24/09/2024

Cacique Babau Tupinambá: “quando criam uma lei que viola nossos direitos, eles não percebem, mas prejudicam a si mesmos”

A entrevista aconteceu no contexto do intercâmbio realizado entre os Tupinambá — representados pelo Cacique Babau e a jovem liderança Jéssica Tupinambá, do sul da Bahia — e os Enawenê-Nawê, no Mato Grosso, durante visita ao Território Enawenê

Cacique Babau Tupinambá, do sul da Bahia, com Towaliatokwe Kolaliene, liderança Enawenê. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Tiago Miotto da Assessoria de Comunicação do Cimi – Matéria publicada originalmente na edição 468 do Jornal Porantim

Veja aqui a edição na íntegra

Rosivaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como cacique Babau Tupinambá, é liderança indígena da aldeia Serra do Padeiro, uma das 22 comunidades da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, situada entre os municípios de Ilhéus, Una e Buerarema, no sul da Bahia.

Em uma conversa que explora tanto as preocupações territoriais quanto os laços culturais entre os povos indígenas, Babau reflete sobre sua recente experiência de intercâmbio com os Enawenê-Nawê.

A entrevista revela a importância dessas trocas para o fortalecimento das culturas indígenas e a preservação de seus territórios. Em comum, ambos os povos buscam autonomia e a preservação de seus modos de vida, enfrentando desafios impostos tanto pela modernidade quanto pela negligência governamental.

Porantim – Qual é a importância de intercâmbios como esse, em que os Enawenê-Nawê foram para lá e vocês agora vieram para cá?

Cacique Babau – A importância é que nós aproximamos as culturas. Apesar de sermos povos indígenas, nós somos muito diferentes culturalmente. Uma coisa ou outra se assemelha, mas a língua é totalmente distante uma da outra. Alguns modos, por exemplo: nós gostamos de comer carne. Já eles não, eles gostam de comer só peixe e alguns pássaros. Eles têm uma restrição alimentar muito diferente de nós, povos Tupi. Então, quando se aproxima, a gente acha engraçado, nós vamos nos entender, nos compreender entre nós. É um crescimento muito bom.

Porantim – Quais foram as tuas impressões e percepções sobre essa vinda para o território e para a aldeia Enawenê-Nawê? 

Cacique Babau – A percepção foi boa, por ver um povo forte, um povo jovem. A proteção florestal boa, desenvolvendo trabalhos agrícolas. Mas também vejo algumas preocupações sobre como manter isso.

O governo está falhando em algumas questões, deixando muito na mão deles, por exemplo, fazer os contratos com as usinas [do complexo hidrelétrico Juruena], a questão de turismo, a questão do Redd [programa de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal]. Eu acho que é uma imprudência muito grande. Nós, povos indígenas, não estamos tendo essa habilidade toda para lidar com algo tão novo, que nós não sabemos calcular e nem sabemos para que realmente serve. Acho bastante preocupante.

Eles também falaram que fizeram outro contrato para ter turismo dentro do povo. Se não for controlado, o dano pode ser irreversível. Esse recurso fácil pode afetar o povo como um todo. Muito recurso vai para a cidade, um dinheiro que não se sabe exatamente como está caindo. Não é do trabalho, não é dos roçados que eles estão fazendo. Então, é isso que eu falo, principalmente a turma jovem. Não os idosos, que esses daí sabem o que querem. O Towaliatokwe Kolaliene [liderança Enawenê] tem uma percepção muito forte de que isso não está sendo bom, que é uma enganação e que os jovens podem ser enganados. Então, a minha felicidade é essa, que os guerreiros idosos daqui, os velhos – ou melhor, os sábios – estão conscientes disso. Mas eles também estão percebendo que os jovens não estão tendo a mesma consciência, e estão preocupados.

Aqui está um povo muito agradável, uma aldeia linda, tudo muito bom. Mas a gente viu deficiência também na saúde. A Sesai não está fazendo, como deveria, seus serviços. A gente percebe falhas, porque, com a quantidade de criança, uma aldeia grande, era para estar o médico todo dia acompanhando, fazendo controles.

E essa parte é muito importante: as mulheres estão carregando recipientes que chegam a 60 litros d’água nas costas e os vasos são de Roundup [marca de agrotóxico] ou de glifosato. Como é que pode? E a Sesai dentro da aldeia não impede isso, não compra vasos adequados ou instala na frente de cada maloca uma torneira d’água com um chuveiro? Eu acho que isso é irresponsabilidade.

Também está havendo a construção de uma escola, porque não tem. Então é isso, tem pontos positivos e negativos.

Porantim – Na conversa com Kolaliene, liderança Enawenê, houve pelo menos duas coisas em que vocês se reconheceram: uma é a da alimentação, da produção própria, e a outra é a territorial. Nessa questão, que semelhanças e diferenças você identifica com a situação e a luta Tupinambá?

Cacique Babau – É como que eu conversei com o Kolaliene: a gente é um povo Tupi e eles são um povo [do tronco linguístico] Arawak, mas algumas coisas se cruzam, principalmente nessa questão espiritual. Os rituais, apesar de serem totalmente diferentes, em alguns significados se assemelham muito. A questão da crença nos espíritos da floresta, das questões espirituais, isso é muito importante. A feitura dos roçados é também muito importante para ambos, mas a proteção do território é totalmente diferente. Eles têm uma aldeia só, e a partir dessa aldeia, em que vivem todos juntos, eles protegem o território, percorrendo todo o limite duas ou três vezes por ano. Ele esteve na nossa aldeia e viu que lá é diferente. Nós, Tupinambá, espalhamos o nosso povo dentro do território, para não deixar nenhuma brecha para invasores entrarem.

Porantim – Eles têm a terra demarcada, vocês não. Mas a impressão é que ambos os povos, à sua maneira, buscam autonomia na proteção do seu território, não?

Cacique Babau – Isso é fato. Nós, na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, somos autossuficientes em quase tudo. Nós não dependemos tanto do Estado. E aqui, claramente, eles se preocupam com a alimentação, com os roçados, com o milho ser plantado na época certa, o cará ser plantado, ter as batatas doces plantadas. Kolaliene quer voltar na minha aldeia só para poder trazer a semente do cacau. Ele gostou muito de ver o formato [da nossa plantação lá]. Aqui, com a proteção territorial, eles têm mais caça, estão cercados com muito mais animais. Mas, por eles não caçarem, acabam os animais também destruindo as roças. Tem uma semelhança nisso também. E aí é onde eu digo: o governo está fazendo o quê? Lá nós já estamos discutindo com o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Preservação da Biodiversidade] e explicando isso para eles, que cabe uma indenização, porque os roçados indígenas são pequenos. Quando esses animais entram e devoram tudo, não é a mesma coisa que entrar numa roça de soja de 20 mil hectares, é diferente.

Inclusive, eles batem tanto veneno que os animais, se comerem lá, até morrem. E nas áreas indígenas, não. Os animais vão comer e vão ficar bem. E não tem compensação por isso, pelo que nós estamos fazendo de bom para preservar tanto a natureza quanto os animais.

Encontro do Cacique Damião, da Terra Indígena Marãiwatsédé, com o cacique Babau Tupinambá, do sul da Bahia. Foto: Jenário Alves de Souza/Regional Leste do Cimi

Porantim – A espiritualidade para os Enawenê-Nawê permeia tudo, e pela tua fala dá para perceber que para os Tupinambá também. Como é que foi essa parte da troca entre vocês?

Cacique Babau – A questão espiritual é muito importante. Eles estão no momento em que eles param, porque vão se preparar para fazer os rituais das mulheres. Quando chegam os rituais das mulheres aqui, os homens assumem tudo, porque as mulheres vão ficar só fazendo ritual. Então, isso é muito importante. Nós, Tupinambá, costumamos dizer que tudo é ritual, tudo é com os encantados. Eles têm isso também, e é praticamente o ano todo. Só que eles fazem rituais contínuos, e nós, só o fato de irmos para a roça, trabalhar, aquilo já é um ritual. Ir para os rios, tomar banho… Isso são rituais nossos. No trabalho deles, se paralisa [as outras atividades] para fazer [o ritual]. O nosso, ele é fazendo [as atividades do cotidiano].

Porantim – Em que outros territórios vocês passaram durante esse intercâmbio em Mato Grosso?

Cacique Babau – Nós passamos na região do Araguaia, também visitamos alguns povos, entre eles, os Tapirapé e os Xavante. Então, foi algo fabuloso, porque o povo Tapirapé é o mesmo tronco linguístico nosso, a língua é a mesma. Os rituais basicamente são os mesmos. Foi uma boa conversa, inclusive fechamos um acordo de trocarmos experiência linguística, eles irem até lá, ficar alguns meses, depois mandaremos algumas pessoas para cá para poder ficar um tempo também. Também conversamos sobre a questão territorial. O território deles está ainda invadido, eles exigiram que o governo desintruse. Então, eles estão nessa batalha. Conversamos também sobre a entrada do índio na política e até onde é benéfico.

E depois foi fabuloso a gente encontrar o cacique Damião na [Terra Indígena] Marãiwatsédé. Foi muito bom, tinha aproximadamente dez anos que eu não via o cacique Damião. E todas as vezes que eu encontrei ele foi sempre na Funai, em Brasília. Mas, agora, encontrar ele na casa dele, com a felicidade de ter recuperado a terra de onde ele foi retirado à força aos nove anos de idade, é muito gratificante, é muito bom. Também firmamos uma aliança boa, onde os Xavante ficaram de se deslocar até a nossa aldeia Tupinambá na Bahia para ver como é a forma de agricultura nossa, que eles também querem fazer alguma agricultura diferente. Conversamos sobre isso, foi muito interessante, muito bom.

Porantim – Vocês percorreram nesse estado alguns milhares de quilômetros.

Cacique Babau – Eu acredito que até agora [na TI Enawenê-Nawê] nós já passamos dos 4 mil km rodados. Paramos também na missão da Igreja em Diamantino, onde teve o seminário com o Cimi, com povos de vários estados brasileiros, mas sendo a maioria aqui do Mato Grosso. E foi muito boa a troca, estavam lá desde a Bahia até Kretã [Kaingang], do Paraná, discutindo, pensando, questionando as violações desse Estado brasileiro, que quer forjar e criar um tal marco temporal.

Como é que eles falam em marco temporal, se eles têm uma Lei de Terras arbitrária de 1850 que se mantém? Nunca renovaram, nunca repensaram, mas a Constituição, que é de 1988, eles querem revogar. Ou seja, uma lei de 1850 eles acham atual, e uma lei, de agora, de 1988, eles acham atrasada para indígenas, eles querem modificar e incorporar o marco temporal. Não tem como. Eles vão dizer que nós somos de que planeta? De onde nós surgimos? Porque nós sabemos de onde eles surgiram, nós sabemos que eles invadiram o nosso país e tem a data, que é 1500, tem tudo escrito que eles mesmos fizeram, assinaram a carta-crime deles, de violação de nosso país.

Cacique Babau Tupinambá, do sul da Bahia, durante intercâmbio na Terra Indígena Enawenê-Nawê. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Porantim – No caminho entre Brasnorte e o território Enawenê-Nawê, passamos por lavouras enormes, que se perdiam de vista no horizonte, de monoculturas de soja, algodão, milho. Esse modelo é exaltado como um projeto econômico exitoso em Mato Grosso e propagado como um modelo a ser reproduzido no resto do país. Qual a sua percepção sobre isso e sobre o que você viu nesses milhares de quilômetros percorridos nesse estado?

Cacique Babau – Eu fiz muitos vídeos, inclusive para publicar [nas redes sociais], para ver quais os questionamentos que as pessoas fazem ao ver. Eu não sou contra os plantios, eu não sou contra ter essa variedade de plantações, porque realmente nós, humanos, precisamos de uma variedade. Eu sou contra o formato. O formato é que eu achei muito ruim, porque ele é contínuo, ele destrói toda a natureza e deixa como se tivesse só aquilo. E aí é ruim, porque você não tem dois tipos de lavoura, você não tem uma floresta no meio. Nós, indígenas, plantamos coisas muito diversas. Batata doce, cará, milho, mandioca, uma variedade incrível de produtos que a gente planta, porque sabemos que isso é necessário, mas nós não fazemos isso de forma contínua. Para nós, quem tem que ser contínua é a floresta, porque a floresta é a casa dos pássaros, é a casa dos animais e também é a nossa proteção contra o sol. Cadê os corredores ecológicos de floresta entre esses plantios? Porque a forma que se está fazendo esses plantios é ruim até para eles mesmos. Quando chove, a chuva cai e a água desce todinha para o subsolo ou corre em forma de enxurrada, tirando toda a produtividade do solo. Mas quando você tem a floresta em torno dos plantios, a água é absorvida. Então, o formato que o branco está usando faz mal para ele mesmo. Se ele tivesse o corredor ecológico no meio, entre todas essas plantações, eles manteriam a terra mais úmida por mais tempo, o sol não secaria o solo tão rápido, porque a árvore vai liberando água aos poucos.

Porantim – E no cenário mais amplo, agora os povos indígenas estão de novo tendo que enfrentar essa batalha do marco temporal. O último período, de transição de governos, foi um período de muita esperança, e agora parece que a realidade está se impondo. Como você vê esse contexto que os povos indígenas estão vivendo hoje no Brasil em relação aos seus direitos?

Cacique Babau – [O direito indígena] é cláusula pétrea, mas na prática, eles estão mais preocupados com os interesses deles. Que Supremo [Tribunal Federal] é esse que termina de julgar uma repercussão geral que diz que o marco temporal não se aplica aos povos indígenas, e ao mesmo tempo vai o Congresso, cria uma lei ordinária, abaixo de qualquer coisa, e ele, o Supremo, diz assim: “vamos sentar para discutir, para ver se nós achamos a brecha para roubar os povos indígenas, tirar o direito dos territórios deles”. Isso é muito chocante. Não dá para entender a separação de três poderes em que um viola o outro o tempo todo. Quem é o guardião da Constituição que eles mesmo criaram? É o Supremo. Mas aí, quando o Supremo julga: “ah, então vou alterar que eu não concordo com o que você está julgando”.

Será que o Supremo não percebe que está sendo violada uma cláusula pétrea da Constituição? E outra questão: direitos adquiridos não podem ser revogados. Precisam ser ampliados. Cadê o pensamento de proteção coletiva dos povos indígenas? Cadê os recursos liberados para podermos viver bem dentro do nosso território? Eles separam o Congresso, metem a mão no Executivo e tiram R$ 50 bilhões para eles, mas deixam a Funai à míngua. Deixam a saúde indígena à míngua. Cadê o respeito às leis que eles mesmos criam? Eles dizem: “nós temos que criar segurança jurídica”. Mas qual é a segurança jurídica, se eles mesmos violam toda hora? Se eles mesmos mudam toda hora para se autofavorecer e nos prejudicar.

Porantim – E no meio desse contexto, o Executivo não deveria ser mais incisivo em defesa dos direitos indígenas? Foi uma promessa de campanha, a de que o governo Lula atuaria mais fortemente em relação à defesa dos direitos indígenas.

Cacique Babau – Eu estou entendendo diferente. O Lula, na questão do marco temporal, vetou várias coisas. Mas o Congresso pode derrubar o veto do presidente. Então, na verdade, quem manda não é o presidente, quem manda é o Congresso. Aí o presidente, que é o Executivo, aponta que há invasão de uma cláusula pétrea. Quando o Executivo diz: “pera aí, Congresso, você aqui violou algo que prejudica a população. Eu tenho que executar o que vocês mandam, mas isso aqui não é possível”. Aí o presidente vai lá e veta. O que eles fazem? Vão lá e derrubam o veto. Aí o presidente quer fazer a demarcação. Eles [Congresso] falam assim: “se você fizer, tudo que você mandar para cá, nós vetamos. Nós vamos criar uma lei que derruba o recurso que você tem. Você vai ficar com déficit fiscal”.

Porantim – Nessa encruzilhada, qual o caminho que você vislumbra para os povos indígenas?

Cacique Babau – Nós estamos indo e sabemos que eles vão morrer e nós vamos sobreviver. Eles vão se destruir. Porque quando eles criam a lei que viola o nosso direito, eles não percebem, mas eles prejudicam a eles mesmos. O crime organizado aumenta no país, porque o crime organizado vê o cenário e diz: “bom, como eles estão concentrando quase meio trilhão de reais para o agronegócio, é aqui que eu vou atuar, que é onde está o dinheiro”. E aí o crime organizado entra na mineração ilegal, na violação dos os direitos. Então, ele potencializa o crime no país. Agora, quando você potencializa a agricultura familiar… imagine se esse meio trilhão fosse para a agricultura familiar? Você ia ver como o país ia sorrir, como iria florir, porque todas as famílias se sentiriam protegidas, não existiria exclusão social.

Eles querem atuar na soja, [para] poder lavar dinheiro. Nesse algodão ele pode lavar dinheiro, nesse milho, no que o agronegócio faz ele pode lavar dinheiro. Mas ele não pode lavar dinheiro com os povos indígenas. Ele não pode lavar dinheiro com os assentados. Ele não pode lavar dinheiro com a população quilombola. Ele só tem o agronegócio para ele lavar dinheiro. É por aí que ele anda. Então, eles financiam a política para criar confusão jurídica.

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