• 24/07/2016

    Cimi apresenta realidade amazônica em encontro em Viena

    Cidade do Vaticano (RV) – Entidades ligadas à Igreja Católica se reúnem nos dias 22 e 23 de julho em Viena, na Áustria, para um encontro sobre a criação e os povos mais fragilizados, à luz da Encílica Laudato Si do Papa Francisco.

    O Presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Dom Roque Paloschi (na foto com o Papa Francisco), Arcebispo de Porto Velho, foi convidado a participar para falar da realidade amazônica e adiantou o tema de sua palestra aos ouvintes da Rádio Vaticano – ouça na íntegra aqui.

    Para Dom Roque, a história da região tem sido uma trajetória de perdas e danos: “A Amazônia tem gerado sempre mais recursos para fora do que tem recebido como retorno; tem sido permanentemente um lugar de exploração, abuso e extração de riquezas em favor de outras regiões e povos”.

    O presidente do Cimi entende que o índio não se sente representado pelo Estado brasileiro."Nunca foram respeitados”, diz Dom Roque. O bispo explica que no entendimento destes povos eles não são proprietários dos territórios que reivindicam, mas partes dela.

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  • 24/07/2016

    Sabotagem em estrutura deixa indígenas sem água e fazendeiros os impedem de acessar o São Francisco

    A sabotagem da principal bomba d’água que abastece a aldeia do povo Truká-Tupã no Alto do Aratikum, município de Paulo Afonso, na Bahia, no início dessa semana, levou a comunidade a trancar a principal via de acesso da zona rural da região por algumas horas nos últimos dias. Um incêndio, denunciado pelos indígenas como de origem criminosa, interrompeu o abastecimento de água ao povo; o plantio de hortaliças, principal cultivo e fonte de renda da comunidade, está prejudicado. Por outro lado, fazendeiros impedem os indígenas de acessarem o rio São Francisco em busca de água e peixe.
     
    Conforme o vice-cacique Adriano Rodrigues, a falta de regularização fundiária do território tradicional motivou o ataque. Grupos da região contrários à demarcação têm adotado estratégias violentas contra o povo. “A perícia da polícia esteve conosco no local e já sabe que o incêndio foi provocado por gente aqui de perto da aldeia. O caso foi passado pra Polícia Federal e estamos aguardando. Como a gente não consegue chegar ao rio, tá ruim de água”, explica o vice-cacique. 

    O indígena Truká-Tupã explica que o povo não tem acesso ao rio São Francisco porque fazendeiros da região não permitem. Quilômetros são cercados com arame farpado impedindo ainda uma atividade tradicional do povo: a pesca, fonte de renda e alimentação. Os bombeiros, inclusive, tiveram dificuldades para controlar e apagar o incêndio devido a quantidade de cercas que impediam a passagem e foram derrubadas para que os agentes pudessem ir ao encontro do fogo. 

    Desde 2013, uma decisão liminar do Ministério Público Federal (MPF) para que a Fundação Nacional do Índio (Funai) proceda com a demarcação segue sem ser cumprida pelo governo federal.  O povo, composto por 36 famílias, reivindica 114 hectares de terra indígena.  Sem a garantia do direito constitucional, os indígenas ficam vulneráveis a violências e impedidos de usufruir de forma equilibrada do rio, das terras e matas.

    “São terras consideradas devolutas, ou seja, dos nossos antepassados. Só teremos melhorias quando nosso território for de fato livre dessas ameaças e da negligência do Poder Público. A Funai precisa urgente garantir nosso território”, diz trecho de comunicado do povo Truká-Tupã divulgado pela Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP), entidade que assessora e acompanha o povo em suas reivindicações. Com a situação da ocupação territorial do povo precarizada pelo Estado, serviços de saúde e educação não chegam à aldeia. Os protestos pediram também melhoras em tais políticas públicas.

    A coordenadora da Funai de Paulo Afonso Ive Daniela Guimarães Leal esteve com os indígenas e os acompanhou ao distrito policial para registrar ocorrência. Com outros servidores do órgão indigenista, a coordenadora interveio junto aos indígenas para a liberação da estrada vicinal. Aos indígenas ela prometeu levar a demanda da demarcação territorial para Brasília, mas disse que a conjuntura política do país tem mantido o órgão em mal estado. Os Truká-Tupã seguem em vigília na aldeia pois temem novos ataques.

    Fotos: Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP)
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  • 24/07/2016

    Marcas do genocídio que acompanhou a criação do Rio Grande do Sul seguem presentes


    A história do Rio Grande do Sul costuma ser contada, em suas versões mais tradicionais e ufanistas, cultuando um tempo mítico forjador da alma e do caráter do gaúcho, um povo altivo, guerreiro e livre. “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra”, canta o hino rio-grandense. Essa narrativa, porém omite que o nascimento do que conhecemos hoje por Rio Grande do Sul envolveu, entre outras coisas, o massacre de milhares de indígenas que habitavam o território antes da chegada de portugueses, espanhóis e brasileiros de outras regiões.

    Não há dados precisos, mas as estimativas falam em um milhão de indígenas vivendo em uma área que abrangia também pedaços do território do Uruguai, Argentina e Paraguai. No século XVII, viviam aqui pelo menos 40 povos indígenas diferentes. Quatro séculos depois, restam pouco mais de 30 mil indígenas vivendo no Estado.

    Em entrevista ao Sul21, Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Cimi-Sul, fala sobre a dura realidade das comunidades indígenas no Estado, reduzidas hoje aos povos Guarani, Kaingang, Charrua e Xokleng. Além da luta pela demarcação de áreas de ocupação tradicional, os povos indígenas enfrentam preconceito, racismo e a oposição de setores ligados ao agronegócio que tentam transformá-los em inimigos dos pequenos agricultores, especialmente na região Norte do Estado. Liebgott chama a atenção ainda para a dramática realidade de milhares de indígenas que vivem acampados em margens de rodovias.

    “Há pelo menos 22 acampamentos  no Estado, onde alguns milhares de indígenas vivem uma grave situação de moradia, saneamento básico, assistência em saúde e educação. Essa é uma realidade dolorosa e devastadora para o nosso Estado, um Estado que se diz economicamente importante e intelectualmente avançado”, diz o coordenador do Cimi.

    Sul21: Quais são os povos indígenas que ainda vivem no Rio Grande do Sul hoje?

    Roberto Liebgott: Quatro grupos de povos indígenas habitam o Rio Grande do Sul hoje: Guarani, Kaingang, Charrua e Xokleng. O povo Guarani tem uma população estimada entre 2.300 e 2.500 pessoas. Os Kaingang são o grupo mais numeroso com cerca de 30 mil pessoas, divididas em várias áreas. Temos ainda uma comunidade de aproximadamente 50 charruas em Porto Alegre. E há um pequeno núcleo de indígenas Xokleng que reivindicam uma área na região da Serra. Os Xokleng, que fazem parte da mesma família linguística dos Kaingang, são habitantes tradicionais da região serrana de Santa Catarina e parte da Serra do Rio Grande do Sul. Com o processo de colonização, eles foram dizimados. Em algumas cidades de Santa Catarina há vários sítios arqueológicos com resquícios desse povo.

    Vários povos indígenas conviviam nesta região, cada um dentro de um espaço territorial por eles definido. Mantinham relações de troca e também relações de conflito. Pelos dados históricos de que dispomos, por volta do século XVII, no início da colonização do território que hoje é o Rio Grande do Sul, viviam aqui pelo menos 40 povos indígenas diferentes. Nos enfrentamentos que se seguiram, especialmente com Espanha e depois Portugal, eles foram sendo dizimados.

    Sul21: Qual era, aproximadamente, a população indígena neste período?

    Roberto Liebgott: No Brasil, era de aproximadamente 9 milhões. Há divergências históricas sobre esse número, mas era algo em torno disso. No Rio Grande do Sul, não se tem uma estimativa precisa, mas era em torno de um milhão. Como não havia fronteira definida com os países platinos, o território era mais abrangente, envolvendo Argentina, Paraguai e Uruguai. Era uma população que transitava livremente nestes territórios até que as fronteiras foram demarcadas.

    Sul21: Foi uma redução violentíssima de população. É possível falar em genocídio?

    Roberto Liebgott: Sim, foi um genocídio. Restou uma população ínfima aqui. Ainda temos grupos maiores desses povos na Argentina e no Paraguai, que circundavam esse mesmo território. Há estimativas que entre Brasil, Argentina, Bolívia e Paraguai existam ainda cerca de 250 mil guaranis. Mas, sem dúvida, houve uma redução drástica e muito violenta. No período das Missões, os indígenas acabaram enfrentando os exércitos da Espanha e de Portugal, especialmente na região do Pampa gaúcho e das Missões. Foi um processo bem brutal.

    Sul21: Do período das Missões até hoje, como se deu o processo de perda de território destes povos?

    Roberto Liebgott: A colonização se deu em várias fases. No início do século XX, houve uma intervenção muito forte do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na região Sul do País. Para fazer a colonização e o loteamento das terras, eles foram identificando os grupos indígenas e colocando-os em pequenas reservas. Isso aconteceu muito no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a partir de 1910 aproximadamente, e, de modo mais intenso, nas décadas de 30 e 40. Neste período, foram sendo criadas reservas como a de Nonoai, Guarita, Ligeiro, entre outras. Hoje, nós temos oito reservas no Estado, mais as terras de ocupação tradicional. O SPI, então, foi fazendo o levantamento das comunidades indígenas e removendo-as para dentro das reservas com o objetivo de abrir as terras para a colonização. O Estado começou a promover o loteamento de terras, que era feito por empresas colonizadoras. Essas empresas, em troca das terras, prestavam serviço para o Estado abrindo estradas. Elas abriam estradas, recebiam terras e vendiam essas terras principalmente para imigrantes italianos, alemães e poloneses. Esse processo se estendeu de 1900 a 1940 aproximadamente.

    Essas empresas de colonização, além de fazer esse loteamento, tinham também a função de realizar o que se chamava de limpeza das terras. A limpeza era, exatamente, remover os índios que sobravam, transferindo-os para as reservas criadas pelo Estado. Uma limpeza étnica, em um processo muito violento. Só que nem todos os índios foram transferidos para as reservas. Muitos se negavam e fugiam desse contato, chegando até, em alguns casos, a estabelecer uma relação conflituosa com o próprio Estado.

    Sul21: Como foram essas situações de conflito?

    Roberto Liebgott: Várias comunidades kaingang, por exemplo, não aceitaram essa remoção para outros lugares porque tinha uma relação de pertencimento com a terra onde viviam há muito tempo. A resistência desses grupos se deu mais pelo afastamento e pela recusa do contato. O SPI tinha uma filosofia positivista e era conduzido por militares. Toda a sua estrutura era militarizada. Isso também contribuía para elevar a tensão e a possibilidade de conflito no contato com as comunidades indígenas. Além disso, práticas do próprio Exército começaram a ser introduzidas nos grupos que foram levados para as reservas. Para ter um controle dentro das reservas, o próprio SPI criava patentes para as lideranças indígenas ou para funcionários do serviço de proteção. Tinha cabo, sargento e capitão, que eram aqueles que estabeleciam o controle interno nas comunidades.

    Esse foi um período histórico bastante violento, pois os povos indígenas eram arrancados de suas terras e levados para viver em outra região, muitas vezes com grupos que, historicamente, eram rivais, o que acabou criando também conflitos étnicos dentro das reservas. Esse tensionamento interno, num determinado momento, começou a jogar para fora das reservas os grupos insatisfeitos. E a tendência desses grupos insatisfeitos era retornar para as terras de onde tinham sido arrancados. Eles saem de uma situação interna de tensionamento, vão em busca da terra originária e, quando chegam lá, a terra está ocupada. Passa a ocorrer, então, outra disputa com aqueles que foram assentados pelo Estado.

    Sul21: Vem daí a presença, ainda hoje, de pequenos grupos indígenas em vários centros urbanos do Estado?

    Roberto Liebgott: Há estudos de antropólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e de outras universidades que fazem a recuperação histórica dessa presença indígena nos centros urbanos. Esses estudos mostram, por exemplo, que o kaingang sempre circulou entre as suas áreas tradicionais e as cidades que estavam sendo construídas e consolidadas, estabelecendo uma relação comercial com a troca de mercadorias por produtos que eles fabricavam. Em Porto Alegre, há várias referências geográficas, comprovadas por estudos arqueológicos e antropológicos, que mostram que os índios vinham para determinados espaços onde ficavam residindo por meses. As distâncias eram grandes. Vinham em caminhadas que podiam durar meses e também passavam meses aqui, onde confeccionavam seus produtos que seriam utilizados depois como moeda de troca.

    Sul21: Para que regiões de Porto Alegre esses grupos vinham?

    Roberto Liebgott: Para o Morro do Osso, por exemplo, uma área que hoje está em disputa e onde vivem cerca de 50 famílias kaingang. Também há evidências que vinham para a Ponta Grossa, Lomba do Pinheiro, Morro Santana, Arroio do Conde (perto de Guaíba). E muitos desses grupos também passaram a procurar os centros urbanos por problemas de saúde. Em função do contato com a chamada civilização, passaram a ser vitimados por várias epidemias.

    Sul21: Há uma recuperação populacional desses povos nas últimas décadas? Isso vem sendo medido?

    Roberto Liebgott: Até o início da década de 90 nunca houve um censo das populações indígenas. Depois disso ele passou a ser feito de uma forma mais sistemática. O último ocorreu em 2010, quando foi feito um grande levantamento da população indígena. Aí se conseguiu ver que a população indígena que vive nas cidades ou nas margens das cidades representa quase a metade da população indígena total no país que é de quase 900 mil pessoas.

    Sul21: Qual o principal problema vivido hoje pelas comunidades indígenas no Rio Grande do Sul?

    Roberto Liebgott: A grande questão envolvendo os povos indígenas ainda é a fundiária. Eles foram arrancados de suas terras no passado e, hoje, muitos deles tomaram a iniciativa de retornar para as suas terras originárias. Os kaingang têm um ditado: “A gente volta pra terra onde os nossos umbigos foram enterrados”. É retornar para a terra-mãe. A principal tensão que temos hoje no Rio Grande do Sul é essa questão fundiária, especialmente no norte do Estado e também no entorno de Porto Alegre e Litoral. Nestas duas últimas regiões, há pelo menos 22 aldeias guaranis, sem contar as aldeias kaingang em Porto Alegre e em cidades próximas, como Estrela, Lajeado, Farroupilha, São Leopoldo, entre outras.

    Do ponto de vista jurídico, em Porto Alegre temos áreas que foram cedidas pela Prefeitura para algumas comunidades, como para os guaranis, na Lomba do Pinheiro kaingang, no Lami, e também para um grupo de charruas. Em função da duplicação da BR 386, houve um processo de compensação para as comunidades afetadas, por meio do qual se decidiu adquirir uma área para os indígenas de São Leopoldo, uma para os indígenas do Morro do Osso e uma para os do Lami. O DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) adquiriu essas áreas e elas serão transferidas para o patrimônio da União.

    Nós temos, hoje, três modalidades de áreas indígenas: áreas de ocupação tradicional (que envolve um procedimento demarcatório previsto pela Constituição), áreas de reservas e áreas adquiridas ou pelos próprios indígenas ou por outros entes que as disponibilizam para eles. Há casos bem concretos de áreas que são referências históricas com uma forte relação de pertencimento.

    Sul21: Poderia citar um exemplo?

    Roberto Liebgott: São muitas. Pelos nossos dados são 117 áreas indígenas que, somadas, chegam a 120 mil hectares. Cerca de 70% delas estão com os procedimentos de demarcação a serem iniciados ou a serem concluídos. No entorno de Porto Alegre, há umas cinco áreas em processo de demarcação pela Funai. Temos, por exemplo, a área de Itapuã, que abrange o Parque de Itapuã, uma área no Morro do Coco e outra do outro lado do rio, na Ponta da Formiga, que, somadas, formam um grande território. Do outro lado do rio, perto de Guaíba, há um território (guarani) que abrange áreas em Petim, Passo Grande e Arroio do Conde. Aqui em Porto Alegre, está se lutando pela demarcação da área do Morro do Osso. No Lami também há uma área em processo de demarcação.

    Há uma cosmovisão territorial naquela região, onde já há uma área indígena demarcada chamada Cantagalo, uma área no Lami e outra na Lomba do Pinheiro indo na direção do município de Viamão, onde há outras áreas como a Estiva e Capivari, no município de Capivari do Sul.

    Sul21: E como está a situação no norte do Estado?

    Roberto Liebgott: Nesta região, a situação é muito tensionada. É um tensionamento que também é alimentado de fora para dentro. Há uma estrutura agrária poderosa ligada ao agronegócio que tem interesses em vários estados do país como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará e Tocantins. Eles alimentam esse tensionamento aqui no Rio Grande do Sul também para evitar que possíveis demarcações gerem um precedente para demarcações em outras áreas do país que são do interesse do agronegócio. Esse setor ruralista alimenta um conflito entre os índios e os pequenos agricultores. Já o nosso objetivo é estabelecer um processo de diálogo para que se esclareça tanto os indígenas quanto os pequenos agricultores que, no processo de colonização desta região do Estado do Rio Grande do Sul, ambos são vítimas. Mas com a instigação constante para o conflito os agricultores não conseguem assimilar um processo de debate sobre os direitos dos índios à terra.

    Sul21: Um exemplo disso é o famoso vídeo da audiência pública em Vicente Dutra onde os deputados federais Luiz Carlos Heinze (PP) e Alceu Moreira (PMDB) vociferam contra indígenas, quilombolas, gays e lésbicas…

    Roberto Liebgott: Sim, e esse discurso foi repetido em vários outros espaços nos últimos anos. A Câmara dos Deputados e o Senado promoveram uma audiência pública conjunta aqui na Assembleia Legislativa para debater questões de demarcação de terra e sequer convidaram representantes de indígenas e quilombolas. Mais recentemente, outra audiência pública, desta vez da CPI Funai-Incra, foi convocada e mais uma vez os indígenas e quilombolas não foram convidados a participar.

    A CPI Funai-Incra nasce sob a perspectiva de criminalizar todos os movimentos de demarcação de terras realizados por esses dois órgãos, abrangendo também o processo de Reforma Agrária. Ela nasceu com o espírito de desconstruir direitos que já foram consolidados, dizendo que tudo isso foi feito por meio de fraudes. Na verdade, é um jogo de força do latifúndio contra os avanços e conquistas obtidos no âmbito jurídico e por meio de políticas públicas de assentamento de famílias e de demarcação de terras para indígenas e quilombolas.

    Além da CPI da Funai está em discussão no Congresso Nacional a PEC 215 que reúne todas as teses contrárias aos indígenas, quilombolas, pequenos agricultores e ao meio ambiente. Caso seja aprovada, ela estabelece que terras para indígenas e quilombolas não sejam mais demarcadas, que áreas de proteção ambiental não sejam mais constituídas, além de determinar a revisão de procedimentos demarcatórios realizados em governos anteriores. No âmbito do Judiciário também se consolidam teses anti-indígenas, fundamentadas na ideia do que eles chamam de marco temporal da Constituição de 1988. Segundo essa ideia, povos indígenas ou quilombolas que não estavam em uma determinada área em 1988, perderam direito à mesma. Ela limita o direito dos índios até 1988. Isso é muito grave.

    Até a Constituição de 1988, os indígenas eram tutelados pelo Estado, que os representava. Eles não podiam ingressar em juízo para fazer a defesa dos seus direitos e interesses. Quem fazia isso era o próprio Estado que, na maioria das vezes, se negou a prestar esse serviço aos povos indígenas. A Constituição de 1988 estabeleceu que os índios são cidadãos de direito. Com isso, eles passaram a ter personalidade jurídica, a ser sujeitos de direito. Como tal, deveriam ser chamados em todos os processos que os envolvam, como, por exemplo, naqueles de demarcação de terras. No entanto, na maioria dos casos, isso não acontece. Muitos tribunais ainda atribuem à União a defesa dos direitos dos indígenas o que é muito grave e, na prática, representa o cerceamento do direito de defesa dessas comunidades. É uma aberração jurídica que impede os índios de serem sujeitos de direito.

    Sul21: E ainda há os grupos que vivem em acampamentos na beira de estradas…

    Roberto Liebgott: Sim. No Rio Grande do Sul, em função da expropriação de suas terras, os índios foram sendo obrigados a ocupar os piores lugares. As terras foram loteadas, cercadas e eles foram expulsos dessas áreas. Ainda hoje, muitas comunidades vivem na margem das estradas, sem terra para viver. Há pelo menos 22 acampamentos  no Estado, onde alguns milhares de indígenas vivem uma grave situação de moradia, saneamento básico, assistência em saúde e educação. Vivem no barranco das estradas. A maioria desses acampamentos está localizada no norte do Estado e também há alguns no entorno de Porto Alegre. Essa é uma realidade dolorosa e devastadora para o nosso Estado, um Estado que se diz economicamente importante e intelectualmente avançado.

    Sul21: Diante dessa ofensiva conservadora, qual a capacidade de resistência e mobilização das comunidades indígenas? Elas estão conversando entre si sobre essa situação?

    Roberto Liebgott: A partir dos anos 60, os povos indígenas saem do anonimato. Até então, viviam em grupos isolados enfrentando as frentes de expansão da colonização. Por meio da articulação de vários setores da sociedade, passaram a ocorrer encontros entre diferentes comunidades indígenas. Nos anos 70 começaram a ocorrer as grandes assembleias dos povos indígenas, que reuniam grupos de diferentes regiões. A articulação que se aprofundou a partir daí termina por consolidar, na Constituinte de 1988, conquistas materializadas nos artigos 231 e 232, que asseguram o direito à diferença, o direito à terra e o fim da tutela pelo Estado. No final dos anos 80, a partir desse processo das assembleias começaram a se formar organizações indígenas em diferentes lugares do Brasil. Essas organizações foram protagonistas na organização de algumas políticas públicas de saúde e de educação, estabelecendo, por exemplo, o direito da educação escolar diferenciada com currículo próprio e ensino bilíngue.

    No Rio Grande do Sul, nos últimos anos, há uma crescente articulação envolvendo principalmente as comunidades guarani e kaingang que estão debatendo a violação sistemática de direitos constitucionais e a necessidade de fortalecer a luta pela terra.

    Sul21: Na sua opinião, o quão forte é ainda o preconceito da chamada sociedade branca em relação aos povos indígenas?

    Roberto Liebgott: Nós vivemos, nos últimos anos, alguns importantes avanços em termos de conquista de direitos pelos povos indígenas. Um deles ocorreu no terreno do acesso à universidade, por exemplo. Temos, hoje, mais de 40 estudantes indígenas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e outros tantos em outras federais. Mas, ao mesmo tempo em que houve esse avanço, temos uma reação conservadora a ele. Há um poder econômico, político e jurídico que não gosta desses avanços. O fato de os povos indígenas começarem a sair da invisibilidade causa certa aversão destes que se sentiam protagonistas em todos os sentidos, inclusive nas universidades. Isso desacomoda uma estrutura que parecia consolidada. O mesmo ocorre na questão fundiária quando se começa a demarcar uma terra.

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  • 24/07/2016

    O descontrole do Estado e os ataques violentos contra os Guarani-Kaiowá. Entrevista especial com Cleber Buzatto


    A situação é calamitosa”, resume Cleber Buzatto – na foto, ao centro – à IHU On-Line ao comentar os conflitos e as ações contra os índios Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Segundo ele, o atual quadro é reflexo de um “descontrole absoluto por parte do Estado brasileiro, que, em função da impunidade generalizada e da falta de atuação”, tem permitido a proliferação de “ações de milicianos organizados de forma paramilitar que vêm, inclusive à luz do dia, promovendo esses ataques, quase que cotidianos – sistemáticos – contra os Guarani-Kaiowá”.

    Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Buzatto informa que este ano o governo federal cortou 30% dos recursos previstos para aFundação Nacional do Índio – Funai, o que tem gerado um “estrangulamento do órgão”.

    O Secretário Executivo do Cimi também comenta brevemente as indicações de dois generais do Exército para a ocupação do cargo da Funai e o encontro do presidente interino, Michel Temer, com ruralistas na semana passada. Esses fatos, pontua, demonstram “uma orientação política do governo interino de Temer no que diz respeito aos povos indígenas, no sentido de uma retroação na relação do Estado brasileiro com esses povos, tal qual a estabelecida pelo Estado na época da Ditadura Militar”. E acrescenta: “O governo quer voltar à relação pré-constituinte, ou seja, uma relação de tutela, de servilismo e de integracionismo dos povos em relação ao Estado, o que é inaceitável”.

    Cleber César Buzatto é Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.

    IHU On-Line – Como avalia a sucessão de ataques que ocorreram contra os indígenas na última semana? Outras comunidades podem estar em risco neste momento? Qual o panorama da situação?


    Cleber César Buzatto – A situação é calamitosa. Avaliamos que há um descontrole absoluto por parte do Estado brasileiro e, em função da impunidade generalizada e da falta de atuação do próprio Estado, proliferam as ações de milicianos organizados de forma paramilitar que vêm, inclusive à luz do dia, promovendo esses ataques, quase que cotidianos – sistemáticos – contra os Guarani-Kaiowá, no estado de Mato Grosso do Sul. Ações como essas são levadas a cabo por representantes do agronegócio, latifundiários e pessoas contratadas, que estão agindo de forma completamente impune. É evidente que precisa haver uma ação do Estado para pôr fim a essa barbárie que está sendo cometida pelo latifúndio e pelo agronegócio contra os Guarani-Kaiowá.

    IHU On-Line – Além dos Guarani-Kaiowá, que outras comunidades estão correndo perigo no estado?


    Cleber César Buzatto – Da forma como está a situação em Mato Grosso do Sul, todas as comunidades Guarani-Kaiowá estão em risco, de modo especial, exatamente essas que vivem na região do município de Caarapó, próxima àReserva de Tey’i Kue e também as comunidades de Kurusu Ambá, que também sofreram ataque na semana passada.

    IHU On-Line – Alguma providência já foi tomada para apuração dos ataques ocorridos recentemente? Como estão agindo a Força Nacional de Segurança e a Polícia Federal quanto a esses casos?

    Cleber César Buzatto – A nossa avaliação é de que há uma parcimônia muito grande das forças policiais, seja para impedir os ataques, seja para identificar e punir os criminosos que estão cometendo esses ataques. O que existe de mais efetivo é uma investigação conduzida pelo Ministério Público Federal, que inclusive identificou e apresentou denúncia contra 12 pessoas que foram acusadas de formação de milícia no ataque aos Guarani-Kaiowá nos últimos períodos. No entanto, por parte da Polícia Federal, que seria a polícia investigativa e de inteligência, até o momento não temos observado ação no sentido de identificar e punir os responsáveis por esses ataques.

    IHU On-Line – Que medidas têm sido tomadas para proteger as comunidades indígenas sob ameaça?


    Cleber César Buzatto – O que tem acontecido, e de forma ainda tardia muitas vezes, é a ação reativa, ou seja, depois de comunicada de que está havendo um ataque, a Força Nacional se desloca para o local e, muitas vezes, demora muito para fazer o deslocamento de forma reativa. Inclusive ontem [13-07-16] foi necessário comunicar diretamente oMinistério da Justiça para ver se era possível fazer o deslocamento da Força Nacional para essas regiões, onde havia a preparação de um novo ataque na região de Caarapó. Portanto, avaliamos que é preciso uma ação preventiva, que evite os ataques; uma ação, quando necessária, reativa e imediata, e que puna e qualifique os autores ou os que estão ameaçando o ataque; e, evidentemente, uma ação investigativa que identifique, ofereça denúncia e punição aos responsáveis por esses ataques.

    IHU On-Line – Atualmente como está a atuação da Funai frente ao contexto de violência contra os indígenas na luta pela demarcação de terras e em meio às decisões judiciais de reintegração de posse, nas quais muitas vezes é chamado a atuar?


    Cleber César Buzatto – Nossa avaliação é de que os agentes da Funai que atuam nessa região de Mato Grosso do Sul demonstram boa vontade de contribuir e trabalhar na defesa dos povos indígenas, que é a função institucional. Mas é evidente que existe uma deficiência estruturante de recursos humanos e de recursos financeiros que possibilitem uma estrutura mínima necessária para um atendimento mais qualificado. O governo brasileiro cortou recursos da Funai na ordem de 30% para este ano, o que gera um estrangulamento do órgão indigenista e que significa uma dificuldade muito grande por parte dos agentes de atuar de forma mais qualificada.

    Claro que não é função da Funai retirar os povos dos seus territórios, embora um juiz federal de Dourados, recentemente, tenha insistido em uma ação de reintegração de posse da Fazenda Ivu – mesmo local onde foi assassinado o Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza –, determinando que a Funai faça a retirada dos índios. Mas nós entendemos que esse não é papel da Funai e esperamos que ela não faça isso, porque não tem nem capacidade para fazer isso, muito menos legitimidade para tal.

    IHU On-Line – A Funai tem um histórico de frequentes mudanças em sua presidência. De que modo avalia essas constantes trocas de liderança da Fundação e as recentes indicações de dois militares para o cargo, primeiro Sebastião Roberto Peternelli Júnior e depois Franklimberg Ribeiro de Freitas, ambos generais do Exército?


    Cleber César Buzatto – As indicações dos generais do Exército para a presidência da Funai são um indicativo, na nossa avaliação, bastante emblemático de uma postura e de uma orientação política do governo interino de Temer no que diz respeito aos povos indígenas, no sentido de uma retroação na relação do Estado brasileiro com esses povos, tal qual a estabelecida pelo Estado na época da Ditadura Militar. Relação esta que foi de imposição, que trabalhava em uma perspectiva de integracionismo, o qual foi vencido pelos termos da Constituição Brasileira, que reconheceu os direitos dos povos originários aos seus costumes, crenças e tradições, como também o direito às suas terras tradicionais.

    A indicação desses militares nos leva a entender que o governo quer voltar à relação pré-constituinte, ou seja, uma relação de tutela, de servilismo e de integracionismo dos povos em relação ao Estado, o que é inaceitável. Os povos têm demonstrado essa não aceitabilidade por meio de ações, mobilizações e também de documentos, assim como a sociedade civil que atua com esses povos também tem reagido e se manifestado publicamente sobre a situação indígena, a ponto de o governo, pelo menos taticamente, não ter condições, neste momento, de efetivar essa nomeação devido à reação dos povos e da sociedade. Mas essas indicações são preocupantes e mais ainda a insistência do governo nessa direção.

    IHU On-Line – O modelo econômico brasileiro de exportação de commodities também é um fator que intensifica os conflitos fundiários no país? De que modo? Poderia falar um pouco sobre essa relação?


    Cleber César Buzatto – O modelo econômico do país que prioriza a exportação de matérias-primas – commodities agrícolas e minerais – é um modelo falido. Para nós, isso é um absurdo muito grande e esse é um dos fatores principais que têm levado à potencialização dos ataques e das violações contra as comunidades indígenas, contra quilombolas, contra extrativistas e trabalhadores sem-terra por parte do agronegócio, que é um modelo que acaba, em muitas situações, se beneficiando dessa perspectiva de produção de commodities, fundamentalmente voltadas para a exportação.

    Evidentemente que essa perspectiva é viabilizada por meio de decisões políticas e de financiamento público. Nos últimos anos, apenas no Plano Safra 2014/2015, para termos uma ideia, o Estado brasileiro aportou cerca de R$ 10 bilhões na forma de subsídio ao latifúndio e ao agronegócio. Mas mesmo com esse subsídio todo, está na pauta da bancada ruralista, assim como das associações de produtores de commodities agrícolas voltadas para a exportação, a securitização da dívida, ou seja, uma espécie de “calote” no pagamento da dívida dos fazendeiros aos cofres públicos.

    Esse foi, inclusive, um dos temas da reunião-almoço que aconteceu na última terça-feira (12/07/2016), quando o presidente interino foi visitar os ruralistas na mansão mantida pela bancada ruralista no Lago Sul, em Brasília. Pela primeira vez um presidente em exercício visita os ruralistas na mansão mantida pelos próprios ruralistas em Brasília, e isso é um indicativo forte de que essa perspectiva e esse modelo tendem a ser fortalecidos ainda mais em uma eventual confirmação do mandato de Temer nos próximos períodos.

    IHU On-Line – A instabilidade política no país e o apoio da bancada ruralista ao governo interino podem agravar o contexto dos povos indígenas em comparação com os últimos mandatos do PT, que também não apresentaram caminhos para a resolução dos conflitos fundiários?


    Cleber César Buzatto – Estamos convencidos de que a confirmação do governo Temer funcionará para que aconteça uma piora ainda maior nas situações vividas pelos povos indígenas no Brasil.

    Sempre fomos críticos em relação ao governo Dilma, exatamente pelas opções prioritárias que ela fez pelo modelo do agronegócio, inclusive com deficiências graves em relação ao andamento do procedimento de demarcação de terras indígenas, quilombolas e da reforma agrária. Mas, com esse novo governo, a tendência é que todas as mazelas que já vinham sendo cometidas pelo agronegócio e pelos representantes do agronegócio na Câmara se aprofundem ainda mais, seja no que diz respeito aos ataques e violações diretas aos povos e suas lideranças, seja por meio de ações de intimidação e criminalização no âmbito do poder Legislativo, como já tem acontecido, por exemplo, por meio da CPI da Funai e por meio da PEC 215, ou pelo Projeto de Lei 1610 – que trata da mineração em terras indígenas – e outros tantos que são manejados pelos ruralistas no âmbito do Congresso brasileiro.

    IHU On-Line – A partir da reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária – FPA com o presidente interino Michel Temer, que assumiu o compromisso de repensar as regras para demarcação de áreas indígenas, compra de terras brasileiras por estrangeiros e de licenciamento ambiental, que prognósticos podem ser esperados sobre a situação dos povos indígenas brasileiros?


    Cleber César Buzatto – Por um lado, como disse, é esperado que se intensifiquem os ataques e as violências e, portanto, um quadro ainda mais grave na relação vivida pelos povos indígenas nos país. Por outro lado, nós entendemos que os povos indígenas não aceitarão essa situação sem reagir e sem resistir. Portanto, a tendência é que continue a mobilização dos povos em defesa dos seus direitos e pela efetivação deles nas diferentes regiões do país. Os povos, historicamente, têm sido muito sábios nas deliberações que têm tomado nessa perspectiva.

    A Ditadura Militar também tentou implantar, a ferro e fogo, o projeto do integracionismo, inclusive com metas de que, no ano 2000, não existiriam mais povos diferenciados no país. Mas os povos venceram a ditadura e o projeto integracionista, conquistaram direitos com o reconhecimento, por parte do Estado, da existência diferenciada desses povos, por ocasião da Constituição de 1988. E nós temos a convicção de que os povos se manterão resistentes e ativos na defesa de seus direitos e também saberão encontrar caminhos para vencer mais esse circuito de ataques frontais que estão sofrendo por parte do agronegócio exportador do país.

    IHU On-Line – Diante do contexto político e de violência contra os indígenas, que saídas são possíveis no curto prazo para a proteção da integridade física e dos direitos desses povos sob ameaça no Brasil?

    Cleber César Buzatto – Uma questão que é importante nessa direção é a visibilidade desse contexto, seja em âmbito nacional, seja em âmbito internacional, a ponto de que os organismos multilaterais tomem iniciativas concretas na perspectiva de cobrar do Estado brasileiro, que é signatário de uma série de instrumentos legais internacionais, que respeitem esses instrumentos e as próprias normativas do Estado brasileiro. Também, denunciar os acordos comerciais que o Brasil tem com outros países, seja da Europa ou da Ásia, demonstrando a esses países que esses acordos comerciais podem estar contribuindo para a violação de direitos humanos, indígenas e ambientais no país.

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  • 24/07/2016

    “Valorizar o que temos na nossa comunidade indígena”, diz Lucila Wapichana após inauguração da Casa da Memória

    Após um dia da inauguração da casa de medicina tradicional, oriundo do projeto “Casa da Memória”, ocorrida no domingo, 17 de julho, na comunidade indígena Jacaminzinho, na comunidade indígena Malacacheta, Lucila Mota de Souza, 72 anos, geração de Thiago de Souza e Galdina Mota, uma geração de Wapichanas da região Serra da Lua, veio visitar a sede do Conselho Indígena de Roraima (CIR), especialmente, a Secretaria do Movimento de Mulheres Indígenas de Roraima e compartilhar um pouco da boa nova de anos e anos quando finalmente conseguiu realizar o sonho de construir o seu cantinho sagrado, um cantinho coletivo e que pretende deixar às futuras gerações.

    Acompanhada pela filha Meire Souza da Silva, Lucila Wapichana foi recepcionada  pela secretária do Movimento de Mulheres Indígenas, Telma Marques Taurepang, na manhã desta terça-feira, 19. 


    Ciente de que essas linhas são apenas algumas de uma longa caminhada e que só contar não basta, precisa viver, então compartilhamos um pouco dessa trajetória, de busca pela valorização da medicina tradicional, assim, narrada por ela mesma em uma conversa de reencontro de gerações.


    Lucila conta do período em que se deixou de lado o uso da medicina tradicional, mas que aos poucos novamente foi valorizada. “Dos anos 1950 para cá não se valorizava mais a reza, e hoje, nós estamos valorizando os pajés, parteira e os saberes dos remédios tradicionais.”


    Oriunda de uma geração de rezadores, ou benzedores, como é dito pelos mais antigos, ela conta que começou aos 17 anos quando realizou o primeiro parto tradicional. “Eu sou parteira, então para ter esse conhecimento foi do primeiro parto com 17 anos, onde meus remédios eram tradicionais, do mato, do campo, da casca, da folha. Foi daí que começou, meu pai era rezador, avô era pajé, quando o povo adoecia, o chamavam para rezar”. “A reza deles era muito valorizada, não tinha médico, enfermeiro, como hoje tem, a reza era com os pajés, rezador e parteira. Então comecei a conhecer, só que não registrava no papel, mas ficou na memória.”


    A caminhada de vida coletiva também começou durante a participação das reuniões comunitárias, quando se tornou referência na cura através dos remédios tradicionais. “Comecei a participar das reuniões, vendo muita gente que necessitava de remédio e isso foi me levando para um conhecimento bem forte, continue fazendo aquele remédio bem forte para as pessoas fazia chá e outros remédios. Isso sozinha, não tinha outras pessoas comigo. Então, pensei, vou continuar trabalhando e as pessoas encomendavam xarope e garrafada.”


    O histórico da caminhada na comunidade indígena Malacacheta, assim como outras comunidades da região Serra da Lua é marcado pela presença de missionárias da Igreja católica. Lucila conta que, para fortalecer e incentivá-la ainda mais sobre o uso da medicina tradicional, contou com o apoio das irmãs Filhas da Caridade, missionárias da Diocese de Roraima que atuam com os povos indígenas em Roraima, especificamente, na região da Serra da Lua.


    “Para fortalecer mais ainda o trabalho, vieram às irmãs Filha da Caridade, incentivar e disseram: vamos reunir as mulheres que conhecem a medicina tradicional. Foi quando eu cheguei e disse: eu vou aprender mais. Foi uma força que elas nos deram: vocês não tem que esquecer os conhecimentos que vocês têm, valorizem, porque se não, vocês vão sofrer. Justamente, o que meu pai já falava também: quando a gente morrer, minha filha, se vocês não conhecer esse remédio que nós temos, vão morrer, vai morrer muita gente. E morreu, porque a gente não sabia como era a reza. Então hoje, depois que entrei no trabalho pastoral, pesando as crianças, com peso baixo fazia vitamina, dava remédio e daqui a pouco os pais diziam: foi bom aquele remédio. Adulto, senhor e senhora, idosa, doente, fazia massagem, passava pomada, e diziam: fiquei bom. Então aquilo me fortalecia, fortalecia mais o trabalho. Chegou uma senhora e disse, vou trabalhar contigo. Eu disse: vamos, traz os ingredientes e assim foi chegando, hoje, temos 10 mulheres trabalhando. Então nos associamos e vamos valorizar o que temos agora.  Assim contou Lucila, um pouco da sua caminhada.


    Sobre o nome do projeto “A Casa da Memória”, as razões são simples. “Coloquei porque ficou na memória. Não esqueci e fui lembrando tudo como era no passado.”


    São diversos os tipos de remédios tradicionais feita pela dona Lucila e suas companheiras de trabalho, conforme conta. “Como estamos em tempo de gripe, temos remédios como xarope, também para inflamações renais, a pomada milagrosa para dores no corpo, remédio para verminose, tem vitamina que chamamos de monte- mistura que é para reumatismo, fortalecimento nos ossos e assim outros tipos de remédios.


    A Casa foi inaugurada e tem uma rotina programada tanto para vendas como para própria organização dos trabalhos. O funcionamento, segundo Lucila, será nas terças e quintas, e considerando que haverá público aos finais de semana, a Casa funcionará de sexta-feira até domingo, pensando justamente nos visitantes que só podem comparecer nesses dias.


    Os demais dias serão dedicados para o trabalho de produção da medicina tradicional e planejamento das atividades da Casa – para não faltar remédio tradicional.


    Para finalizar, dona Lucila, motivada com a realização de um desejo, que vinha sendo construído no cotidiano reforçou que o desejo é continuar o trabalho na tentativa de proporcionar esse valor aos filhos, netos, estudantes e a própria comunidade indígena, de onde toda riqueza é usada e valorizada. “Então a gente quer continuar, nós queremos que o povo indígena veja, conheça, para valorizar o que tem dentro da sua comunidade indígena.”


    “Estamos tirando isso da nossa própria comunidade, não estamos tirando de outra região, ali dentro, nós criamos um projeto que é nosso, não é de fora e fica com a gente, nós que mandamos, fazemos e marcamos como deve ser. Isso aqui é repassando aos netos, filhos, alunos, que estudam dentro da comunidade.”


    “Valorizar o que tem dentro da nossa comunidade é nos valorizar também, enquanto indígenas, porque somos capazes de fazer o nosso trabalho, junto com a comunidade e junto com quem ajuda a gente”. E assim registramos em algumas linhas, da boa nova que ela nos trouxe e também compartilhamos.


    A estrutura da casa, segundo Lucila, é o resultado de doações e apoio das irmãs Filhas da Caridade e os custos com a compra de materiais para a produção de remédios tradicionais são de economias pessoais e da venda dos produtos. O valor arrecado é investido na produção dos próprios remédios tradicionais.


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  • 24/07/2016

    Povos indígenas do Médio Solimões realizam ato público em Tefé (AM) na defesa do direito à terra


    Centenas de indígenas de povos do Médio Rio Solimões e afluentes, no Amazonas, realizaram um protesto no final da última semana como parte das ações da Mobilização Nacional Indígena contra os retrocessos apresentados pelo interino Michel Temer no trato com a política indigenista estatal. O ato ocorreu na praça Remanso do Boto, município de Tefé. Entre discursos e danças rituais, os indígenas recolheram assinaturas para um abaixo-assinado pedindo às autoridades federais que os direitos aos povos conferidos sejam garantidos.

    Faixas e cartazes traziam palavras de ordem contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que prevê a transferência das demarcações de terras indígenas do Executivo para o Legislativo, além do Marco Temporal. Essa última tese entende que só podem ser demarcadas terras cujo o povo que a reivindica esteja sobre ela, ou em disputa, a partir da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

    As lideranças indígenas demonstraram em seus discursos o entendimento de que as violações aos direitos originários tomaram uma proporção ainda mais preocupante com a tomada do poder da presidente Dilma Rousseff pelo seu vice, Michel Temer. A bancada ruralista fiou o processo de impeachment em aberto, e agora cobra a conta de Temer que sinaliza para atender as demandas do latifúndio. Entre elas está a mudança no procedimento de demarcação tal como desejam os ruralistas. Os indígenas foram diretos: caso seus direitos não sejam garantidos, eles irão declarar guerra até que sejam respeitados.

    A mobilização foi organizada pela União dos Povos Indígenas do Médio Rio Solimões e Afluentes, que representa mais de 14 mil indígenas de 17 povos distintos e distribuídos em nove municípios da região. Lideranças indígenas mais concentradas em Tefé, Alvarães e Uarini, dos povos Kambeba, Kokama, Tikuna, Kaixana e Madjá também contribuíram para a realização do ato ao lado de organizações indigenistas, caso do Conselho indigenista Missionário (Cimi).

    Semanas antes, as lideranças indígenas, caciques e pajés se reuniram em Tefé para um encontro sobre os problemas locais enfrentados pelas aldeias. Muito do discutido nessa reunião serviu de base para o ato público. Leia o Documento Final do encontro na íntegra:

    DOCUMENTO FINAL

    Nós, lideranças indígenas dos povos Kokama, Kambeba, Miranha e Tikuna, localizadas nas aldeias Porto Praia de Baixo, Nossa Senhora de Fátima do Lago do Catuá, Boará de Cima, Boarazinho, Barreira do Meio, Barreira de Cima e Nova Esperança do Arauiri, das terras indígenas Boará/Boarazinho, Porto Praia de Baixo, Nossa Senhora de Fátima do Lago do Catuá e Barreira da Missão, reunidos nos dias 24 e 25 de junho de 2016, na aldeia Porto Praia de Baixo, Terra Indígena Porta Praia de Baixo, Tefé, Amazonas, com o objetivo de discutir os principais temas relacionados as questões indígenas e políticas públicas de maior relevância para os povos indígenas do município de Tefé.

    Em vista do cenário de retrocesso e de ataques sistemáticos aos direitos dos povos indígenas naquilo que diz respeito as políticas públicas e principalmente aos direitos originários, os povos fazem resistência e buscam se articular e fortalecer em sua luta, proporcionando momentos de debates, encontros e assembleias.

    Tendo em vista a morosidade do Governo lidar e efetivar as políticas públicas, principalmente a demarcação das terras indígenas, colocando as comunidade  sujeitas a todo e qualquer tipo de violência, como perseguição, ameaças, invasão e conflitos com  madeireiros, coletores, pescadores e caçadores.

    Contudo, a partir das discussões e socializações, apresentamos nossas demandas e reivindicações as instituições/órgãos responsáveis.

    TERRA INDÍGENA

        1.    Informação e capacitação sobre legislação para as lideranças;

        2.    Realizar capacitações para os indígenas sobre fiscalização;

        3.    Presença mais constante e efetiva da Funai na Terra Indígena/aldeias;

        4.    Colocar placas identificando as Terras Indígenas, principalmente naquelas de maior conflito.

        5.    Gestão compartilhada da área da RESEX Catuá – Ipixuna, com a aldeia Nossa Senhora de Fátima do lago do Catuá, mediando o conflito entre moradores das comunidades da RESEX, com os indígenas;

        6.    Mediação dos conflitos internos em algumas aldeias em processo de reconhecimento étnico e territorial;

        7.    Que a CTL Funai de Tefé, articule junto a CR Funai de Tabatinga a constituição do GT para dar continuidade ao processo de estudo daquelas terras indígenas que iniciaram o processo de demarcação, como também aquelas que solicitaram o pedido de reconhecimento étnico e territorial;

        8.    Queremos que, de forma imediata, os procedimentos de demarcação das nossas terras sejam iniciados e/ou retomados. Naqueles ainda sem providência, sejam nomeados Grupos Técnicos (GTs) para Identificação e delimitação. No caso dos procedimentos já instaurados, sejam retomados, respeitando os prazos definidos pelo Decreto 1.775/96, levando-se em conta os critérios que priorizam a ordem dos procedimentos de demarcação em relação ao contexto vivido pelas comunidades indígenas.

        9.    Exigimos medidas urgentes em relação à fiscalização de nossos territórios, para a desintrusão dos invasores e a consequente responsabilização destes por eventuais danos socioambientais.

        10.    Denunciamos a invasão de nossas terras por caçadores, coletores (açaizeiros e castanheiros), barcos pesqueiros e madeireiros, que argumentam que a área invadida não é terra indígena por não possui placas identificando a mesma.

    EDUCAÇÃO

        1.    Exigimos a conclusão da construção da escola indígena da aldeia  Porto Praia de Baixo;

        2.    Que a Coordenação de Educação Escolar Indígena de Tefé em parceria com os professores indígenas, elaborem um projeto para a FORMAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS BILÍNGUE;

        3.    Elaboração do calendário especifico e diferenciado das escolas indígenas do município de Tefé;

        4.    Contratação de professores indígenas para atender as demandas nas salas de aulas das escolas indígenas de Tefé;

        5.    Dá continuidade na Construção do Projeto Politico Pedagógico (PPP) das escolas indígenas de Tefé;

        6.    Construção de escolas naquelas aldeias onde ainda não possuem, levando em consideração a demanda do povo;

    SAÚDE

        •    Que as reuniões do Conselho Local de Saúde Indígena – Polo Base da Barreira da Missão seja respeitada;

        •    Que as politicas partidária não interfira nos trabalhos do Conselho Local de Saúde Indígena;

        •    Que o regimento interno do CLSI Polo Base Barreira da Missão seja reorganizado/reestruturado com o apoio do CONDISI e das lideranças indígenas;

        •    Que a equipe Itinerante cumpra corretamente o calendário de viagem e atenda a demanda daquelas aldeias ao qual é de sua responsabilidade;

        •    Que a equipe Itinerante esteja com sua equipe multidisciplinar completa (médico e dentista), para atender as demandas das aldeias quando em suas viagens;

        •    Que sejam realizadas formação e/ou capacitação para os Agentes Indígenas de Saúde – AIS;

        •    Que o tema sobre droga e alcoolismo continue sendo trabalhado  pela equipe de saúde, em parceria com as lideranças indígenas das aldeias;

        •    Que as lideranças indígenas participem das reuniões do CLSI Polo Base Barreira da Missão;

        •    Que as lideranças indígenas motivem e apoiem seus conselheiros locais de saúde indígena;

        •    Que o CONDISI – MRSA apoie as reuniões e atenda as demandas encaminhadas pelo CLSI e pelas lideranças das aldeias do município de Tefé;

        •    Parceria do CLSI Polo Base Barreira da Missão com a equipe da Coordenação de Educação Escola Indígena de Tefé nas viagens de articulações; 

    Nesse sentido, manifestamos que nossos direitos devem ser respeitados e que buscaremos forças e nos manteremos apostos para reivindicar a efetivação desses  direitos legais, garantidos na Constituição Federal de 1988. Por fim, pedimos que nossas demandas sejam atendidas.

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  • 24/07/2016

    Guarani-Kaiowá: o grito de socorro na Romaria dos Mártires

    Os quase cinco mil romeiros, participantes das celebrações da vida e da esperança – Profetas do Reino ouviram estarrecidos e indignados a denúncia da bárbara situação de violência contra os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Representantes desse povo, participantes da Romaria, narraram o rosário de violências que estão passando na incansável luta por seus direitos, por suas terras tradicionais (tekoha).

    Em tom dramático, mostraram as marcas da violência. Pedro mostrou onde penetrou a bala que se encontra alojada perto de seu coração. Leila, de Yvy Katu, na fronteira com o Paraguai, expressou a dramaticidade da luta que enfrentam na reconquista de seus territórios. Clamou por socorro, por solidariedade.

    Na roda de conversa sobre a defesa do cerrado, contra o uso dos agrotóxicos e transgênicos na produção de alimentos, foi aprovada uma nota de repúdio e moção de solidariedade ao povo Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul (veja íntegra da nota/moção). Foi feito um minuto de silêncio em homenagem aos que tombaram, aos que se tornaram sementes do futuro.

    A doce rebeldia e a sagrada teimosia

    Momento de memória, amor e compromisso. A noite foi chegando na dança dos estandartes dos mártires presentes, ao clarão da lua e o tom suave do “luar do sertão”. Melodia conectando os corações no fogo da memória perigosa dos mártires da caminhada. Chega Pedro, chega Maria, chega a multidão de lutadores e guerreiros na suave brisa da utopia.

    Com os corações incendiados pelos desmandos, corrupção e opressão, foram inevitáveis os gritos incontidos de “Fora Temer”. Em sintonia profunda com os profetas e profetizas, a multidão marchou ao som de hinos de libertação e esperança, transformação, luta, fé e união.

    Muito canto, muita esperança na esquina de cada abraço, de emocionados reencontros, de históricos e novos lutadores. Nas pegadas de João Bosco e Pedro, os passos da vida e dos profetas, a esperança dá o compasso da semente lançada ao chão, do “Fica Pedro” no coração grande e se expande ao infinito do novo dia de luta.

    6ª Romaria dos Mártires da Caminhada, Prelazia de São Felix do Araguaia, Ribeirão Cascalheira, Mato Grosso, 19 de julho de 2016.

    Íntegra da nota de moção

    NOTA DE REPÚDIO E MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE

    Os participantes da 6ª Romaria dos Mártires, vindos de todas as regiões do Brasil e de três continentes, a Ribeirão Cascalheira, MT, queremos denunciar o genocídio contra os índios Guarani-Kaiowá no estado do Mato Grosso do Sul, proporcionado pelos jagunços do agronegócio, acobertados pelas autoridades estaduais e federais.

    O mais grave é que isso acontece na total impunidade estimulando uma verdadeira guerra contra esse povo.

    Exigimos a punição dos responsáveis por esse extermínio e a demarcação imediata de suas terras.

    Ribeirão Cascalheira, 17 de julho de 2016.

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  • 24/07/2016

    Organizações indígenas entram com ação na PGR contra novas declarações racistas do deputado Luiz Carlos Heinze

    Organizações indígenas do Nordeste ofereceram duas representações criminais contra o deputado federal Luiz Carlos Heinze (PP/RS) ao procurador-Geral da República, Rodrigo Janot. Em maio, o parlamentar saudou a Associação de Pequenos Agricultores de Ilhéus, Una e Buerarema (Aspaiub), da Bahia, em discurso gravado no Salão Verde do Congresso Nacional, contendo declarações discriminatórias e contrárias às determinações constitucionais – caso das demarcações de terras indígenas: Heinze, na foto, afirma no pronunciamento trabalhar para “desmontar a farsa da questão indígena” realizando “gestões" junto ao Ministério da Justiça incluindo mudanças na direção da Fundação Nacional do Índio (Funai).   

    Nas representações assinadas por caciques, Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e a Federação das Nações Indígenas Pataxó e Tupinambá do extremo Sul da Bahia (Finpat), protocoladas na última semana, as lideranças indígenas afirmam que o discurso de Heinze quebra o decoro parlamentar e acirra os ânimos numa região onde o conflito por terras passa por tensão permanente – caso da Terra Indígena Tupinambá de Olivença e das terras Pataxó ainda com processos de demarcação inconclusos pelo governo federal, apontada como causa maior da violência contra os indígenas.

    Na saudação ao encontro da Aspaiub, Heinze afirma que “estamos trabalhando para desmanchar muitos destes decretos e portarias”. O parlamentar se refere às publicações do governo Dilma Rousseff envolvendo demarcações de terras indígenas e desapropriações de terras para a reforma agrária neste ano. As organizações indígenas argumentam nas representações ao PGR que Heinze "deixa claro que orienta a sua atuação como representante do Poder Legislativo não para proteger os direitos indígenas – como determinam a Carta Magna e tratados e acordos internacionais que o país é signatário (…)”.

    O parlamentar deixa a entender no pronunciamento que o ministro da Justiça Alexandre Moraes coaduna com as ideias expostas por ele aos ruralistas baianos. “A CPI da Funai/Incra está desmascarando esta gente. A PEC 215 vai continuar e com o novo Ministro da Justiça vamos dar uma nova direção para todos estes casos (SIC)”, diz Heinze. Conforme demonstram as organizações indígenas na representação, “a veiculação de tal discurso teve como resultado um sensível aumento dos episódios de discriminação e racismo contra os indígenas, inclusive com a ocorreria de ameaças às lideranças”.

    Heinze é enfático ao pontuar no vídeo que a questão indígena “está atrapalhando o país”. Para as organizações indígenas, tal declaração “contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana ou dignidade étnica e da construção de uma sociedade pacífica, plural e livre de preconceito”. Na representação, os indígenas explicam que o discurso do parlamentar incide num contexto “marcado por reiteradas violações aos direitos indígenas, pela criminalização de lideranças e pela prática de ações violentas contra a comunidade indígena". 

    Este não é o primeiro episódio envolvendo declarações racistas, preconceituosas, contra a ordem constitucional e de incitação ao ódio e à violência contra os povos indígenas feitas por Heinze. Em 29 de novembro de 2013, o ruralista e o também deputado federal Alceu Moreira (PMDB/RS), hoje presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga demarcações de terras realizadas pela Funai e pelo Incra, proferiram discursos durante audiência pública no município de Vicente Dutra (RS) com toda sorte de ataques e insultos contra indígenas, quilombolas, negros e homossexuais.  

    Meses depois, em dezembro de 2013, durante abertura do chamado ‘Leilão da Resistência’, no Mato Grosso do Sul, organizado por sindicatos rurais com o intuito de levantar recursos para financiar a segurança privada contra os indígenas, Heinze discursou no mesmo tom atacando a Funai, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e se mostrando contra a determinação constitucional para os povos indígenas do direito à terra. O Leilão foi suspenso pela Justiça Federal de Campo Grande, e liberado na sequência pela mesma comarca, mas com os recursos do leilão dos animais doados depositados na Justiça.  



    Bingo! 
             

    Inspirados pelo ‘Leilão da Resistência’, os dirigentes da Aspaiub, associação para qual o discurso de Heinze foi dirigido, realizaram em 25 de maio de 2014 um bingo na cidade de Buerarema (BA) cujo objetivo era angariar fundos para mobilizações contra a demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Tal como no leilão, o bingo teve como premiação bovinos. Políticos da região participaram ativamente da realização da ação de arrecadação. Menos de um ano antes, em 14 de agosto de 2013, um transporte escolar Tupinambá foi atacado a tiros no município. Na ocasião, uma dezena de jovens indígenas voltavam para a aldeia depois das aulas.

    Dois dias depois, com uma forte campanha anti-indígena afirmando que os Tupinambá “desceriam” para tomar a cidade, uma centena de moradores de Buerarema bloquearam a BR-101 e incendiaram dois veículos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), além de casas de indígenas que vivem no município fora da terra indígena. Ao fato somou-se uma série de boatos espalhados por programas de rádio de que os Tupinambá saqueavam e matavam produtores rurais. A criminalização recaiu, sobretudo, às lideranças indígenas com prisões arbitrárias e revertidas pela própria Justiça Federal.

    Em 7 de abril deste ano, Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau Tupinambá, e o irmão, José Aelson Jesus da Silva, o Teity Tupinambá, foram presos pela Polícia Militar no município de Olivença. Cacique Babau e Teity se dirigiram à aldeia Gravatá para averiguar uma reintegração de posse executada com violência pela PM no dia anterior. O comando da polícia, presente na aldeia para escoltar a saída de caminhões de areia de mineradoras, declarou que ligou ao juiz Lincoln Pinheiro da Costa, autor da decisão do despejo e da escolta, informando sobre a presença de Babau e Teity. Pediram ao juiz uma ordem de prisão. Pelo telefone, Lincoln informou aos policiais que eles podiam prender os indígenas por desrespeitar decisão da Justiça.

    Nada se comprovou. Ainda assim, a prisão dos indígenas, soltos em liberdade vigiada dias depois, foi comemorada pela Aspaiub. Ao lado do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro/Bahia – Nação Mestiça, a associação assinou uma nota pública em apoio às autoridades públicas pelas prisões. No documento, o povo Tupinambá é chamado de milícia “estruturada para aterrorizar e saquear pequenas propriedades familiares”. Mais uma vez, Cimi e Funai foram atacados e responsabilizados por sustentar o que a nota chama de “farsa indigenista” – palavras usadas por Heinze em seus discursos de ódio denunciados nas representações à PGR.

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  • 19/07/2016

    Povos indígenas: vidas às margens das rodovias no RS e das decisões judiciais e políticas

    “Dor, sofrimento e injustiça”. Com essas palavras Silvino Werá da Silva, cacique da Terra Indígena Irapuá, localizada entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul, Rio Grande do Sul, definiu para a equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que o acompanhou em audiência no Ministério Público Federal (MPF), os sentimentos de sua comunidade. E completou: “Vivo na beira da estrada a minha vida toda. Crio meus filhos de baixo de lona à espera da demarcação da nossa terra, que fica do outro lado da estrada (BR 290, no Km 299). Eu até quis desistir, mas não consigo. Vivemos por causa da terra. Ela é tudo o que temos e somos, mas nela não nos deixam pisar. Ela é nosso sonho, é nosso ritual, é nosso alimento, é nossa vida”.

    Como não se emocionar ao ouvir essas palavras? Não há como não se comover ao ver seus filhos, netos, esposa e sua comunidade na margem de uma estrada federal onde não há habitação, água potável, matas, animais, alimentos. Crianças nascem e, quando sobrevivem, crescem sob lonas geladas no inverno e escaldantes no verão.

    Esse é o contexto desumano a que estão submetidas essas pessoas, cujas vidas estão à margem de tudo. E eu, mais uma vez, me emocionei. Já experimentei grande emoção diante da alegria resistente dos Guarani e Kaingang. Mas, desta vez, o sentimento foi de angústia e indignação profundas. Não é justo que pessoas sejam submetidas à condição de exilados, que sejam impedidos de desfrutar do direito ancestral sobre suas terras porque estas foram apropriadas indevidamente pelo Estado e entregues a um punhado de fazendeiros que nelas plantam pasto para engordar bois no Rio Grande do Sul, ou soja para também engordar bois na China e na Europa.

    Sob as lonas pretas os indígenas vivem. Acreditam numa "terra sem mal". Acreditam que a terra é para ser cuidada e, por isso, Nhanderu – Deus – a presenteou aos povos. Não a entregou para causar sofrimento, dor e nem morte. Essa dádiva não deve ser destinada exclusivamente a alguns privilegiados, e sim deve gerar vida em abundância para todos. Sob o ponto de vista dos guarani, os juruá – brancos – precisam aprender a conviver com a terra e respeitá-la. Mas, quando o lucro e o poder são colocados como metas, a vida passa a valer quase nada e se perde o sentido ético da existência humana.

    Os Guarani Mbya valorizam a paz, não suportam o conflito. Suas formas de resistência envolvem a presença discreta e o diálogo, e não o enfrentamento direto. Em função disso, são muitas vezes ignorados, vítimas da omissão do poder público ou de sua ação direta – em Irapuá, por exemplo, os Guarani foram removidos pelo estado do Rio Grande do Sul e colocados distantes de suas terras tradicionais. Retornaram, resistem, reivindicam a demarcação, permanecendo à margem da rodovia, num pequenino fragmento de terra que compõe aquela em que se pode ser gente, em que se pode viver o Tekó, o jeito de ser Guarani.

    Com seus corpos e vidas postos à margem, eles confirmam que não é qualquer terra que pode ser boa para viver, mas aquelas reconhecidas em suas cosmo-ontologias. É lá que estão as condições – materiais e espirituais – para viver plenamente. Os Guarani e os Kaingang não gostam de viver em acampamentos, não é parte de suas práticas tradicionais, não se acostumam com a vida em condições precárias, eles persistem, resistem, acreditam que suas terras serão demarcadas porque é só nelas que se pode existir.

    Contudo, o governo federal determinou a paralisação de todas as demarcações das áreas indígenas há pelo menos três anos. Assim, as comunidades indígenas são condenadas a uma existência de precariedades. No Rio Grande do Sul, além de Irapuá, existem outros 21 acampamentos à beira de rodovias, e são dezenas em condições semelhantes em todo o país.

    As razões para que as comunidades indígenas sejam mantidas, por décadas, nesta absurda situação ligam-se ao sistema de governo que temos. Nele, estimula-se a propriedade, a concentração de terras, a produção em larga escala. A partir dessa lógica, os governantes, mesmo tendo a responsabilidade constitucional de demarcar as terras e assegurar aos povos indígenas o seu usufruto, não o fazem. Suas ações (e omissões) demonstram estarem atrelados política e economicamente aos proprietários que, em sua maioria, adquiriram os bens de modo ilegal ou ilegítimo. Ilegal porque muitos grilaram terras ou se apossaram violentamente delas, e ilegítima porque, quando os títulos foram concedidos pelo Estado, os governantes sabiam que as terras eram habitadas por indígenas ou quilombolas.

    É neste contexto que se deve ler e analisar as ações e omissões do Poder Executivo, que é negligente em sua responsabilidade de executar políticas públicas, assegurar vida digna a todas as pessoas e possibilitar o acesso à educação, saúde, saneamento básico, moradia.

    Também, é neste contexto que se deve analisar decisões judiciais contra demarcações de terras. No âmbito da Justiça Federal, especialmente nas regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil, foram proferidas decisões que contrariam dispositivos constitucionais garantidores dos direitos dos povos indígenas. Lamentavelmente, os inimigos dos povos indígenas tentam emplacar artimanhas ou subterfúgios jurídicos em tribunais superiores para legitimar o que é ilegítimo ou ilegal.

    Como não têm conseguido descaracterizar o direito constitucional dos povos indígenas às suas terras, tentam sustentar teses anti-indígenas no Poder Judiciário. É o caso do chamado “marco temporal da Constituição Federal de 05 de outubro 1988”. Trata-se de uma anomalia jurídica, a partir da qual se afirma que, se os “índios” não estavam na posse da terra no ano de 1988, perderiam, por isso, o direito de reivindicar a demarcação. Argumentam também que os “índios” somente teriam direito a uma terra se estivessem, até a referida data da promulgação da Constituição, em renitente esbulho, ou seja, disputando-a de modo conflitivo – em guerra com os brancos – ou pleiteando a área requerida na Justiça. Portanto, alega-se que os indígenas – que antes da Constituição Federal de 1988 eram tutelados pelo Estado – deveriam ter ingressado em juízo contra os invasores de suas terras, o que lhes era vedado.

    Desconsidera-se, com a tese do marco temporal, a própria ação do estado brasileiro que promoveu a expulsão ou remoção dos povos indígenas de suas terras e as destinou a propriedade privada através de titulações indevidas. Ignora-se também que o reconhecimento do direito à terra aos indígenas já estava assegurado desde à época do império e consolidado nas Constituições de 1934 e as subsequentes.

    Ao que tudo indica, falta a quem defende a tese do marco temporal, um estudo mais aprofundado da história de massacres e de expulsões a que foram submetidos os povos indígenas. Recomenda-se, neste caso, o estudo do “Relatório Figueiredo”, por exemplo.

    Cabe aos poderes públicos cumprirem o que determina a Constituição da República, especialmente em seu Artigo 231, no qual se afirma que: os índios têm o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, ou seja, este direito é anterior a própria Lei Maior; as terras indígenas são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas são imprescritíveis; compete à União demarca-las e fazer respeitar todos os seus bens. E, além disso, a lei esclarece que a propriedade das terras não é dos povos indígenas, mas da União, cabendo a eles apenas o seu usufruto exclusivo.

    A realidade de desrespeito e de violências contra os povos indígenas no Brasil evidencia a intenção de beneficiar ruralistas, empresários do agronegócio, da mineração ou empresas de energia elétrica. São estes setores, em síntese, que sustentam um Estado governado por políticos autoritários, racistas e corruptos. Eles ignoram as pessoas que vivem à margem, sob as lonas, pois estas não movem a engrenagem que mantém e fortalece as estruturas do poder econômico.

    Parece haver uma estreita sintonia entre alguns governantes, alguns membros do legislativo e alguns juízes, quando se consuma a injustiça e se despejam famílias indígenas, que são condenadas a permanecer à margem de rodovias. Neste sistema de poder, a trágica situação vivida pelos povos indígenas não comove e não impacta. E, assim, nem a lei, nem o direito, nem a justiça, nem a dignidade humana prevalecem.

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  • 19/07/2016

    Viva o Brasil profundo!

    O país das raízes, da pluralidade, das diferentes matizes, culturas, organização social, da economia coletiva e solidária, do uso coletivo do território,  da convivência harmônica com a natureza e todas as formas de vida, da não acumulação, da sobriedade e simplicidade.

    Tempos de crise são momentos de avançar, dar força aos sonhos e às utopias; aos processos de transformação nas lutas e resistências de cada dia.

    No Centro de Formação Vicente Cañas, estiveram reunidos 60 professores indígenas e aliados de todo o país, para avaliar a caminhada de articulação dos movimentos de articulação dos professores indígenas, preparar o  2º Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena. Foi também um momento de manter diálogo com representantes de  instituições do poder Executivo e Legislativo, além de participar de mobilização de lideranças dos povos Pataxó, Tupinambá e Guarani Kaiowá, denunciando as violências e intentos de retirar direitos constitucionais dos povos  indígenas.

    Participaram de atos públicos e caminhadas de entrega de documentos nas Embaixadas, chamando atenção das embaixadas sobre as origens de muitos produtos do agronegócio produzidos em terras indígenas.

    Conforme Gerson Baniwa, um dos coordenadores do Fórum de Educação Escolar Indígena “É momento de somar e unir as forças do movimento indígena, ainda bastante fragmentado, e   dar visibilidade às raízes profundas e plurais do nosso país, através de um processo intensivo de interação e valorização da diversidade cultural,  espiritual, ritual e de luta articulada pelos territórios e direitos dos povos indígenas,  sofrendo pressões e  ameaças de retrocessos.”

    Ao Ministro da Educação expuseram suas preocupações e exigiram” respeito aos direitos dos povos indígenas na gestão dos Territórios Etnoeducacionais”e a realização da 2ª Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena a ser realizada no próximo ano.. Houve a promessa de que não haverá descontinuidade nos programas e atividades em andamento, bem como  não haverá a extinção conforme havia rumores, de  instituições que representaram um avanço, como a  Cecadi.

    Mobilização e visibilidade

    O 2º Forum Nacional de Educação Escolar Indígena se propõem a ser um amplo espaço com mais de 500 indígenas de todo o país, propiciando intensa relação da população com o diversidade de culturas e povos . O Encontro será na UNB, em Brasília, nos dias 24 e 28 de outubro do corrente ano. Será uma oportunidade de mobilizar a opinião pública mediante apresentações e mostras culturais de jovens e crianças indígenas , oferecendo às crianças e jovens  estudantes da educação básica e universitários, a oportunidade de interagir com a diversidade cultural indígena brasileira. O processo se dará através da realização de diversas oficinas (pintura corporal, fotografia, literatura indígena, rituais, cerimoniais em diversos espaços . Também estão propostos quatro seminários temáticos, com o intuito de aprofundar determinados temas relacionados aos direitos indígenas, valorização da diversidade cultural, educação diferenciada e de qualidade.

    Curso de  histórias e culturas  indígenas

    Teve início um sonho alimentado há três décadas pelo Cimi: propiciar a compreensão da pluralidade dos povos indígenas no país, suas lutas de resistência e afirmação de seus projetos de Bem Viver.  Mais de 50 participantes de todo o país, de várias áreas do conhecimento e atuação, particularmente  de movimentos e pastorais sociais, professores de educação básica, pedagogos. O curso com a duração de 20 dias tem como finalidade formar multiplicadores na qualificação para a abordagem das temáticas  das culturas e das histórias dos povos.

    O curso é realizado pelo Cimi, em parceria com a UNILA-Universidade Latino Americana, que tem sede em Foz do Iguaçu, e foi criada em 2011 pelo presidente Lula, em resposta  aos questionamentos de que o Brasil está virado de costas para a América Latina. Conforme  o professor Clovis Briguenti, que conduziu o processe de aprovação do curso pela UNILA, essa é uma experiência muito importante de integração latino americana, mas que está seriamente ameaçada com recentes atitudes do governo brasileiro, especialmente no campo financeiro (corte de recursos).

    Na apresentação dos participantes se ficou evidenciado uma grande expectativa e até ansiedade em ter um momento  privilegiado de troca de experiências e saberes, na perspectiva de contribuir com a luta dos povos indígenas pelos seus direitos, e num processo de transformação de nossa sociedade.
    Diante da constatação de que nós ainda somos uma sociedade altamente preconceituosa  e racista para com os povos originários do nosso país, este curso será mais uma ferramenta para sensibilizar a sociedade com relação às realidades, lutas e direitos indígenas, dando visibilidade a essa realidade.

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