Fraternidade e Casa Comum
Editorial publicado originalmente na edição 464 do jornal Porantim
Veja aqui a edição na íntegra.
No tecido complexo das relações humanas e da diversidade de cosmovisões que moldam nossa existência, a “Semana dos Povos Indígenas”, com seu tema “Casa Comum – todas e todos somos parentes”, nos inspira a refletir acerca da fraternidade universal e de uma presença pastoral firme, na defesa dos povos originários e, consequentemente, do planeta.
Desde 1980, durante o “Abril Indígena”, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) propõe ações para a “Semana dos Povos Indígenas”, desdobrando aspectos que integram a Campanha da Fraternidade de cada ano, lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e buscando emitir alertas sobre o desequilíbrio jurídico, político e social que tem asfixiado vidas há séculos.
“Desejo ardentemente que, neste tempo que nos cabe viver, reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, possamos fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade”, escreveu o Papa Francisco, na Encíclica Fratelli Tutti, na qual o pontífice indica a fraternidade e a amizade social para construir um mundo melhor, pacífico e com mais justiça. “Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”, frisou.
Em harmonia com este ideal, o cardeal, arcebispo de Manaus e presidente do Cimi, Dom Leonardo Steiner, enfatizou a importância do respeito mútuo diante da diversidade, base das relações sociais para o Bem Viver e Conviver. “A amizade social tem como pano de fundo a fraternidade. Respeito e convivência harmônica na diferença”, pontuou o cardeal durante a apresentação da 60º edição da Campanha da Fraternidade (CF), cujo tema deste ano é: “Fraternidade e amizade social” e o lema: “Vós sois todos irmãos e irmãs”.
Essas perspectivas que permeiam as discussões do “Abril Indígena” nos convidam a refletir sobre como o sistema socioeconômico e a conjuntura política ameaçam o Bem Viver dos povos indígenas e de toda a humanidade. No Brasil, dentro da lógica materialista e mercadológica, ainda são adotadas inúmeras ações que violam os direitos da natureza – que não é um objeto de uso dos seres humanos, passível de apropriação e exploração – e, consequentemente, os direitos indígenas.
Como diversas terras indígenas são visadas para a implementação de empreendimentos predatórios, por exemplo, são inúmeros os conflitos e violências praticados contra as comunidades tradicionais em todos os estados brasileiros: invasão, grilagem, arrendamento das terras indígenas por parte do agronegócio, invasão mineradora, devastação das florestas e sua biodiversidade por madeireiros. Além de lideranças assassinadas, mulheres e crianças violentadas, comunidades ameaçadas, famílias sem ter o pão de cada dia porque seus rios estão contaminados com o mercúrio e agrotóxico ou secando pelo desvio dos seus cursos. O assédio envolve, ainda, a oferta de falsas soluções às mudanças climáticas.
Diante desse cenário, os povos lutam para anular a Lei 14.701/2023, promulgada em 28 de dezembro de 2023 pelo Congresso Nacional. “Lei do genocídio”, lei que valida todas as violências contra os povos indígenas. Um instrumento político manifestamente inconstitucional, já derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que atenta contra cláusulas pétreas, que é contrária aos direitos dos povos originários e que aplica o “marco temporal” e o “renitente esbulho” como critérios para as demarcações de terras indígenas, autorizando, inclusive, a exploração indiscriminada das terras por particulares.
Os povos indígenas, suas organizações e seus apoiadores buscam avançar na compreensão de que somente a demarcação e proteção dos territórios poderão garantir os projetos de vida dos povos originários e também contribuir significativamente para a salvação do planeta. Só assim poderemos “dar passos para superar o desequilíbrio sistêmico e frear a corrida para um mundo sem futuro”, aponta o documento da “Semana dos Povos Indígenas de 2024”, produzido pelo Cimi.
É crucial reconhecer que a defesa dos povos indígenas e de seu direito à terra não é apenas uma questão de justiça social ou de reparação histórica, mas também uma necessidade para a sobrevivência de toda a humanidade. “São experiências tecidas no viver indígena que oferecem possibilidades verdadeiramente sustentáveis para estas e as futuras gerações”, conclui o documento.
Dessa forma, a Campanha da Fraternidade, a Semana dos Povos Indígenas e o Abril Indígena nos convidam a promover uma mudança pessoal e coletiva em nosso relacionamento com os povos indígenas e com a “Casa Comum”, reconhecendo e valorizando as contribuições que eles trazem para a construção de um futuro mais sustentável e justo para todos.