Indígenas não precisam morrer pelo direito à vida
Clamamos pela presença do Estado diante da escalada da violência, para que seus agentes atuem com firmeza, sob o império da lei
Juntamos aqui as nossas vozes num alerta à sociedade brasileira. É extremamente preocupante a escalada da violência contra os povos indígenas, verificada em boa parte dos estados onde estão presentes. Apesar de o atual governo ter criado o Ministério dos Povos Indígenas, implementado a fiscalização sobre seus territórios e gerado expectativas em relação à demarcação e regularização de suas terras, é impossível não notar a permanência de um clima de “terra sem lei” sobre diversos povos, tristemente exemplificado nos recentes conflitos em Douradina (MS), contra os Guarani e Kaiowá.
Depois de muito resistir nos últimos anos, os indígenas no Brasil foram colocados no centro de uma situação não só de insegurança, mas de incongruência jurídica. Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu seus direitos territoriais como cláusulas pétreas da Constituição, tornando sem efeito a tese do marco temporal. O Congresso Nacional reagiu para atacar esses mesmos direitos, aprovando a Lei 14.701 no apagar das luzes do mesmo ano. Submetido o tema aos mecanismos de controle da constitucionalidade, surpreendeu a iniciativa do ministro Gilmar Mendes, decano do STF, já em 2024, de promover uma “conciliação entre as partes” sobre questões relativas às terras indígenas, em vez de ratificar o que fora estabelecido pela Corte. É a partir dessa conjuntura que acompanhamos o aumento dos casos de violência.
Alvo dos interesses de setores predatórios do agronegócio e da mineração, os indígenas tentam sobreviver, como fazem há mais de 500 anos. Lutam para fazer valer a lei maior que os protege. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, diz o artigo 231 da Constituição Federal. Portanto são detentores de direitos inalienáveis e inegociáveis, embora desrespeitados a cada dia.
O ambiente “terra sem lei” tem consequências graves. Segundo o relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário, foram registrados, só no ano passado, 1.276 conflitos envolvendo direitos territoriais, com invasões, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio. Foram 208 indígenas assassinados no mesmo período. A cobiça sobre os territórios tradicionais desses povos oculta o fato de que são os que mais preservam o meio ambiente, além de nos legar toda uma herança no campo alimentar, bem como no manejo sustentável da fauna e flora. Suas tradições e culturas, parte integrante de seu viver, exigem a proteção de seus territórios.
Os indígenas não precisam pedir de joelhos o que lhes é assegurado pela lei. Não precisam ser fotografados em estado de desnutrição grave, como aconteceu aos Yanomami, cercados por garimpeiros que envenenam seus rios e por grileiros que incendeiam suas matas. Não precisam ser alvo das milícias e bandos de jagunços, quando é dever do Estado e do governo federal garantir a segurança em seus territórios. Os indígenas não precisam morrer pelo direito à vida.
Por essas razões, nossas entidades clamam pela presença do Estado diante da escalada da violência, para que seus agentes atuem com firmeza, sob o império da lei. Ao Ministério da Justiça, pede-se, em caráter de urgência, a manutenção da Força Nacional nos territórios em conflito, evitando desfechos sangrentos e dando a assistência devida aos indígenas. À Procuradoria-Geral da República, responsável pelo Ministério Público Federal, pedem-se a investigação e a aplicação da lei sobre os crimes praticados. Do STF, aguardamos que declare quanto antes a inconstitucionalidade da Lei 14.701/23, cuja vigência acarreta a paralisação da demarcação das terras indígenas e o aumento das agressões contra as comunidades. E, por fim, a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros, conclamamos uma permanente vigília, na certeza de que o extermínio dos povos originários é também a morte do nosso futuro como nação.
*Dom Jaime Spengler é presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Leonardo Steiner é presidente do Conselho Indigenista Missionário, Maria Victoria Benevides é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo — Comissão Arns, Helena Bonciani Nader é presidente da Academia Brasileira de Ciências, Patricia Vanzolini é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-São Paulo, Renato Janine Ribeiro é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Octávio Costa é presidente da Associação Brasileira de Imprensa
Este artigo foi originalmente publicado em O Globo