24/09/2024

Intercâmbio entre Tupinambá e povos do Mato Grosso fortalece luta comum em defesa de direitos e territórios

“Quando a gente faz esses intercâmbios, nos une e nos fortalece muito como povos. Eu vou para casa com um pouquinho deles e eles também ficam com um pouquinho de mim. Nós somos indígenas, povos diferentes culturalmente, mas somos unidos”, avalia Jéssica Tupinambá.

Cacique Babau Tupinambá e a jovem liderança Jéssica Tupinambá, do sul da Bahia, durante intercâmbio na Terra Indígena Enawenê-Nawê. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Tiago Miotto da Assessoria de Comunicação do Cimi – Matéria publicada originalmente na edição 468 do Jornal Porantim

Veja aqui a edição na íntegra

Entre os dias 20 e 31 de julho, o cacique Babau Tupinambá e a jovem liderança Jéssica Tupinambá, do sul da Bahia, percorreram aproximadamente cinco mil quilômetros no estado de Mato Grosso, visitando aldeias e comunidades indígenas em diversas regiões do estado. Foram acompanhados no trajeto e nas atividades pelo também baiano Jenário Alves de Souza, integrante do Regional Leste do Cimi, e pelos missionários e missionárias do Cimi Regional Mato Grosso que se somaram à comitiva nas diferentes etapas do trajeto.

A viagem foi parte de um intercâmbio realizado entre povos indígenas do Mato Grosso e o povo Tupinambá, estimulado pelo Cimi. A proposta, explica Natália Filardo, coordenadora do Cimi Regional Mato Grosso, é aprofundar laços e compartilhar experiências, especialmente em relação à luta pela terra, à soberania alimentar e à autonomia na gestão dos territórios.

Cacique Babau Tupinambá e a jovem liderança Jéssica Tupinambá, do sul da Bahia, durante intercâmbio na TI Urubu Branco, do povo Tapirapé/Apyãwa, no município de Porto Alegre do Norte. Foto: Jenário Alves de Souza/Regional Leste do Cimi

“O estímulo a esses intercâmbios é uma prática histórica do Cimi”, recorda Natália. “No Regional Mato Grosso, essa percepção da incrível biodiversidade entre os povos sempre foi muito presente. Os povos daqui sempre tiveram muitas sementes”.

Depois de algumas experiências de mutirão e de “aulas vivas” voltadas ao tema em diferentes territórios, conta ela, o cacique Babau Tupinambá participou de atividades em Mato Grosso e convidou indígenas do estado para uma visita à Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia.

A visita, concretizada em novembro de 2023, resultou em novo convite aos Tupinambá para visitarem territórios e comunidades em Mato Grosso – troca que se concretizou em julho de 2024.

“É sempre importante proporcionar troca de experiências entre os povos. Permeamos as discussões com as distintas realidades, dentre elas as ameaças às sementes indígenas. Com os territórios ameaçados, as sementes híbridas e transgênicas, principalmente de milho, vão entrando nos territórios, seja a partir das monoculturas, seja a partir dos programas de extensão rural que não estão preparados para uma assistência técnica específica para os indígenas. E aí começa uma série de problemas, inclusive de contaminação genética dentro das comunidades”, pontua Natália.

“A diversidade está ameaçada, está em vias de extinção. Então, a discussão sobre a preservação das sementes crioulas ou sementes indígenas é fundamental”, explica.

O tema da preservação da diversidade é urgente naquele que é um dos estados em que o agronegócio atua de forma mais ostensiva e acumula enorme poder econômico. Este contexto se reflete na influência política do setor sobre o governo e as administrações municipais e na transformação visível da paisagem, tanto pelas grandes obras de infraestrutura para o escoamento da produção quanto pelos latifúndios de monocultivos que se estendem, vistos das rodovias que cruzam o estado, até o horizonte.

“É a primeira vez que eu venho aqui no estado do Mato Grosso. Fiquei assustada, num primeiro momento, ao ver essa dimensão de terra explorada pelo agronegócio. O agronegócio é divulgado nas mídias de uma forma muito positiva”, relata Jéssica Tupinambá.

Existem restrições legais à devastação das matas e das florestas no estado, localizado na Amazônia Legal, onde propriedades devem manter áreas maiores preservadas em reservas legais, que podem chegar a 80% da área do imóvel. Por essa razão, inclusive, parlamentares ruralistas já apresentaram projetos de lei que propõem a exclusão do Mato Grosso desta região administrativa.

Para Jéssica, o desrespeito a estes princípios é visível. “Pelo que a gente consegue perceber, não é dessa maneira. Há uma exploração muito maior. Os indígenas daqui são cercados por essas grandes produções de monocultura”, resume.

Celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas em Diamantino, Mato Grosso. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Durante o intercâmbio, a dupla Tupinambá percorreu as regiões do médio Araguaia, de Diamantino, de Cuiabá e do alto Juruena. No Araguaia, visitaram a TI Marãiwatsedé, do povo Xavante, em São Félix do Araguaia (MT), e a TI Urubu Branco, do povo Tapirapé/Apyãwa, no município de Porto Alegre do Norte.

Também visitaram uma comunidade do povo Xerente do Araguaia no município de Porto Alegre do Norte, em luta por território, e participaram da assembleia em memória aos 50 anos da Primeira Assembleia de Chefes Indígenas, realizada em Diamantino – no mesmo local da reunião pioneira de lideranças, ocorrida em 1974.

Cacique Babau Tupinambá e a jovem liderança Jéssica Tupinambá, do sul da Bahia, durante intercâmbio com o povo Xerente do Araguaia, no município de Porto Alegre do Norte. Foto: Jenário Alves de Souza/Regional Leste do Cimi

“Esses intercâmbios nos unem e nos fortalecem muito como povos. Eu vou para casa com um pouquinho deles e eles também ficam com um pouquinho de mim. Nós somos indígenas, povos diferentes culturalmente, mas somos unidos. E é importante ter esse contato cultural, de participar, de conhecer a realidade de cada povo”, avalia Jéssica Tupinambá.

Por fim, na região do rio Juruena, entre os municípios de Brasnorte e Juína (MT), Tupinambá e missionários do Cimi visitaram o povo Enawenê-Nawê, concluindo a etapa mais distante da viagem. Uma distância não apenas geográfica, mas também histórica: enquanto os Tupinambá foram o primeiro povo com quem os portugueses estabeleceram contato, 524 anos atrás – e os primeiros, portanto, a receberem o impacto da colonização – os Enawenê-Nawê foram contatados apenas em 1972 – e permaneceram as duas décadas e meia seguintes em relativo isolamento.

Essa diferença foi ressaltada por Towaliatokwe Kolaliene, liderança Enawenê que recebeu os visitantes enquanto trabalhava na sua roça, em processo de preparação para o próximo ritual. Em novembro, Kolaliene participou da delegação indígena de Mato Grosso que visitou os Tupinambá na Serra do Padeiro – e ficou encantado com o cacau e com os métodos de produção dos Tupinambá.

“Eu também quero plantar cacau”, advertiu Kolaliene, acompanhado por seu filho, ao receber Babau e Jéssica Tupinambá em seu roçado, fazendo questão de recordar a visita – e também do sabor doce do mel de cacau que provou ao visitar a terra de seus hóspedes. “Ele nos ofereceu uma bebida feita com cacau”, disse, apontando para Babau. “Uma delícia”.

A liderança Enawenê também se recorda das primeiras impressões que teve ao visitar o território localizado no sul da Bahia. “Eu vi a terra Tupinambá e pensei: ‘foi aqui que os invasores chegaram pela primeira vez’. Fiquei admirado deles ainda terem essa mata. Eles foram muito guerreiros para assegurar essa terra. Foram como eu, tiveram que lutar muito. A terra dele é bonita, tem belos morros”, refletiu.

Cacique Damião, da Terra Indígena Marãiwatsédé (ao centro), cacique Babau Tupinambá e a jovem liderança Jéssica Tupinambá, do sul da Bahia. Foto: Jenário Alves de Souza/Regional Leste do Cimi

A conversa, entrecortada por risadas, ambientada pelo zumbido dos piuns que avançavam em nuvens sobre os visitantes e intermediada pela tradução de Fausto Campoli, integrante do Cimi que atua há décadas com os Enawenê-Nawê, derivou em trocas sobre métodos de plantio, diferenças na fauna e na flora entre os biomas – o território Enawenê-Nawê compreende partes da Amazônia e do Cerrado, enquanto a TI Tupinambá de Olivença abrange uma das poucas áreas ainda preservadas da Mata Atlântica –  e estratégias para a proteção do território e da cultura frente às pressões externas, tema que preocupa especialmente Kolaliene.

“Nós vigiamos nosso território, percorremos as divisas. Não quero madeireiros e garimpeiros em nosso território. Quero minha terra íntegra”, garantiu a liderança, lamentando a situação dos Yanomami, em Roraima e no Amazonas. “Se os garimpeiros entrarem, a reação tem que ser imediata”.

Um tema inevitável da conversa foram os intensos ataques que ocorriam naqueles dias contra comunidades indígenas em luta pela terra. “Como podem fazer isso?”, perguntou Kolaliene, indignado, ao ouvir os relatos dos ataques contra os Avá-Guarani no oeste do Paraná, os Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul, os Kaingang e os Mbya Guarani no Rio Grande do Sul.

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