09/05/2024

Seca, vento, queimadas e fumaça: Roraima sofre uma “vingança da Terra”

Pastoral Indigenista de Roraima e Cimi Regional Norte I realizam levantamento dos problemas decorrentes das queimadas descontroladas e constatam: o panorama é desolador

Missão Catrimani, TI Yanomami. Foto: Pe Bob Franks (IMC) – Pastoral Indigenista de Roraima

Por Gilmara Fernandes e Lígia Apel – Cimi Regional Norte I Matéria publicada originalmente na edição nº 465 do Jornal Porantim

Veja aqui a edição na íntegra.

O dia virou noite! A fumaça tomou conta da capital Boa Vista e dos 15 municípios no Estado de Roraima. As queimadas descontroladas que tomaram conta das terras de Macunaima trouxeram diversos problemas e dificuldades para as várias comunidades indígenas de norte a sul do estado, nas áreas de florestas, nos campos e nas serras. O fogo veio com força devastando a vegetação e tudo que encontrava a sua frente.

O Estado de Roraima iniciou os primeiros meses de 2024 batendo recorde de focos de calor. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o estado ficou em primeiro lugar no ranking do Brasil, com 2661 focos. Destes, 2057 foram apenas no mês de fevereiro.

Mas, como esse quadro se agravou para que fechasse em uma situação tão devastadora? Para responder a essa alarmante pergunta podemos fazer uma breve memória do que foi o segundo semestre de 2023 para a região norte do país.

No Amazonas, os últimos meses do ano foi um dos períodos de grande seca, considerado pelos cientistas do INPE como um dos maiores dos últimos tempos. Sua causa, apontam, é o fenômeno El Niño, que em 2023 se configurou como um Super El Niño[1], pois o aquecimento das águas do oceano Pacífico superou 2ºC (Celsius). Mas, também, tal situação teve como causa ações antrópicas, diz o INPE, “o aquecimento global tornou a seca que atingiu a região 30 vezes mais provável e que o aumento das temperaturas foi determinante para a intensidade e extensão do episódio[2]”.

Estrada que leva às comunidades das Terras Indígenas da região Tabaio. Foto: Irmã Aurélia Príhodová, Missionárias Servas do Espírito Santo, Pastoral Indigenista de Roraima.

Em Roraima, provocado pelo Super El Niño e as mudanças climáticas, o superaquecimento da temperatura agravou uma situação tida como normal para os primeiros meses do ano, segundo a diretora de ciências do Instituto de Pesquisa Ambiental (Ipam), Ane Alencar, citada nos estudos do Observatório do Clima[3]. “A temporada de queimadas em Roraima é no começo do ano. Porém, o atual crescimento dos números é anormal. ‘A tendência dos focos (…) aumentou bastante neste período. Tudo leva a crer que essa anomalia é por conta do clima’”, afirma Alencar.

Ana ainda explica como se dá o alastramento do fogo: “Os incêndios acontecem com base em três fatores. O primeiro é que precisa ter o que queimar, o material combustível. O segundo é que precisa ter um clima favorável para que aquele fogo se espalhe. E o terceiro é quem inicia esse fogo”.

Como estímulo para iniciar o fogo em diversas localidades, pecuaristas receberam licenças para usar fogo em suas áreas de pasto. Como parte da sua política econômica, o governo do Estado liberou, no dia 09 de fevereiro, 55 licenças para queimadas de pasto, conforme apresenta estudos da organização ambiental Greenpeace: “O Greenpeace Brasil teve acesso aos dados de licenças para queimadas em Roraima, publicadas no Diário Oficial, e constatou que, no dia 9 de fevereiro, foram publicadas 55 licenças para uso de fogo, sendo a maioria em área de pastagem, das quais apenas duas foram revogadas, segundo dados referentes até o dia 22 [de fevereiro]”[4].

Esse fogo saiu do controle e, sem controle em uma realidade ambiental que passa por estiagem extrema, foi se espalhando pelas regiões de lavrado (savana), serras e florestas do Estado. Esse tipo de queimada já tinha ocorrido em Roraima no ano de 1998, quando o dia virou noite, as nuvens de fuligem cobriram o céu e a seca se estendeu por todo o Estado. A população, na época, precisou perfurar poços artesianos em várias regiões. Esse ano, 2024, também. A Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (Caer) precisou abrir novos poços artesianos, principalmente nas cidades mais atingidas como São Luiz, no sul, e Pacaraima, no extremo norte do estado[5].

Na capital Boa Vista, a situação se agravou ainda mais com a nuvem de fumaça que cobriu a cidade por mais de duas semanas. Isso fez com que a Prefeitura decretasse estado de emergência. A mesma medida foi tomada em outros 10 municípios. Nos demais, mesmo com a situação fora de controle e sem brigadas suficientes para combater o fogo, o governo demorou a decretar estado de emergência.

Os Parques Nacionais (PARNA) Serra da Mocidade e do Viruá tiveram incêndios devastadores que se alastraram por diversos quilômetros. Um dos principais rios de Roraima, o Rio Branco, estava com -0,15cm de água, virando um rio de areia em frente à cidade, com apenas um filete de água.  Foi um dos piores níveis desde a última cheia. Em diversos outros municípios, houve queimada de pontes de madeira, perda de plantações de banana, macaxeira e outros produtos fundamentais para o abastecimento da população.

Com tantos prejuízos ambientais, sociais e humanos – todos evitáveis – é possível dizer que o governo de Roraima não tem preparo ou conhecimento ambiental para enfrentar as crises climáticas. E nem capacidade de assumir a responsabilidade pelo agravamento delas.

Para David Kopenawa – o xamã Yanomami que se mantém fiel a sua ancestralidade e à cosmopolítica xamânica -, o que vem acontecendo com o mundo é “vingança da Terra”.

Estrada que leva às comunidades das Terras Indígenas da região Tabaio. Foto: Irmã Aurélia Príhodová, Missionárias Servas do Espírito Santo, Pastoral Indigenista de Roraima.

“O que os napëpë [brancos] chamam de mudanças climáticas, eu chamo mesmo de “vingança da Terra”, de vingança do mundo, os napëpë chamam de “mudanças climáticas”, mas nós, Yanomami, chamamos de transformação do mundo, tornar o mundo ruim já que os napëpë causam a revolta da Terra. Os napëpë incendeiam as árvores; a Terra-floresta está com raiva, está se vingando, está fazendo chover muito, ter grandes ondas de calor, em alguns lugares está faltando água e em outros está chovendo demais”[6], alerta.

Territórios indígenas: um retrato desolador

As equipes da Pastoral Indigenista de Roraima e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte I, durante os meses da estiagem que se abateu sobre os territórios, fizeram um levantamento do que cada região enfrentava. Os cenários diagnosticados corroboram a visão xamânica de Davi, pois revelam panoramas desoladores em todas as regiões de Roraima.

No território indígena do povo Wai Wai, no sul do Estado, região de floresta tropical, os igarapés principais secaram, as roças foram queimadas e toda a região estava pegando fogo, literalmente.

O povo Yanomami, que já sofre o impacto terrível da invasão garimpeira, viu o fogo se alastrando por suas florestas. Na região da Missão Catrimani, na Terra Indígena Yanomami (TIY), as 22 comunidades onde atua a equipe do Instituto Missões Consolata (IMC) e as Irmãs Missionárias da Consolata, a realidade foi dramática. Pe Bob Franks (IMC) relata:

“O fogo atingiu mais diretamente a região do médio Catrimani, dez comunidades foram mais afetadas. Na comunidade Bacabal, a destruição foi de aproximadamente 75% de suas roças, deixando os moradores em uma situação precária. Em Hawarixa, quase metade de suas roças foram consumidas pelas chamas. Porapitheri enfrentou um cenário ainda mais sombrio, com praticamente todas as suas roças perdidas e uma casa completamente consumida pelo fogo. Em Prainha, a devastação foi igualmente severa, com 70% das roças destruídas, deixando a comunidade em uma situação desesperadora. Mauxiu perdeu 60% de suas roças, enquanto Cacau enfrentou o duplo golpe de perder tanto suas roças quanto uma casa. A comunidade do Jair Okorasisi foi uma das comunidades mais duramente atingidas, perdendo incríveis 90% de suas roças e em suas casas perderam tudo. As comunidades de Rokuari e Waroma também sofreram perdas consideráveis, com 40% e 60% das roças destruídas, respectivamente. Além do impacto direto nas comunidades, a flora local também foi severamente afetada. Os relatos da Ibama indicam que grande parte da floresta foi consumida pelas chamas, especialmente na região do Médio Catrimani, onde o fogo se espalhou rapidamente, impulsionado pelos ventos”.

Na região de Waikas, num subgrupo Yanomami, houve queimada das roças de cacau que seria para produção de chocolate. Em outras regiões dos territórios indígenas de Roraima, o cenário não foi diferente, mudando apenas o bioma de floresta para o lavrado. A liderança José Carlos Macuxi, da região do Tabaio, TI Anta I, relatou na Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima que “o fogo pegou uma região de mata, destruiu uma serra e área de mata perto da TI. O fogo queimou a casa dos parentes. Na comunidade do Barata, o fogo veio até a roça, houve perda da produção, destruição de roças por completo. Em Mangueira, teve destruição da área de produção de café orgânico, uma das produções mais conhecidas da região”.

A Hutukara Associação Yanomami denunciou em Ofício às autoridades públicas que esse fogo veio de fora da TI, provindo das fazendas no entorno. No município de Mucajai, “na região de Apiaú, os incêndios chegaram a áreas vitais para a economia e subsistência das comunidades Yanomami. O fogo veio da região externa à terra indígena, onde há diversas fazendas de gado, e avançou para dentro da mata[7]”.

Missão Catrimani, TI Yanomami. Foto: Pe Bob Franks (IMC) – Pastoral Indigenista de Roraima

Na região do Alto São Marcos, na aldeia Bananal, onde vivem 405 pessoas dos povos Macuxi e Taurepang, o fogo se espalhou pelo vento, queimou casas e plantações. Em outras TIs, como as da etnoregião da Serra da Lua, que tem predominância do povo Wapixana, o cenário foi o mesmo com queimadas de roça, casas e escassez de água. Na TI Raposa Serra do Sol, houve seca de igarapés, rios e poços, agravando a saúde os moradores.

Os dados do Conselho Indígena de Roraima (CIR) apontam que com a estiagem secaram os poços artesianos, igarapés e lagos, afetando o consumo de água. A situação trouxe problemas de saúde em muitas comunidades, principalmente as crianças com caso de diarreia e vomito, e se agravaram com aumento de casos de malária. As plantações nas comunidades, bananeiras, pés de mandioca e outros, foram perdidas.

A fumaça cobriu o céu das comunidades, deixou a qualidade do ar péssima, agravando os problemas respiratórios. Escolas fecharam e lideranças indígenas desmarcaram rituais. Nos Municípios de Amajari, Pacaraima, Uiramutã e Normandia, nas regiões onde estão localizadas as TIs, a dificuldade por água potável foi gritante, com relatos de moradores bebendo água de lama.

O CIR publicou em seu site[8] alguns depoimentos de lideranças que trazem esses sofrimentos.

Tecio Sarlim, tuxaua da comunidade Bananal, região São Marcos, município de Pacaraima: Aqui na região o fogo saiu do controle, tivemos grandes áreas de mata queimadas, as pessoas perderam suas roças, plantações de bananas, mandioca entre outras produções, se não tivesse o empenho de todos uma das casas teria pegado fogo por inteira, aqui está bem crítico”.

Ezequiel Laurentino da Silva, tuxaua da comunidade Guariba, região da Raposa, na TI Raposa Serra do Sol: Esse buritizal Diamante Negro há muitos anos vem ajudando as pessoas. Há uns cinco dias eles estavam perfeitos, verde e bonito, mas, agora, está nessa situação, todo destruído”.

Missão Catrimani, TI Yanomami. Foto: Pe Bob Franks (IMC) – Pastoral Indigenista de Roraima

Lázaro Wapichana, tuxaua, região Serra da Lua, comunidade indígena Pium, TI Manoá-Pium: “Dia e noite essa fumaça, já vai fazer mais de duas semanas essa situação. Pedimos para o gestor suspender as aulas até amenizar o problema, isso tem afetado a saúde, pessoas passaram mal, os olhos ficam ardendo, não dá para dormir direito, ficamos sufocados pela fumaça”.

Resistência

Em se tratando de resistência, os povos indígenas sabem o que é, e como fazer. Seu segredo não é desconhecido: “basta agir em prol de todos, em mutirão”, descreveu o CIR em seu site. “Para evitar que o fogo se espalhasse pelas serras e comunidades, os moradores das aldeias indígenas Lage e Tabalascada, da TI Tabalascada, região Serra da Lua, fizeram um mutirão durante dois dias para apagar o fogo antes dele avançar ainda mais nas comunidades. O chamado foi feito pelo segundo tuxaua da comunidade Tabalascada, Ítalo Raposo: Sabemos que a batalha não é fácil. Essa ação [mutirão] é para proteger nós mesmo, a nossa saúde, a nossa mata”.

De fato, as queimadas nos territórios indígenas poderiam ter maior gravidade não fossem as Brigadas Indígenas. As equipes do CIR que, com coragem e determinação – características dos indígenas – e recursos próprios, combateram o fogo em várias comunidades.

Além do combate ao fogo com ação direta, as brigadas do CIR levaram os primeiros suprimentos de água, alimentação, transporte para muitas comunidades, onde grande parte das áreas foi devastada e muitas casas foram queimadas pelo fogo, deixando as famílias desoladas.

Mas, agora, com a chegada das chuvas no finalzinho de abril e a certeza de que a (re)construção está nas mãos dadas, a esperança e a vida (re)brotam.

[1] https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/11/27/super-el-nino-aquecimento-do-pacifico-atinge-maior-patamar-desde-2016.ghtml

[2] https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/cgcl/noticias/seca-historica-na-amazonia-2023-foi-30-vezes-mais-provavel-devido-a-mudanca-do-clima

[3] https://www.oc.eco.br/incendios-em-roraima-batem-recorde-de-emissoes-em-fevereiro/

[4] https://www.greenpeace.org/brasil/imprensa/enquanto-roraima-bate-recorde-de-focos-de-calor-em-meio-ao-periodo-de-estiagem-governo-estadual-emite-55-licencas-para-queimadas/

[5] https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2024/03/02/caer-inicia-perfuracao-de-pocos-artesianos-para-atender-dois-municipios-sem-agua-em-roraima.ghtml

[6] https://sumauma.com/para-mim-o-termo-mudanca-climatica-significa-vinganca-da-terra/

[7] https://www.ihu.unisinos.br/categorias/636934-fogo-atinge-floresta-da-ti-yanomami-e-hutukara-pede-providencias

[8] https://cir.org.br/site/2024/02/28/incendios-florestais-avancam-sobre-terras-indigenas-em-roraima-e-focos-de-queimadas-batem-recorde/

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