CNPI: Uma alternativa ao indigenismo colonialista?
Renato Santana, jornalista do Cimi
A criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910, delimitou o início de uma ação indigenista laica por parte do Estado brasileiro durante a recente história republicana do Brasil. Sob uma orientação ideológica positivista, o órgão recebeu a incumbência de incorporar os índios ao processo civilizatório do país, assegurando a eles a “proteção” por parte do Estado. Em 1918, o SPILTN foi desmembrado. As atividades referentes à proteção dos indígenas ficaram sob a responsabilidade do Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
No ano de 1967, em face dos vários escândalos envolvendo funcionários do SPI, desde corrupção até crime de genocídio, o órgão foi extinto e substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Durante longo tempo, a legislação indigenista brasileira baseava-se em uma concepção evolucionista segundo a qual os indígenas encontravam-se numa fase inicial da evolução da humanidade. Por essa razão, não eram considerados possuidores de capacidade plena. Orientado por essa concepção, o indigenismo oficial foi fortemente marcado pelo protecionismo e o assistencialismo, seguidos de perto pelo produtivismo (Souza Lima, 2005), todos praticados com base na tutela exercida pelo Estado, sustentada por um forte esquema repressivo.
Apesar disso, contando com o apoio de entidades indigenistas, sobretudo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os povos indígenas iniciaram a partir dos anos 1970 um amplo processo de articulação e mobilização, tendo como principal elemento aglutinador a luta pela demarcação de seus territórios tradicionais. Graças a essa capacidade organizativa puderam participar ativamente e de maneira decisiva na Assembleia Nacional Constituinte (ANC), ocorrida entre os anos 1987-1988, o que lhes assegurou a conquista de um capítulo específico sobre os direitos indígenas na Constituição, o que representou um duro golpe no “indigenismo de tutela”, uma vez que a Carta Magna reconheceu a autonomia dos povos indígenas.
Como consequência do avanço das lutas indígenas, em 2006 foi criada a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), através de decreto da Presidência da República. Cinco séculos depois do início da colonização brasileira e quase um século depois do SPI, o Estado brasileiro, pressionado pelo movimento indígena, inaugurava um espaço institucional onde os povos originários, finalmente, poderiam participar e influenciar as discussões e definições de políticas governamentais.
Embora a reivindicação primeira do movimento indígena fosse a criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista, com poder deliberativo – o que ocorreria apenas em dezembro de 2016 –, pouco antes do afastamento e impeachment da presidenta Dilma Rousseff, os povos indígenas e seus aliados compreenderam que naquele momento anterior a então criada Comissão, embora tivesse um caráter apenas consultivo, representava uma importante conquista no marco dos “cem anos de indigenismo oficial”, devendo a partir dali avançar para a conquista do conselho. Esse posicionamento significou uma tentativa de superar a marca tutelar que sempre pautou a relação do Estado com os povos indígenas.
A partir daquele momento, a Comissão Nacional de Política Indigenista passaria a se constituir em mais um campo de batalha dos povos indígenas do país. E a batalha não demorou a começar. Já em sua primeira reunião, ocorrida em julho de 2007, o governo surpreendeu a representação não governamental ao submeter para a apreciação da comissão um Anteprojeto de Lei (APL) propondo a regulamentação da mineração em terras indígenas. Para justificar a iniciativa, o governo alegou que o APL seria uma alternativa ao PL 1610/96, reconhecidamente danoso aos povos indígenas, de autoria do Senador Romero Jucá (PMDB/RR). Os indígenas reagiram condicionando a discussão do Anteprojeto à retomada da discussão sobre o PL 2057/92, Projeto de Lei que trata da criação de um novo Estatuto para os povos indígenas, cuja tramitação encontrava-se paralisada desde 1994.
A proposta foi aceita pelo governo, representando uma dupla vitória para o movimento indígena: ao mesmo tempo em que se retardou a tramitação do PL 1610/96, possibilitou-se um novo debate sobre o Estatuto dos Povos Indígenas. Por entender que o texto do PL 2057/92 já estava desatualizado, os indígenas membros da CNPI asseguraram que se promovesse uma ampla consulta aos povos indígenas, através da realização de oficinas nas várias regiões do país. Entre 2008 e 2009 ocorreu o processo de consultas. A opção metodológica foi bastante exitosa, o que possibilitou a revisão completa do texto original, com muitas emendas e supressões, tendo como resultado final uma proposta alternativa ao PL 2057/92, que fora submetida à aprovação pela plenária do Acampamento Terra Livre (ATL), em 2009, Brasília (DF).
Esse acontecimento parecia indicar que o governo estava realmente interessado em investir na mudança da relação estabelecida entre o Estado e os indígenas durante os mais de 500 anos de colonização. Muitos acreditavam que a experiência de consulta realizada sobre o estatuto poderia servir como ponto de partida para a regulamentação do instrumento de Consulta Prévia, Livre e Informada previsto pela Convenção 169 da Organização internacional do Trabalho (OIT). Para alimentar ainda mais a esperança, em 2008 a CNPI concluiria uma de suas principais tarefas estabelecidas pelo seu decreto de criação e enviava ao Congresso Nacional a proposição de um Projeto de Lei que criaria o Conselho Nacional de Política Indigenista, atualmente em tramitação na Câmara Federal (PL 3571/08). Durante sucessivas reuniões, a representação indígena conseguiu aprovar moções de apoio e resoluções referentes aos mais variados assuntos.
Mas a empolgação que a todos envolvia sofreu um duro golpe nos últimos dias do ano de 2009, exatamente na semana dos festejos entre o natal e ano novo. Numa atitude covarde e sorrateira, o governo editou o Decreto 7056: a Funai era reestruturada sem nenhuma consulta aos povos indígenas. O mais grave é que 15 dias antes a CNPI esteve reunida e na ocasião o seu presidente, Márcio Meira, também presidente da Funai, fora indagado sobre a reestruturação. Meira confirmou a intenção, mas informou que ainda não havia previsão de data, deixando transparecer que seria num período bem posterior.
Os membros indígenas da CNPI passaram a ser acusados, pelo setor conservador do movimento indígena, de serem sabedores da proposta e terem acordado com o governo a tal reestruturação. Feita por decreto, a reestruturação com as mudanças pensadas pelos brancos funcionários da Funai serviu apenas para evidenciar a continuidade da prática colonialista do órgão indigenista governamental.
Na elaboração do novo Regimento Interno da Funai, a maioria dos membros indígenas entendeu que poderia ser a oportunidade do governo corrigir o erro e submeter a elaboração do regimento aos povos interessados. Embora tivesse concordado, a Funai nunca convocou a comissão criada pela CNPI para propor uma minuta de regimento. Aquelas que deveriam ser as oficinas regionais para discutir a reestruturação e a criação de um novo regimento converteram-se em meras reuniões informativas onde os burocratas da Funai, de forma autoritária, comunicavam aos indígenas as mudanças ocorridas.
Às vésperas da 17ª reunião ordinária da CNPI, através da imprensa, a representação não governamental tomou conhecimento da publicação da Portaria Conjunta n° 951 de 19 de maio de 2011 que criava um grupo de estudo interministerial para elaborar ato que disciplinasse a participação dos entes federados nos procedimentos de identificação e delimitação das terras indígenas. Descumprindo o que determina a Convenção 169 da OIT, o governo constituiu um Grupo de Trabalho (GT) apenas com representantes governamentais, sem os indígenas.
Por supor que tal gesto provocaria grande reação por parte da “bancada indígena da CNPI”, o presidente da comissão, que subscreveu a referida portaria juntamente com o ministro da justiça e o advogado Geral da União, resolveu tirar férias exatamente no primeiro dia da reunião plenária, ficando a condução dos trabalhos sob responsabilidade da vice-presidência. Logo após a instalação da 17ª sessão plenária da CNPI, todos representantes indígenas inscreveram-se para assegurar o direito à fala, e, em posição unânime, fizeram duras críticas ao processo de esvaziamento da CNPI iniciado pelo governo, desde o final de 2009.
Por fim, os representantes indígenas comunicaram a decisão coletiva de retirada da plenária e a suspensão temporária da participação nas reuniões da CNPI. Esta reivindicação se justificou pelo fato da presidente Dilma Rousseff, por várias vezes, ter se recusado a receber representantes indígenas. Embora tenha permanecido insensível à reivindicação indígena, não abrindo sua agenda para uma reunião com os representantes do movimento, Dilma participou da abertura da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista, onde anunciou demarcações e homologações, além da criação do Conselho Nacional de Política Indigenista, que substituiria a Comissão. O fato é que no início daquele mês, no dia 2, na Câmara Federal havia sido aberto o processo de impeachment contra Dilma.
A bancada ruralista, representação política de grande força dos latifundiários brasileiros e a maior do Congresso Nacional, teve intensa e decisiva participação em todo o processo que golpeou o Palácio do Planalto. Por estes “aliados”, os governos Luiz Inácio Lula da Silva e, sobretudo, Dilma Rousseff reduziram ao máximo a quantidade de demarcações. Se tornou política do governo Dilma a criação de mesas de diálogo visando a redução de hectares nas demarcações. O golpe contra o governo, porém, veio dos beneficiados pela retirada dos direitos dos povos indígenas. Entre 28 e 29 de abril de 2016, o então ministro da Justiça, Eugênio Aragão, durante a 1ª Reunião Ordinária do recém criado Conselho, fez uma autocrítica à política demarcatória do governo Dilma Rousseff. “O momento de crise seja de reflexão. Poderíamos ter feito muito mais. Deixamos de fazer, nos omitimos e devemos pedir desculpas àqueles que foram afetados”, disse.
Seria a primeira e última reunião com Dilma ainda no Palácio do Planalto. Naquele mesmo abril, cerca de dez dias antes, a Câmara Federal tinha autorizado o Senado Federal a julgar Dilma Rousseff. A reunião seguinte do CNPI, entre 2 e 4 de agosto, ocorreu semanas antes de Michel Temer tomar a faixa presidencial para si e vesti-la numa cerimônia rápida e transmitida ao vivo para todo o país. Em setembro de 2016, durante a 3ª Reunião Ordinária do CNPI, última e que nunca acabou, as bancadas indígena e indigenista decidiram esvaziar o encontro em protesto contra medidas governamentais que visavam alterar por completo o procedimento demarcatório, sem consulta prévia, e promover uma nova reestruturação da Funai, que incluía transferir o Departamento de Proteção Territorial (demarcações) para o Ministério da Casa Civil. A Fundação acabou loteada entre partidos da base de sustentação de Temer, com destaque ao PSC e sua presença na bancada ruralista, e as demarcações sofreram o golpe, mesmo que não por um decreto do Poder Executivo: o Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU) que assinado pela Presidência da República instaurou o marco temporal como critério base para quaisquer etapas do procedimento demarcatório de terras indígenas.
Diante deste quadro, os povos indígenas passaram a denunciar o fato de que o governo Temer se nega a manter o diálogo com eles e não aceita sua presença efetiva nos rumos das políticas públicas, promovendo a paralisação do CNPI. O comportamento adotado pelos governos, nos vários episódios aqui relatados, revela que apesar da criação do CNPI, o Estado brasileiro ainda se rege por uma estrutura social colonial. O CNPI não se tornou ainda um espaço mínimo de ruptura com tal perspectiva, ao contrário, passou a reforçar tal característica estruturante. Espera-se do Conselho um mecanismo para que o Estado possa a iniciar um diálogo com outras perspectivas de participação dos povos indígenas na formulação de suas políticas. Participação na prática, com decisões tomadas pelas representações indígenas. Por certo que a autodeterminação dos povos deve ser o horizonte utópico nas aldeias, como afirmou cacique Babau Tupinambá durante uma reunião da então Comissão antes de se tornar Conselho. Inegável, porém, é o diálogo que tais nações precisam manter com o Estado, nos termos da alteridade e do pluralismo, além da efetivação dos direitos inegociáveis conferidos a elas pela Constituição Federal e tratados internacionais. É isso que se espera do CNPI, mesmo que tardiamente.
Texto revisado e atualizado, publicado originalmente na edição 336 do jornal Porantim, página 3, junho/julho de 2011