (gestão administrativa), mas principalmente a realidade e os resultados na execução das ações de saúde nas comunidades indígenas e nos pólos-base; que a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) inclua na sua pauta de discussão o estudo do melhor modelo de gestão administrativa para saúde indígena e que este assunto seja pauta da Conferência Nacional de Política Indigenista do ano de 2015; que o ministro da Justiça investigue a gestão financeira e administrativa do Subsistema de Saúde Indígena; que a Controladoria Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU) fiscalizem permanentemente as ações de procedimentos de empenhos, notas fiscais de compras públicas; que o Ministério Público do Trabalho investigue as condições de trabalho dos Dsei e a situação de precarização de vínculo dos trabalhadores da EMSI; e que o ministro da Saúde/secretário Especial de Saúde Indígena implemente efetivamente o sistema de informações e garanta a transparência dos dados sobre a situação da saúde das populações indígenas e respeite as diretrizes definidas pelas instâncias de controle social.

     

    Leia aqui a Carta Aberta na íntegra.

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  • 11/08/2014

    Indígenas isolados: ameaças e risco de desaparecimento aumentam na América do Sul

    Marcela Belchior,

    Adital

    Nos últimos dias, coincidentemente dias após o contato inicial de uma comunidade indígena na região da Amazônia brasileira com representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), ameaçada pelo avanço da extração de madeira ilegal na região, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização de Estados Americanos (OEA) publicou um informe sobre a situação dos povos indígenas que não foram colonizados e não possuem relação permanente com as sociedades hegemônicas atuais. O documento "Povos indígenas em isolamento voluntário e contato inicial nas Américas” faz sérias recomendações para evitar que essa população desapareça ou se torne cada vez mais vulnerável.

    Segundo a CIDH, atualmente, há uma demanda alta e crescente de recursos naturais que se encontram em territórios de povos originários, como madeira, hidrocarbonetos, combustíveis fósseis, minerais e recursos hídricos. Essa busca econômica provoca a incursão de pessoas não índias às suas terras, colocando em risco sua existência.

    No continente americano, é sabido da presença de povos indígenas em situação de isolamento voluntário ou contato inicial na Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela. Há indícios também de sua presença na Guiana e Suriname, na região fronteiriça com o território brasileiro. De acordo com a Comissão, os Estados sul-americanos têm reconhecido, de diferentes maneiras e níveis de proteção, mais de 9 milhões de hectares a favor dessas comunidades.

    "Apesar dessas proteções jurídicas, na prática as proibições de acesso a essas áreas nem sempre são respeitadas, nem são realizadas ações para se fazê-las cumprir”, ressalta a CIDH. As consequências, aponta a Comissão, são violações ao direito à vida e integridade desses povos.

    "As agressões físicas diretas, as incursões a seus territórios para extrair recursos naturais, as epidemias, a escassez de alimentos e a perda de sua cultura, todas pressupõem um contato”, explica a Comissão. "Se for eliminado o contato não desejado, também será eliminada a maioria das ameaças e garantido o respeito aos direitos desses povos”,acrescenta.

    A CIDH aponta também que existem contatos deliberados, como o caso do ingresso de missões religiosas, que buscam evangelizá-los (por exemplo, a New Tribes Mission e a Summer Linguistic Institute, ambas dos Estados Unidos), e projetos científicos de diversos tipos. Os povos originários ainda são ameaçados por projetos de turismo, como o "turismo de aventura”, que tratam o contato com as comunidades indígenas como um "atrativo turístico”. Da mesma maneira, o narcotráfico figura, hoje, como ameaça crescente.

    Além desses problemas, o organismo indica que atividades em áreas próximas às aldeias podem contaminar rios e outras fontes hídricas, enquanto atividades de exploração podem afugentar a fauna da zona, da qual dependem os indígenas para sua alimentação e sustento. Exemplos disso são empresas petrolíferas de agências estatais, que se sobrepõem a áreas protegidas frequentemente, assim como a mineração ilegal ou casos de agricultura e pecuária dentro de territórios indígenas. Outras fontes de danos são: a construção de estradas, projetos hidroelétricos e demais obras de infraestrutura.

    Recomendações para proteção

    Diante desse problema e risco, a CIDH recomenda que seja reconhecida a existência desses povos e seu direito à autodeterminação, incluindo o direito a decidir permanecerem isolados ou em contato inicial. Exige ainda a proteção de das terras, territórios e recursos naturais, condição essencial para sua existência, e a necessidade de que o Estado assegure o respeito e a garantia do princípio de não contato por parte de qualquer pessoa ou grupo.

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  • 11/08/2014

    Documento final do 1° Encontro Amazônico dos Povos indígenas Resistentes

    Povos indígenas da região Norte e estado do Mato Grosso reunidos no 1°Encontro Amazônico na cidade de Manaus exigem a demarcação de seus territórios tradicionais. Os indígenas denunciaram também a presença de invasores em suas terras.

    Confira na íntegra o documento final do encontro:

     

    Nós povos indígenas Mura, Munduruku, Munduruku-Cara-Preta, Tupinambá, Kambeba, Cumaruara, Arapium, Maitapu, Kayabi, Chiquitano, Migueleno, Xavante, Macuxi, Apolima-arara, Nawa, Kujubim, Wayoro, Guarasugwe, Tucano, Tupaiu e Purubora, dos estados do Acre, Amazonas, Pará, Roraima, Mato Grosso e Rondônia, estamos em luta pelo reconhecimento étnico e territorial, reunidos no 1° Encontro Amazônico dos Povos Indígenas Resistentes, nos dias 8 a 10 de agosto de 2014 no Centro de Formação Xare, localizado no município de Manaus-AM, partilhamos nossas lutas, conquistas e desafios e nos defrontamos com a realidade de desrespeito e ameaça aos nossos direitos.


    Solicitamos que o direito ao autoreconhecimento étnico seja respeitado como critério fundamental para o reconhecimento da identidade indígena, conforme recomenda a Convenção 169 da OIT. Assim, não podemos depender de laudos antropológicos nem registros administrativos para podermos usufruir e ter acesso aos direitos garantidos aos povos indígenas.


    Ainda, requeremos que a União Federal dê condições técnicas e financeiras a Funai para que inicie e/ou dê continuidade aos procedimentos de demarcação dos nossos territórios indígenas já reivindicados.


    Em virtude da demora da União Federal em concluir os procedimentos de reconhecimento dos nossos territórios tradicionais, somos vítimas de invasores interessados em usurpar nossas riquezas naturais. Estas invasões permanentes geram insegurança a nossas comunidades e, muitas vezes, lideranças são ameaçadas de morte quando lutam pela efetivação de nossos direitos territoriais.  Pedimos que a União Federal cumpra com o seu dever constitucional de proteção das Terras Indígenas, fiscalizando as áreas, para coibir a entrada de invasores em nossos territórios.


    Há ainda a realidade de povos que foram expulsos de seus territórios tradicionais e hoje buscam sua reorganização e lutam pela retomada de seus territórios.


    Exigimos que seja respeitado o direito a consulta livre, prévia e informada em relação às medidas administrativas e legislativas que nos afetem diretamente, bem como a participação das comunidades indígenas em todas as instâncias de decisão que envolvam estes procedimentos, como as pesquisas e lavras de minérios, prospecções de petróleo, mercado de créditos de carbono, projetos de infraestrutura, projetos de lei,propostas de emenda à Constituição e outros.


    Em razão da falta de reconhecimento étnico e territorial, muitas vezes, dificulta-se e limita-se e até mesmo nega-se o acesso aos direitos a educação e a saúde diferenciada, que respeitem os usos, costumes e tradições de cada povo. Para isso é fundamental:


    O reconhecimento e a construção de escolas indígenas em nossas comunidades, que considerem a participação da comunidade indígena na definição do modelo de organização e gestão. É necessária a contratação e formação de professores indígenas, bem como o incentivo técnico e financeiro para produção de materiais didáticos a partir da realidade histórica, social e cultural de cada povo.


    A inclusão de todas as nossas comunidades indígenas no sistema de atendimento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) com as necessárias garantias de infraestrutura, recursos humanos, equipamentos, bem como o reconhecimento e a valorização de nossa medicina tradicional.   

     

    Somos povos resistentes. Lutaremos sempre, não desistiremos nunca!

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  • 11/08/2014

    Nota do Cimi contra a privatização da Atenção à Saúde Indígena no Brasil

    O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vem a público manifestar preocupação e repudiar a proposta que está sendo gestada, no âmbito do Ministério da Saúde, de "reforma na política de atenção à saúde indígena". O governo federal trabalha em direção à privatização das ações e serviços no âmbito da saúde para os povos indígenas. Como instrumento para tanto, gestores públicos planejam a criação de um novo ente, o Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), que deverá ser o órgão responsável pela execução das ações de atenção à saúde dos povos indígenas em todo o país.

    Segundo informações colhidas no próprio Ministério da Saúde, o secretário Especial de Saúde Indígena, Antônio Alves, esteve, no dia 1º de agosto, no gabinete do ministro, Arthur Chioro onde propôs a criação do INSI. A iniciativa acorre apenas quatro anos depois da criação da Sesai, fruto de uma grande mobilização do movimento indígena em todo o país, visando o reconhecimento da saúde indígena como uma política pública ligada diretamente ao gabinete do ministro da Saúde, em substituição à Fundação Nacional de Saúde (Funasa) que promovia a terceirização e a privatização da saúde indígena.

    Com a aproximação do prazo estabelecido no Termo de Conciliação Judicial (TCJ) assinado pelo Ministério da Saúde (MS) e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público Federal (MPF), que prevê a substituição de todos os profissionais da saúde indígena que atuam através de convênios e contratos temporários da União (CTU) por servidores públicos efetivos, no prazo máximo de 31 de dezembro de 2015, gestores da política de atenção à saúde indígena propõem um rearranjo com o intuito de ‘criar um novo modelo institucional para atendimento às populações indígenas’, em flagrante oposição ao Sistema Único de Saúde (SUS) e à Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.

    O modelo a ser adotado seria copiado da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, citada como a ‘primeira instituição pública não estatal brasileira’. De acordo com avaliação dos segmentos sociais nas Conferências Nacionais de Saúde, o modelo dos Hospitais da Rede Sarah tem sido considerado a forma mais explícita de terceirização, privatização e desperdício de dinheiro da saúde pública no país, devido aos elevados custos de administração e execução dos serviços prestados e falta de controle social sobre a gestão dos hospitais ligados à Rede.

    O argumento central dos gestores ligados à Sesai para a criação do INSI é a alegada inviabilidade da realização de concurso público para provimento do pessoal da saúde indígena. A proposta do Concurso Público Específico e Diferenciado é uma bandeira do movimento indígena desde as primeiras Conferências de Saúde Indígena no final do século passado. Para que este concurso pudesse alcançar os objetivos almejados seria preciso criar os mecanismos legais adequados, inclusive com a regulamentação das categorias profissionais de Agente Indígena de Saúde e demais profissionais indígenas. Seria necessária uma articulação ampla envolvendo, dentre outros, os ministérios da Saúde, do Planejamento, do Congresso Nacional e a Presidência da República. No entanto, nada disso se fez e agora, uma vez mais, tentam redefinir os caminhos da política, dentro dos gabinetes na capital federal, sem discussão e debates com os principais interessados, os povos indígenas.

    Dentre outras questões graves, na proposta de criação do INSI está definida a existência de um Conselho Deliberativo, que seria a instância máxima de decisão da organização, onde dos treze membros do colegiado seriam concedidas apenas ‘três vagas’ para representantes de organizações indígenas, desrespeitando o princípio da paridade entre os segmentos dos gestores e trabalhadores e o segmento dos usuários indígenas, um dos princípios basilares do Sistema Único de Saúde (SUS).

    No entender do Cimi, a Sesai através de seus administradores, excluiu os povos indígenas, o Conselho Nacional de Saúde e a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi) dos debates e do processo de discussão acerca da proposta de criação deste instituto. É lamentável o desrespeito com que o governo trata as populações indígenas e mais uma vez isso fica demonstrado através desta reforma absurda, que segue na contramão de tudo o que tem sido proposto e construído pelos povos indígenas nas últimas décadas. É mais um ataque a ser enfrentado com indignação e vigor por todo o movimento indígena e seus aliados na luta em defesa do SUS e pela efetivação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.

     

    Brasília-DF, 11 de agosto de 2014

    Conselho Indigenista Missionário

     

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