• 22/09/2015

    Para compreender os conflitos entre fazendeiros e indígenas em MS

    Há muito os problemas que atingem os povos indígenas em Mato Grosso do Sul ganharam manchete na imprensa regional, nacional e internacional. Todos os anos índios são mortos e nada é feito de objetivo para mudar a realidade. Autoridades eleitas pelo povo, como vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores, prefeitos e governador, mandato após mandato e salvo honrosas exceções, simplificam o problema. Ao fazerem isso, rechaçam o enfrentamento da questão fundiária, causa maior dos conflitos entre fazendeiros e comunidades indígenas. Na foto, os Guarani e Kaiowá comem a terra, em ato religioso, às portas do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília.  

    Além disso, não raramente recorrem ao argumento de culpar instituições alhures pelo etnocídio ou genocídio cultural em andamento no estado: Supremo Tribunal Federal, Governo Federal, Ministério da Justiça, ONGs, Presidência da República, Conselho Indigenista Missionário, Ministério Público Federal, forças alienígenas que desejariam se apoderar do Aquífero Guarani etc. Repetidas vezes, de maneira costumeira, utilizam de sofismas dos mais variados para distorcer a realidade e formar opinião pública contrária à regularização das terras indígenas no país.

    Ao fazerem isso, essas autoridades se isentam de quaisquer responsabilidades, terceirizam o problema e lavam as mãos. Afirmam que é a União, e basicamente ela, que pode e deve solucionar os conflitos pela posse da terra, desde que assim o faça a favor dos fazendeiros, aqueles que possuem títulos de propriedade privada da terra e por vezes financiam campanhas eleitorais e projetos de poder.

    A questão fundiária, por sua vez, é um problema muito antigo e suas origens remontam aos séculos 18, 19 e 20, quando se deu a origem da propriedade privada da terra na região. Com o final da chamada Guerra do Paraguai (1864-1870), o antigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, passou a ser mais rapidamente colonizado por migrantes oriundos de outras partes do Brasil, além de imigrantes vindos de além-mar e paízes vizinhos. Desde então o espaço regional se configurou como palco de muitos conflitos pela posse da terra, especialmente quando comunidades indígenas tiveram seus territórios invadidos por fazendeiros e militares desmobilizados do exército imperial. A documentação oficial da época, como os relatórios da Diretória dos Índios da Província de Mato Grosso, comprova a situação. Contudo, sem os povos originários esta parte da bacia platina não estaria incorporada ao território nacional.

    Foi graças às alianças com os indígenas, feitas desde o século 18, que Portugal estabeleceu sua hegemonia na porção central da América do Sul. Posteriormente, quando o Brasil tornou-se Estado-nação, as alianças permaneceram durante o período imperial. Exemplo disso foi o protagonismo que os indígenas tiveram na defesa do território nacional durante a Guerra do Paraguai. Autores renomados como o Visconde de Taunay, apenas para citar um exemplo, se estenderam sobre o assunto e teceram elogios à participação dos Terena, Kinikinao, Kadiwéu, Guató e outros povos que, sozinhos ou ao lado do exército imperial, combateram as tropas invasoras do Paraguai na década de 1860.

    Com o fim do conflito bélico platino houve a expansão da fronteira pastoril e, consequentemente, o aumento da titulação dolosa de territórios indígenas a favor de terceiros. A partir de então os povos originários passaram a ter suas terras usurpadas e via de regra não tinham a quem recorrer. Esta é uma das marcas colonialistas da formação do Estado Brasileiro e da propriedade privada da terra em Mato Grosso do Sul.

    Neste contexto foi ainda imposto aos Guarani, Kaiowá, Terena e outros indígenas uma forma perversa de exploração da força de trabalho, análoga à escravidão moderna, baseada no conhecido sistema do barracão. Durante a primeira metade do século 20, muitos fazendeiros tinham transformado milhares de indígenas na principal mão-de-obra a ser explorada nas propriedades rurais que eram organizadas no antigo sul de Mato Grosso. Esta situação é verificada na fronteira com o Paraguai e a Bolívia, na Serra de Maracaju e em praticamente todo o estado.

    Milhares de indígenas passaram a trabalhar na condição de vaqueiros e em outras atividades econômicas, tais como: lavoura, colheita e preparo da erva-mate, exploração de ipecacuanha, transporte fluvial etc. Muitas mulheres foram ainda “pegas a laço”, violentadas e forçadas a se casar com não-índios, história presente na memória de muitos dos antigos (sul) mato-grossenses. Apesar disso tudo, os índios pouco usufruíram das riquezas que produziram e passaram a viver em situações cada vez mais difíceis, sobremaneira quando suas roças foram invadidas pelo gado e os fazendeiros mandaram derrubar as matas existentes em seus territórios. Depois de formadas as propriedades rurais, especialmente entre os anos de 1950 a 1970, a mão-de-obra indígena foi dispensada de muitas fazendas.

    Neste contexto histórico, marcado pela expansão do agronegócio no Centro-Oeste, dezenas de comunidades indígenas, as quais ainda conseguiam viver no fundo das fazendas, foram expulsas das terras de ocupação tradicional. Este processo de esbulho foi concluído na década de 1980.

    No começo do século 20, Cândido Mariano da Silva Rondon, posteriormente conhecido como Marechal Rondon, à frente da Comissão de Linhas Telegráficas do Estado de Mato Grosso, deixou registrado os ataques que fazendeiros desfechavam contra os indígenas, como ocorria na bacia do rio Taboco. Em suas palavras: “[…] eivados da falsa noção de que o índio deve ser tratado e exterminado como uma fera contra o qual devem fazer convergir todas as suas armas de guerra, os fazendeiros ao invés de reconciliarem-se com os silvícolas trucidavam homens, mulheres e crianças e aprisionando os que não havia logrado fugir”.

    Segundo Rondon, não contentes com os assassinatos, alguns fazendeiros “abriam os ventres de índias que se achavam em adiantado estado de gravidez”. Ações desta natureza são definidas como etnocídio e persistem, com outras roupagens, até o tempo presente. Por isso em Mato Grosso do Sul os indígenas são percebidos por muitos como não-humanos, chamados pejorativamente de “bugres”.

    Dessa forma, no âmbito da constituição do Estado Brasileiro e da formação da sociedade nacional, foram registradas sucessivas tentativas de exploração, dominação e até extermínio contra os povos indígenas. À medida que se estabeleceram na região, fazendeiros incorporaram territórios indígenas ao seu patrimônio. Muitos conseguiram isso requerendo junto às autoridades estaduais, sem muitas dificuldades e por meio pouco ortodoxos, títulos de propriedade privada da terra. Muitas áreas atingiam um tamanho tal que era demarcada vagamente em função da particularidade geográfica de cada região: córregos, rios, morros etc. Embora tivessem logrado a titularidade de vastas extensões, frequentemente não tomaram posse imediata das terras, onde comunidades indígenas conseguiram permanecer, de maneira mansa e pacífica, por décadas sem grandes infortúnios.

    À frente desses fazendeiros emergiu um grupo de proprietários de terra que se enriqueceu ao longo dos anos e, aproveitando-se da influência que tinham nos governos municipais, estadual e federal, ganhou poderes sobre pessoas e coisas. Mais ainda, promoveu todo tipo de violação dos direitos elementares dos povos indígenas. Constituiu-se, assim, uma elite ruralista com muita influência nos poderes constituídos na República, isto é, no próprio Estado Brasileiro. Seus feitos são enaltecidos por uma historiografia colonialista, geralmente financiada com dinheiro público, ligada à construção de uma história oficial e de uma identidade sul-mato-grossense, geralmente em oposição à de Mato Grosso, particularmente de Cuiabá.

    Assim, no tempo presente observamos mais uma situação de conflitos entre ruralistas e comunidades Guarani, Kaiowá e Terena. O resultado disso foi mais um indígena assassinado durante a retomada de uma área oficialmente declarada como terra indígena, chamada Ñande Ru Marangatu, localizada no município de Antônio João, na fronteira com o Paraguai. Sobre o assunto, até o momento nenhuma autoridade esclareceu de onde veio o tiro que no dia 29 de agosto de 2015 ceifou a vida do Kaiowá Simeão Fernandes Vilhalba, 24 anos. A julgar pelo histórico do assassinato de indígenas no estado, como aconteceu com Nelson Franco (1952) e Marçal de Souza (1983), este será mais um caso em que os criminosos permanecerão impunes.

    As autoridades máximas estaduais, com destaque para o governador do estado, em tese teriam a obrigação de contribuir positivamente para a elucidação dos fatos e repressão a todo tipo de violência armada contra povos originários. Trata-se de uma responsabilidade inerente ao cargo para o qual foram eleitos e em defesa do Estado Democrático de Direito, cujo conceito não se limita à defesa da propriedade privada da terra e da classe social à qual pertencem. Todavia, uma conduta desse tipo é incompatível com o protagonismo que certas autoridades tiveram no chamado Leilão da Resistência, ação planejada e executada por ruralistas para arrecadar fundos e financiar ações contra a retomada de terras indígenas, com a contratação de milícias armadas, tal qual noticiado pela imprensa desde 2013.

    Por isso em Mato Grosso do Sul há uma situação peculiar da qual parte da população do estado não sente orgulho: quem não é fazendeiro, será tratado como boi bagual e, portanto, como não-humano ou animal selvagem, sobretudo os povos originários, comunidades tradicionais e segmentos de classes sociais em situação de vulnerabilidade social.

    (*) Jorge Eremites de Oliveira é doutor em História (Arqueologia) pela PUCRS e docente da Universidade Federal de Pelotas e Paulo Marcos Esselin é doutor em História (História Ibero-Americana) pela PUCRS e docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

     

     

  • 22/09/2015

    Em abertura do IV Encontro Continental, Nação Guarani decide denunciar governo brasileiro ao parlamento do Mercosul

    Ao som de mbaraká, mbaraká mirin sintonizados aos cantos sagrados, a fumaça vivificante dos petinguá e profunda reza, iniciou na tarde desta segunda-feira, dia 21, o IV Encontro Continental Guarani, reunindo lideranças desse povo presentes na Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai. São centenas de homens e mulheres das diversas idades que se colocaram à disposição dessa grande nação que é o segundo maior povo do Cone Sul da América com mais de 250 mil pessoas para, ao longo de 5 dias, estabelecer as diretrizes de fortalecimento do povo, sua territorialidade e para melhorar a incidência nas políticas públicas, especialmente no que tange a conquista das terras.

    O IV Encontro está acontecendo no tekoa Ka’akupe, município de Ruiz de Montoya, província de Misiones (AR), local central do grande território da Nação Guarani. Inspirados pelo tema “Yvy mara´ey: territorio, justicia y libertad”, os Guarani enfrentam grandes desafios em todos os estados nacionais, com graves violações de direitos. A violência a que estão submetidos pouco se difere em cada estado.

    No caso do Brasil, os Kaiowá do Mato Grosso do Sul, com o apoio da organização continental, pretendem denunciar o governo brasileiro perante o parlamento do Mercosul pela omissão do governo brasileiro na demarcação das terras tradicionais que acabam gerando assassinatos de suas lideranças. Os Guarani do Paraguai irão agregar à denúncia o caso da monocultura da soja, que destrói seu habitat tradicional. No caso da Bolívia, apesar da existência de um presidente indígena, há muito que avançar na conquista dos direitos e do respeito porque sabem que o Estado boliviano precisa ser mudado. No caso dos Guarani da Argentina, a falta de terras e os grandes projetos de “desenvolvimento” continuam sendo as principais ameaças à sua sobrevivência e pretendem denunciar durante o encontro.

    Com o objetivo de enfrentar todos esses desafios o IV Encontro Continental quer ser um espaço de estímulo e fortalecimento do Conselho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA), criada em 2010 durante o III Encontro Continental. Uma organização política cultural horizontal, com representantes de todos os Guarani das diversas regiões, chamados de estados nacionais. Superar o conceito artificial de fronteiras e fortalecer a territorialidade será o grande desafio do encontro.

    O primeiro encontro continental foi organizado em 2006, em São Gabriel (RS), em memória da luta e resistência dos Guarani missioneiros, que lutaram em defesa de seu território enfrentando os exércitos de Espanha e Portugal em meados do século XVII. Em 2007, focado na dimensão territorial, ocorreu o segundo encontro na cidade de Porto Alegre. Já em 2010, ocorreu o terceiro encontro, na cidade de Assunção, capital do Paraguai, sob o tema “Superação das fronteiras e organização política”.

    A escolha da data desse terceiro encontro tem a ver com o ara piau (tempo novo) no calendário Guarani, época de lançar a boa semente na terra para colher bons frutos.

     

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  • 21/09/2015

    Nota sobre a “CPI do Cimi” no Mato Grosso do Sul

    “Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino de Deus” (MT 5, 10).

    O Conselho Indigenista Missionário lamenta que a Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul (MS) perca seu tempo com uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a ação missionária da entidade junto aos povos originários.

    A CPI em questão faz parte da estratégia de ataques ruralistas aos povos indígenas e seus aliados. Proposta pela fazendeira e deputada estadual Mara Caseiro (PTdoB) e subscrita por outros deputados fazendeiros, a Comissão foi criada, por Despacho assinado pelo presidente da Assembleia Legislativa, Junior Mochi (PMDB), e publicado na sexta-feira, 18 de setembro, no Diário Oficial.

    No Mato Grosso do Sul, uma parte dos fazendeiros e seus jagunços tem atuado através de milícias armadas que, em menos de um mês, desferiu mais de dez ataques paramilitares contra o povo Guarani Kaiowá dos Tekohá Nanderu Marangatu, Guyra Kamby’i, Pyelito Kue e Potreiro Guasu. Como resultado deste intenso período de terror, o líder Guarani Kaiowá, Semião Vilhalva, foi assassinato, três indígenas foram baleados por arma de fogo, vários foram feridos por balas de borracha e dezenas de indígenas foram espancados. São fortes também os indícios de que indígenas sofreram tortura e há denúncias da ocorrência de um estupro coletivo contra uma Guarani Kaiowá.

    Nos últimos 12 anos, ao menos 585 indígenas cometeram suicídio e outros 390 foram assassinados no Mato Grosso do Sul. O estado tem 23 milhões de bovinos que ocupam aproximadamente 23 milhões de hectares de terra. Enquanto isso, com os procedimentos de demarcação paralisados, os cerca de 45 mil Guarani Kaiowá continuam espremidos em apenas 30 mil hectares de suas terras tradicionais.

    Num estado onde ocorrem estes alarmantes casos de violências contra os povos indígenas, certamente há muito a ser investigado e denunciado. No entanto, não é o Cimi o causador desta situação. Por isso, não é investigando e tentando criminalizar o Cimi que serão encontradas soluções para esta situação que se alonga ao longo da história.

    Neste sentido, entendemos que a “CPI do Cimi” abrirá oportunidades para repercussão, nacional e internacional, dos crimes cometidos pelo agronegócio e pelo estado sul mato-grossense contra os Guarani Kaiowá e demais povos originários daquele estado. A CPI será um momento propício para identificar e expor o nome das empresas, muitas delas multinacionais, que investem e lucram com a exportação de commodites agrícolas, tais como, carne bovina, açúcar de cana, agrocombustíveis, soja, dentre outros, produzidos no Mato Grosso do Sul.

    Avaliamos que a CPI poderá também servir para dialogar com cidadãos de outros países, que consomem estes produtos. Será importante que as pessoas saibam, por exemplo, para onde é vendida e quem consome a carne dos bois que são engordados pisoteando a terra sagrada e manchada com sangue indígena no Mato Grosso do Sul. Ao mesmo tempo, com os demais aliados dos povos indígenas, poder-se-á identificar e explicitar aqueles que financiaram as campanhas milionárias dos fazendeiros que se elegeram e ocupam cargos nos poderes Legislativo e Executivo no estado.

    Todo investimento financeiro no agronegócio sul mato-grossense alimenta o ódio ruralista e a morte de indígenas naquele estado. Por isso, como medida urgente e estruturante para solução de conflitos e superação deste quadro social estarrecedor, o Cimi entende que se faz necessário, e reforçará, a incidência internacional a fim de que se estabeleça, por parte de outros países, uma “moratória das importações de commodites agrícolas produzidas no MS” até que as terras indígenas sejam devidamente demarcadas e devolvidas aos povos originários pelo Estado brasileiro.

    No Mato Grosso do Sul, o agronegócio controla significativas fatias de poder do estado oficial e age também por meio de um “estado paralelo” atentando contra a vida dos povos originários e de seus aliados. Oxalá a “CPI do Cimi” possa servir para que o mundo saiba mais sobre o sofrimento dos povos indígenas e de como eles almejam Bem Viver, a Vida Plena (conf. Jo 10,10) no Mato Grosso do Sul.

    Brasília, DF, 21 de setembro de 2015

    Conselho Indigenista Missionário – Cimi

     

  • 21/09/2015

    A dolorosa resistência dos Guarani Kaiowá

    Outro dia vi o vídeo no qual uma fazendeira do Mato Grosso do Sul dizia que eles eram os donos daquelas terras porque foram os "desbravadores". Estranhei o depoimento, pois, ali, naquela fala, ela mesma afirmava que seus antepassados foram os que conquistaram a área para que, naqueles longínquos dias, pudessem levantar suas casas e iniciar suas lavouras. O que, então, significa isso? Se eles desbravaram significa que limparam a passagem, tornaram mansos, civilizaram. É o que diz o dicionário. Se assim é, só tornamos mansos ou civilizamos alguém. E quem era esse alguém? Os índios. Esse é resumo da ópera bufa dos fazendeiros do Mato Grosso do Sul. Logo, ela mesma confirma que o território hoje ocupado por seus familiares e por ela mesma era originalmente dos Guarani.

    A fala da fazendeira é bastante esclarecedora da situação que vivem os Guarani Kaiwá naquela região. Para ela e para seus amigos, os indígenas nada mais são do que um atrapalho, uma incomodação, uma desordem no mapa tão bem construído por eles. Se um dia a gente branca invadiu as terras e limpou a área dos índios, agora eles que não venham reivindicar posse de nada. Foram destruídos, que sumam dali.

    Essa é a verdade dos fazendeiros. Eles se dão ao direito de pensar que a matança dos índios do passado foi uma coisa boa, um passo no avanço do progresso. Mas, a senhora do vídeo se esquece que quando seus antepassados "desbravaram" aquela região, muitos dos povos que ali viviam não morreram. Eles fugiram, empurrados pela violência e pela ponta dos mosquetes.

    Só que para os indígenas a terra não é um pedaço de chão que se pode comprar ou desbravar. É parte viva da cultura. Assim, mesmo tendo fugido ou se escondido, os indígenas ficaram por ali e, com o passar do tempo, foram voltando, exigindo o direito de viver naquele território que ocupavam originalmente.

    Essa é a verdade dos indígenas. Eles insistem em ver garantido o seu direito de estar nas suas terras. Querem uma pequena parcela, nem exigem o espaço todo. Só um espaço digno para vivenciar sua cultura.

    Mas, a história dos homens é a história da luta de classe, já disse alguém um dia. E nesse combate, a classe dominante é a que tem as armas e o estado. Os oprimidos só têm os seus corpos e a vontade de viver na justiça. Então, aparentemente, não há saídas. Já dizia o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein: "o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes". Como então fazer com que esses mundos dialoguem? Tivéssemos um Estado ancorado na justiça, seria ele o responsável por garantir que essas duas verdades pudessem ser debatidas na serenidade. Mas não. No caso dos conflitos no Mato Grosso do Sul, o estado ainda aporta as armas e a proteção ao campo dos "felizes", os fazendeiros.

    Na madrugada dessa sexta-feira a gente da tekoá Pyelito Kue/Mbarakay, que fica no município de Iguatemi, sofreu mais uma violência, das inumeráveis violências que vem sofrendo desde que os indígenas decidiram reivindicar sua morada. Jagunços armados desfilaram pelo acampamento onde estão instalados os Guarani e Kaiowá dizendo que todos seriam mortos. Segundo relato do Conselho Indigenista Missionário, houve um ataque e dez indígenas ficaram feridos, incluindo uma gestante e um rezador. Foram usadas balas de borracha, que são de uso restrito das forças policiais, e armas de fogo. Desde alguns dias, dizem as lideranças, que o Departamento de Operações de Fronteira (DOF) vinha fazendo ‘visitas’ ostensivas aos indígenas, inclusive levando embora suas coisas. Também denunciaram que os capangas dos fazendeiros bateram em uma mulher há alguns dias, agressão que foi confirmada pela Funai.

     

    O clima é de perplexidade na tekoá Pyelito Kue. Já vai longe o processo de sistemática agressão a essa gente que, inclusive, em 2012 chegou a lançar um pungente documento ao mundo, dizendo que estavam todos dispostos a morrer na defesa do direito de permanecer na terra que lhes é de direito. Por conta da mobilização causada por esse clamor os Guarani Kaiowá retomaram a Fazenda Cambará, na qual ocupavam 100 hectares. A fazenda inteira é um latifúndio de 2.000 hectares. Desde a retomada, o processo de acosso e violência contra os indígenas não para. Jagunços rondam fazendo ameaças, pessoas são atingidas por arma de fogo, agressões são praticadas, sem que o estado brasileiro tome qualquer providência.

    A área reivindicada pelos indígenas já foi indicada pela Funai como tradicional e mesmo assim o estado não toma uma atitude concreta de demarcação das terras, sendo, portanto, conivente com todo o massacre vivido pelas gentes Guarani Kaiowá. Prefere mantê-los nas beiras de estradas, em situação de miséria e abandono. Assim, a única saída que encontram é retomar os lugares que historicamente sempre foram seus, enfrentando aí a fúria e as armas dos fazendeiros. O Mato Grosso do Sul é uma terra na qual a lei estoura do cano das armas. E quem tem as armas não são os índios.

    A dolorosa resistência do povo Guarani Kaiowá muito pouco espaço ocupa nos jornais ou na TV. Não interessa ao sistema de interesses que rege o país alfabetizar as gentes na verdade histórica. Como poderiam explicar o fato de que os fazendeiros podem matar e manter milícias privadas à margem da lei? Como explicar que para os poderosos a lei não vale? Melhor seguir malhando o velho discurso de que os índios atrapalham o progresso, que deviam se integrar à cultura branca, que deviam parar de encher o saco de quem quer produzir. Criar estereótipos e preconceitos mantendo a imagem de selvagens ou de preguiçosos. Assim, quando um deles cair morto, não causará comoção.

    Mas, no fundão desse Brasil, que é fruto do sangue indígena, as gentes seguem resistindo. No Mato Grosso do Sul os Guarani Kaiowá mantêm a promessa feita em 2012: lutarão até o último homem e a última mulher.

    A questão que temos de colocar é: E nós, permitiremos o massacre?

    Desde os nossos lugares teremos de usar nossos instrumentos de luta. Eu, tenho a palavra, e cada um pode aportar o seu. O que não podemos é deixar que siga a matança. Já basta. Que se pressione o estado para demarque as terras imediatamente, garantindo o espaço que é direito dos Guarani Kaiowá. Um pequeno espaço no meio do latifúndio. A parte que lhes cabe.

  • 19/09/2015

    Cacique e mais dois Guarani Ñandeva são feridos em ataque de pistoleiros à Potrero Guasu (MS)

    Um ataque a tiros iniciado no final da madrugada deste sábado, 19, contra a comunidade do tekoha Potrero Guasu, município de Paranhos (MS), deixou, até a publicação desta notícia, três Guarani Ñandeva feridos a tiros de arma de fogo. O cacique Elpídeo Pires foi alvejado na perna esquerda, Meterio Morales no braço e Celso Benites recebeu três tiros nas costas. Enquanto o cacique era entrevistado, por volta das 14h30, os pistoleiros ainda sustentavam a ofensiva contra o acampamento, completamente destruído (foto).

    Celso Benites conseguiu furar o cerco de capangas e pistoleiros para se dirigir ao hospital de Paranhos. “O tiro que me acertou atravessou a coxa. Dói e sangra muito, mas o procurador (do Ministério Público Federal – MPF) informou que a Força Nacional está a caminho para garantir que a gente também vá ao hospital”, afirma o cacique Elpídeo.

    Parte da comunidade se refugiou numa área de 30 hectares adquirida pela Fundação Nacional do índio (Funai) dentro dos 4.025 hectares reivindicados pelos Ñandeva. No acampamento sob ataque, que ocupa uma área tradicional da antiga Fazenda Ouro Verde, um outro grupo de indígenas se nega a deixar o local. O tekoha Potrero Guasu foi declarado como indígena em 2000. Os indígenas ocupam, conforme o MPF/MS, apenas 6,5% do total de hectares declarados.     

    “O governo sabia. Espera muito, só age quando o índio morre. Parece que eles esperam isso. Pensa isso aqui no Mato Grosso do Sul. Recebemos várias ameaças, mas governo não vê essas coisas. Espera acontecer. Não acho bom isso aí. A Justiça reconheceu a nossa área e depois, nesse dia, o fazendeiro faz esse ataque”, analisa o cacique. Conforme o indígena, mais uma vez, no Mato Grosso do Sul, fazendeiros mandaram avisar que atacariam previamente sem nada ser feito por parte das autoridades.

    Cacique Elpídeo conta que na tarde dessa sexta-feira, 18, por volta das 16h30, ele retornava à aldeia depois de prestar depoimento na Delegacia de Polícia Civil de Paranhos. A comunidade de Potrero vem sendo alvo de acusações e criminalização por parte de fazendeiros. A perseguição começou com as retomadas de 2012. Elpídeo já estava nas proximidades do acampamento, quando um capanga da Jatobá o abordou e avisou que pela madrugada 80 pistoleiros atacariam o tekoha. À noite, camionetes começaram a cerca os indígenas.

    “O ataque começou e eu estava a uns 100 metros da nossa área sagrada de reza. Tinha um grupo de fazendeiro. Alguns deles atiraram contra a gente, então eu fui atingido. Queriam matar eu. Essa tragédia, essa injustiça. O fazendeiro judia do índio, massacra a gente. Sinto vergonha. Governo parece dizer: isso, mata e ataca esses índios. Vamos ver se desistem. Eu digo que não vamos desistir não. Morre tudo aqui, pede pra Funai trazer caixão”, diz Elpídeo.

    Histórico

    Os Guarani Ñandeva, de acordo com relatórios da Funai, foram expulsos por colonos do território tradicional de Potrero Guasu a partir da década de 1930. Nos anos 1970, os indígenas foram colocados na Reserva Pirajuí. A irrevogável decisão dos mais velhos de retorno ao tekoha e a situação de confinamento na reserva motivaram o início da luta dos Guarani Ñandeva por Potrero. Em 2012, depois de retomada, os Ñandeva também foram atacados 

    Em agosto do ano passado, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região cassou uma liminar que impedia há 14 anos a continuidade da demarcação de Potrero Guasu, que fica a 460 km ao sul de Campo Grande. A Justiça seguiu os argumentos do Ministério Público Federal (MPF) ao considerar que “não deveria ser amparada pelo Judiciário, de modo cautelar, a suspensão de atos administrativos por período tão longo”. A decisão que paralisou o procedimento, em 30 de janeiro de 2001, era da Justiça Federal de Ponta Porã.    

  • 18/09/2015

    Luto, lágrimas e luta na XXI Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

    Não foram lágrimas de boas-vindas. Foram lágrimas de dor e compaixão dos participantes da XXI Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário causadas pelo terror que se alastra sobre os povos indígenas no Brasil. Contudo, todos partiram hoje, dia 18 de setembro, depois de quatro dias de Assembleia no Centro de Formação Vicente Cañas, Luziânia (GO), com a soma de pequenas esperanças que emergem das contradições do sistema que é a mola mestra do Estado Brasileiro. Esse sistema, sustentado pelos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo e os canhões do grande capital e do agronegócio, procura encaminhar os povos indígenas para a solução final de extermínio.


    Animados pelas palavras da recente encíclica do Papa Francisco, que “o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma decisão política sob pressão da população” (LS 179), os cerca de 160 participantes dessa Assembleia procuraram aprofundar essa pressão e se debruçaram sobre questões dos ‘Estados Plurinacionais e Autodeterminação dos Povos Indígenas: Em Defesa da Vida dos Povos e do Direito da Mãe Terra’. Essas reflexões nos levam a somar nossas forças às dos indígenas e outros setores da sociedade brasileira que lutam por direito e justiça, por pão e vida que serão o resultado de uma luta dos que, aparentemente, estorvam o progresso do país. E o Papa Francisco mais uma vez nos dá força para nossa luta, quando diz que precisamos redefinir o progresso e o desenvolvimento: “Um desenvolvimento tecnológico e econômico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso” (LS 194). As instituições do Estado buscam derrotar projetos coletivos de futuro; cerrando portas e lançando a todos e todas na mais profunda escuridão. A propriedade privada converteu-se em direito absoluto, acima de qualquer outro. Os indígenas, por sua vez, forçam brechas de luz sobre este luto inconcluso.


    Violências de todas as ordens se sucedem numa escala sem precedentes na história contemporânea do país. Nomeamos apenas um caso entre uma sequência quase diária de assassinatos, espancamentos e duvidosas reintegrações de posse: o assassinato de Simeão Vilhalva Guarani e Kaiowá da Terra Indígena Ñanderú Marangatú, no último dia 29 de agosto. O recurso ao marco temporal para revogar terras demarcadas é uma intervenção perversa porque retoma o tratamento de uma injustiça pré-constituinte. O poder Legislativo trabalha em dezenas de projetos de lei e emendas à Constituição para desfazer os direitos assegurados. Milícias e pistoleiros funcionam como a polícia deste Estado genocida. Ruralistas coordenam atentados declaram publicamente a utilização de armas contra os indígenas. Nada os incomoda. “A vida de uma criança vale menos que um boi”, lamenta Anastácio Peralta Guarani. O cacique Valdomiro Vergueiro Kaigang denuncia: “O governo não está respeitando por onde nosso povo passou, onde enterramos nossos mortos, onde deixamos nossas cinzas”. 


    Desde a primeira Assembleia do Cimi, em 1975, defendemos a Mãe Terra como condição necessária para a autodeterminação dos povos indígenas. Defendemos, igualmente, um Estado Plurinacional como alternativa ao modelo atual, subserviente aos interesses privados, ao capital internacional.  Os povos indígenas enfrentam a lógica opressora desse sistema político que promove a concentração de riquezas, terras, lucros gerando depredação ambiental e desigualdades sociais.


    Tudo isso espelha a lógica da colonialidade na qual é preciso colonizar o ser, o saber e o viver convertendo estes povos em despossuídos. As cosmologias indígenas nos ensinam que os ataques aos indígenas recaem sobre toda a sociedade. O genocídio leva a perder a oportunidade ímpar de aprender com eles o Bem Viver com o planeta Terra, nossa Casa Comum como adverte o Papa Francisco: “Entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que ‘geme e sofre as dores do parto’ (LS 2)”.


    Renovamos a aliança histórica do Cimi com os povos indígenas, mesmo em meio às lágrimas. Seguiremos, descalços, rumo à Terra Sem Males que virá, eis a nossa certeza e a Esperança que nos anima!


    Luziânia, 18 de setembro de 2015

    Conselho Indigenista Missionário – Cimi

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  • 18/09/2015

    XXI Assembleia Geral do Cimi – “Esquecemos que nós mesmos somos terra”

    Na manhã do terceiro dia da XXI Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nesta quinta-feira,18, Paulo Suess (na foto), assessor teológico da organização, iniciou sua fala questionando o papel da assessoria teológica em uma entidade onde as batalhas e decisões acontecem no campo jurídico, legislativo e administrativo, como é o caso do universo vivido pelos povos indígenas.

    Como contribuição ao seu próprio questionamento, ele apresentou três “pedras” fundamentais com as quais a teologia pode contribuir para o trabalho realizado pela instituição indigenista missionária: lembrar a memória (das batalhas passadas, dos indígenas e missionários que tombaram, dos anos de luta para garantir a demarcação de alguns territórios, do Bem Viver); animar a luta de hoje, bastante desafiadora; e alimentar a esperança diante das situações concretas da luta indígena. Paulo avaliou que a teologia é lugar de discernimento e crítica (interna e externa) e destruidora da unanimidade.

    Em seguida, Paulo fez um paralelo entre a igreja e a lua. “O sol é Jesus. A igreja é a transmissora e irradia a luz de Jesus. Ela tem suas fases, a lua cheia, a lua nova… Com o Papa Francisco, tem irradiado muita luz”, considera ele.

    Segundo Paulo, os povos indígenas viveram e muitos ainda vivem em um outro sistema, que é incompatível com o capitalismo, o Bem Viver. Todas as cosmologias têm seu valor e contribuem para a luta, o luto e a esperança do povo. No entanto, ao propagar o consumismo e o individualismo, o capitalismo contamina alguns povos indígenas, mas nele não há lugar para todos.

    Nesse sentido, o teólogo apresenta algumas perguntas no sentido de fortalecer o debate sobre o Bem Viver. “Como fazer uma crítica radical ao sistema capitalista, que mata pelos estímulos à desigualdade, à acumulação e à migração, ao crescimento, à aceleração e banalização da vida e das relações sociais pela precarização do trabalho?”, “Como desmascarar as soluções paliativas para mitigar os efeitos negativos do capitalismo sem tratamento das raízes causadoras?”, “Como convencer os ‘beneficiados’ dessa mitigação, de que eles vivem das sobras da exploração e não num Estado de bem estar social?” e “Como reeducar o mundo alienado pela mídia e pelo consumo, num mundo militante pelo Bem Viver de todos” são alguns destes questionamentos provocados por ele, que citou a entrega das cestas básicas em territórios indígenas não demarcados como um exemplo desse tipo de mitigação.

    Povos indígenas na vanguarda, naturalmente

    “A causa indígena não pediu carona à questão ecológica. Pelo contrário, os povos indígenas foram os primeiros que despertaram, a partir de suas culturas, religiões, mitos e do sofrimento que lhes foi imposto desde a conquista, para a interdependência entre natureza e cultura”, considera Paulo Suess.

    Segundo ele, a ecologia integral faz parte das culturas indígenas e os povos indígenas oferecem à sociedade não indígena a herança de uma educação e espiritualidade integral. São justamente as tentativas sistêmicas de destruir essa herança, orientada para a vida de todos e não para o lucro de particulares, que constituem o conflito básico entre duas visões do mundo, causando violência, mortes e lutas.

    O paralelismo entre a Encíclica da Ecologia, sistematizada pelo Papa Francisco, e o Plano Pastoral do Cimi foi ressaltado pelo assessor, especialmente em relação à concepção da terra como fonte de vida, direito inalienável dos povos indígenas, dom sagrado de Deus e dos antepassados que nela descansam, espaço sagrado com o qual precisam interagir para manter sua identidade, e não um bem econômico, objeto da exploração e do lucro. “Esquecemos que nós mesmos somos terra”, afirma o texto da Encíclica.

    Desse modo, Paulo Suess afirmou a necessidade da urgente mudança de consciência e de hábitos, do abandono da cultura do descarte da sociedade não envolvente, do desenvolvimento de novas convicções, opções e estilos de vida, no sentido de superar o individualismo, a postura de segregação com as outras criaturas vivas, o apego material e regressar à simplicidade. “Os povos indígenas nos desafiam a realizar estas mudanças”, concluiu ele.

     

  • 18/09/2015

    Pistoleiros atacam retomada de Pyelito Kue: dez indígenas foram feridos, entre eles uma gestante e um rezador

    Pistoleiros atacaram na madrugada desta sexta-feira, 18, a comunidade Guarani e Kaiowá do tekoha – lugar onde se é – Pyelito Kue/Mbarakay, localizada no município de Iguatemi (MS). Poucas horas antes, contam as lideranças indígenas, capangas avisaram que “todos seriam mortos”. Os Guarani e Kaiowá estavam a cerca de 200 metros da sede da Fazenda Maringá, retomada na última terça, 15. 

    De acordo com lideranças de Pyelito Kue, dez indígenas estão feridos, incluindo uma gestante e um rezador – a lista com os nomes dos feridos foi repassada, mas será omitida nesta matéria por razões de segurança. Como em Ñanderú Marangatú, os Guarani e Kaiowá denunciam o uso de balas de borracha no ataque, classificadas como de uso restrito, além das habituais armas de fogo.

    Depois do ataque, os indígenas atingidos pelos disparos se refugiaram em uma área vizinha, nas proximidades da Fazenda São Luís. O restante permaneceu na Maringá, garantindo a permanência do povo na retomada. Dessa forma, o grupo Guarani e Kaiowá acabou dividido e não há informações se o estado de saúde dos feridos é crítico. 

    O Departamento de Operações de Fronteira (DOF) vinha fazendo ‘visitas’ ostensivas à retomada dos Guarani e Kaiowá, que denunciam mais ações truculentas dos policiais: “Pegaram as coisas de todo mundo. Levaram roupa, comida, cataram tudo o que a gente tinha e levaram. Atacaram 10 horas da noite”, afirma uma liderança.

    Na terça, o Guarani e Kaiowá explica que “os capangas foram lá (região da retomada) e bateram em uma mulher, mas já a mandaram para o hospital, e foram tudo machucado, machucaram a mulher. Foi pro hospital, em Naviraí. Entraram com as pessoas, capangas do fazendeiro judiaram dela”. Servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) confirmam a agressão. A indígena também passou por exame de corpo de delito no Instituto Médio Legal (IML) de Naviraí e segue acompanhada pelo órgão indigenista estatal. A liderança indígena afirma: “Os capangas são das fazendas Maringá e Santa Rita, uma outra que tem aqui por perto”.

    Histórico de violência

    Pyelito Kue possui um histórico recente de violências diversas. Em 2012, a comunidade emitiu uma nota pública afirmando que preferiam morrer a deixar a terra indígena. Na época, viviam às margens do rio Hovy, depois de expulsos de retomadas anteriores, e sofriam com decisão da Justiça Federal pela reintegração de posse da área. Com a publicação do relatório de identificação, em 2013, os Guarani e Kaiowá retomaram a Fazenda Cambará, onde ocupavam apenas 100 hectares de um total de dois mil do latifúndio por força de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

    Entre março e abril do ano passado, a área retomada foi atacada três vezes por “seguranças” de propriedades incidentes no território. Em uma das ocasiões, tiros de grosso calibre foram disparados contra as moradias feitas de lona. Meses depois, em novembro, Adriano Lunes Benites, de 21 anos, foi alvejado na perna por jagunços de uma fazenda enquanto se dirigia à aldeia.

    A terra indígena teve 41.571 hectares identificados como tradicionais pela Funai, no âmbito do Grupo de Trabalho da Bacia Iguatemipeguá, com relatório publicado em 8 de janeiro de 2013 no Diário Oficial da União. Vivem em Pyelito Kue/Mbarakay 1.793 indígenas, conforme dados da Funai de 2008.

    Essa terra tem dono!

    Nas últimas semanas, os Guarani e Kaiowá dos tekoha Ñanderu Marangatu, em Antônio João, e Guyra Kamby’i, na região de Dourados, também realizaram retomadas e foram atacados de forma violenta por fazendeiros organizados pelos sindicatos rurais. Em Marangatu, Semião Vilhalva foi assassinado durante uma dessas ofensivas. No caso de Guyra Kamby’i, os indígenas foram expulsos das áreas e pressionados a permanecer apenas nos dois hectares em que já viviam confinados.

  • 17/09/2015

    “Em 2015, Somos Todos Indígenas” ou Genocidas?

    “Em 2015, somos todos indígenas”. Este é o mote dos Primeiros Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, que estão previstos para acontecer em Palmas (TO) em outubro deste ano. Por que tão poucas pessoas estão sabendo deste megaevento que acontecerá no nosso país e que contará com a presença de mais de dois mil atletas de 30 países? Por que os envolvidos estão considerando o evento “uma grande conquista dos povos indígenas?”.

     

    A história começa antes mesmo do entusiasmo da senadora e ministra Kátia Abreu, defensora da bancada dos ruralistas no Congresso Nacional, com a realização do evento. Aliás, a ‘rainha da motosserra’ teve atuação decisiva para a escolha de Palmas como sede dos Jogos. Kátia Abreu (atual PMDB e ex-DEM) foi eleita senadora pelo Tocantins por muito pouco (apesar do que disse a mídia local), e, na sequência, foi nomeada Ministra da Agricultura e Pecuária. Além disso, ela também é presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Desde os anos 1990, esteve envolvida no esbulho de terra de pequenos produtores, como foi o caso da grilagem no Tocantins durante o governo Siqueira Campos. Na época, ela era Presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins e foi uma das beneficiadas com a grilagem.

     

    A ministra foi uma das principais responsáveis dentro do governo pela articulação da realização dos Jogos. Conseguiu 10 milhões de reais para o evento, que foram entregues metade antes e metade depois das eleições de 2014. Um ano antes, protocolou na Casa Civil pedido de paralisação das demarcações de terras indígenas. Ela nunca escondeu que tem um lado: o do latifúndio, o do agronegócio, o da motosserra. E esse lado tem um preço: a vida de indígenas. Ninguém pode atrapalhar o “desenvolvimento econômico” emplacado pelo governo atual, nem mesmo a Constituição Federal; se for preciso, esta será alterada. Propostas como a PEC 215, as teses do “marco temporal” e a redução das terras indígenas reforçam as estratégias genocidas desse “desenvolvimento”.

     

    No modelo adotado, os povos tradicionais aparecem como empecilho para o avanço econômico do país, como se este crescimento estivesse destinado a toda população brasileira. Este crescimento, no entanto, refere-se ao desenvolvimento do latifúndio e da exploração de minério; está, portanto, circunscrito a poucas pessoas que já detêm poder econômico. A maioria das grandes obras e dos megaeventos realizados ou pretendidos no Brasil apenas acentuam a diferença de classes. E se o povo brasileiro tem sido duramente prejudicado pelas escolhas do governo, os povos indígenas estão sendo devorados e seus ossos abafados.

     

    As perguntas a serem feitas são: quanto do investimento nos Jogos realmente chega aos povos indígenas? Quais as reais necessidades e conflitos destes povos? Eles foram de fato consultados sobre a realização desse megaevento?

    O Brasil tem caminhado na contramão dos grandes avanços na temática dos direitos indígenas na América Latina e das orientações internacionais de direitos humanos para os povos tradicionais: o marco da atualidade na questão é o respeito à diversidade cultural, à outra visão de mundo e à natureza.

     

    Se todos recursos destinados aos povos indígenas fossem aplicados em suas comunidades, com toda certeza o Mato Grosso do Sul não seria recordista no mundo em lideranças indígenas assassinadas. Se ao menos os processos de demarcação de terras indígenas não estivessem paralisados, já seria um grande passo para os povos tradicionais. Ao invés disso, o que se tem notado é a redução dos direitos indígenas duramente conquistados na Constituinte de 1988 e no cenário internacional.

     

    No 14º Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas, ocorrido em abril deste ano na cidade de Nova Iorque, houve ampla divulgação dos Jogos. A divulgação, contudo, não contou com o apoio da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (maior organização representativa dos movimentos de base indígena no país). Inclusive, representantes desta organização foram coibidos, apesar de inscritos, de se expressarem na mesa de lançamento dos Jogos.

     

    No Fórum, o Brasil vendeu a imagem de exemplo para com os povos tradicionais, afirmando ser o país que mais demarcou terras indígenas. Blasfêmia! Mentira esta que deve ser combatida, pois os processos demarcatórios continuam paralisados e dois dos maiores povos do Brasil (os Guarani e os Terena, no Mato Grosso do Sul), sequer têm indicativo de que suas terras serão demarcadas. Por fim, a imensa parte das terras demarcadas que se encontram na região amazônica estão sem qualquer tipo de fiscalização ou proteção contra os exploradores ilegais.

     

    O Brasil pode ter demarcado larga extensão de terra na Amazônia, mas isso não corresponde à maior parte da demanda por terra dos povos indígenas; mais de ⅔ das terras reivindicadas continuam sem uma solução ou com o procedimento demarcatório suspenso.

     

    A demanda central dos povos indígenas é pela demarcação das Terras Indígenas e, no contexto atual, pode-se dizer que não há espaço para realização dos Jogos Mundiais. A situação chegou ao limite para os indígenas, que, com toda razão, já estão cansados de esperar e de levar bala a esmo; lhes restam quase nenhuma opção, senão as reocupações de seu Tekoha – em gerais sangrentas – e a resistência.

     

    Agora fica até mais fácil entender porque, dentre as propostas para Palmas realizar os Jogos, está a idealização de um Museu do Índio. Se fosse pela Ministra e muitos outros envolvidos nesse evento, lá estariam todos os povos tradicionais; em memória, estáticos, não atrapalham o desenvolvimento do modelo econômico adotado pelo país.

     

    Alguns políticos, como Ricardo Cappelli, secretário nacional de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social do Ministério do Esporte, querem nos convencer de que “(…) os jogos indígenas reafirmam o Brasil como um país preocupado com a sustentabilidade e respeito ao meio ambiente e diversidade étnica”.

     

    Não, Secretário, os jogos indígenas não afirmam nem reafirmam o Brasil como um país preocupado com a sustentabilidade e respeito ao meio ambiente e diversidade étnica. Ele mascara para o mundo os conflitos fundiários e as reais problemáticas enfrentadas pelos povos indígenas no nosso país.  Se a sustentabilidade deve ser considerada uma meta, esta só poderá ser atingida se e quando houver a efetivação dos direitos dos povos indígenas. Os jogos não contribuem para isso: além de não contemplarem os anseios e demandas dos povos indígenas, estes sequer foram questionados sobre a realização do evento, quando muito lhes foi perguntado se queriam participar.

     

    As demandas urgentes são claras: conclusão dos processos demarcatórios das terras indígenas e quilombolas e fortalecimento do conhecimento das comunidades tradicionais e de suas organizações com o fim de fazer respeitar a diversidade cultural consagrada dentro e fora do Brasil.  Os indígenas poderiam ser ao menos consultados sobre os esforços e investimentos dispendidos para a realização dos Jogos, assim como dos demais megaprojetos que se apropriam ou do nome dos povos para fazer propaganda externa ou do espaço tradicional desses povos para exploração.

     

    No Brasil o respeito à cultura originária, apenas existe, se muito, no papel da lei. Tal respeito varia conforme versar o interesse econômico. A expressão “povos indígenas” é usada quando convém para alguns interesses por muitos não-indígenas sem qualquer aproximação ou respeito para com a realidade destes povos. É dizer, quando a expressão “povos indígenas” servir para lucrar, criar-se-ão os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, quando a hidrelétrica não puder ser construída por conta da existência de “povos indígenas” no local, então os indígenas são contra o desenvolvimento econômico do país ou simplesmente são dados como inexistentes. Ainda, para dizer que são “integrados” e que não têm direito a terra, são “índios de calças jeans”.

     

    Em um lugar onde ainda se usam práticas colonialistas e assimilacionistas, onde quem tem a pretensão de ditar o que é melhor para os povos indígenas ou o que deve ser ou não ser um povo indígena ainda são os não-indígenas, de paletó e gravata, é claro que os indígenas não têm espaço para ecoar a sua voz.

     

    Em 2015, e enquanto minimamente todas as terras indígenas não forem demarcadas, enquanto a saúde e a educação indígena não forem realmente diferenciadas, enquanto as crianças indígenas morrerem de desnutrição, enquanto as cestas básicas não chegarem nos acampamentos dos Guarani no Mato Grosso do Sul, enquanto este povo continuar recordista de suicídios de jovens e assassinatos de lideranças, e enquanto o Brasil permanecer destaque nas violações dos direitos indígenas fundamentais, seria vergonhoso dizer que SOMOS TODOS INDÍGENAS, ainda mais como mote desses Jogos Mundiais, melhor seria dizer: SOMOS TODOS GENOCIDAS!

     

    >>> Conheça os bastidores e entornos dessa “celebração”, por meio de uma coletânea de matérias, clicando aqui.


  • 17/09/2015

    Povo Krahô e os Jogos Mundiais Indígenas: “Estamos fora”

    Enquanto busco entender um pouco melhor todo o processo em que está envolvido esse megaevento, vejo o reloginho no sítio eletrônico dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas (JMI) marcar que faltam 38 dias, 22 horas, 26 minutos e 53 segundos para o início desse evento. No ofício 03/2015, encaminhado pelos 28 caciques do povo Krahô, do estado do Tocantins, encaminhado no dia 10 de setembro aos organizadores do Jogos, eles exigem que os “organizadores do evento retirem as imagens e o nome Krahô de qualquer meio de comunicação que sirva de promoção aos Jogos Mundiais Indígenas”.

    Nas razões da decisão, perguntam: “Como podemos participar de um evento financiado por um governo que está promovendo o genocídio de nossos parentes Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, e em várias outras regiões do país? Como podemos participar de um evento promovido pela senadora Kátia Abreu, uma das principais responsáveis pelo avanço do movimento anti-indígena no nosso país?”.

    No mesmo documento, os caciques Krahô denunciam a forma como é conduzido o processo dos JMI, que serve muito mais para promover sua própria imagem do que efetivamente apoiar a causa indígena.

    Em função desses procedimentos, os caciques afirmam categoricamente que o povo Krahô não participará dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas.

    Outras lideranças se manifestam

    Em seu “Manifesto crítico sobre os jogos mundiais indígenas”, a liderança Antônio Apinajé afirma que “é por causa da luta pela terra que muitas lideranças indígenas estão sendo criminalizadas, presas,  espancadas ou assassinadas a mando de fazendeiros e políticos”.

    Antonio Apinajé ainda faz várias perguntas que, certamente, devem estar martelando a consciência dos promotores desses Jogos. Chama atenção para a difícil e até dramática situação pela qual passam vários povos indígenas no país, em particular no Mato Grosso do Sul. Afirma que “a melhor atitude pela paz é também demarcar e respeitar os territórios indígenas, que são sagrados para nossos povos e necessários para o equilíbrio e a sustentação do clima no planeta terra”.

    No final do 1º dia da 21ª Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com mais de 160 participantes de todo o país, foi feito o lançamento de várias publicações do Cimi e de entidades de apoio à causa indígena. Dentre as publicações está um folder que traz importantes elementos para entender quem ganha e quem perde com a realização dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas. Procura, principalmente, trazer elementos da conjuntura em que se realizarão os jogos.

    Alguns problemas levantados pelos povos indígenas dizem respeito aos custos. De acordo com a própria Secretaria Extraordinária dos Jogos Mundiais Indígenas, mais de R$ 100 milhões foram disponibilizados para a realização deste evento, enquanto o governo tem um orçamente pífio para a demarcação das terras e dos territórios tradicionais indígenas. Também fazem alusão à baixa participação dos povos indígenas do Brasil (dos 305 povos no Brasil, apenas 24 participarão; dos dez povos do estado de Tocantins, apenas três participarão); aos riscos da folclorização; à distorção  da realidade, no sentido de camuflar a verdadeira situação de extrema vulnerabilidade de diversos povos, assim como de tirar o foco da atual crise política e econômica; distorcer o significado profundo e sagrado dos rituais em seus contextos e propósitos originais, colocando-os em um ambiente de competição e comercialização.

    Lindomar Terena, liderança indígena do Mato Grosso do Sul, denuncia: “Estes jogos escondem a verdadeira face do governo no massacre dos povos indígenas, elevando a imagem governamental e de alguns indivíduos, enquanto continua negando aos povos o direito sagrado à terra, à cultura e ao modo de vida originário. Enquanto governo e aproveitadores sonham com uma ‘FIFA indígena’, os desmontes, suspensões e ataques aos nossos territórios demonstram que logo todas as terras indígenas não caberão nem ao menos no espaço de um campo de futebol”.

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