05/04/2024

Tornar-se Terra Indígena: o ‘levantar aldeia’ dos Pankararu como contraponto à tese do marco temporal 

A Lei 14.701/23 é fruto de uma vitória anti-indígena no Congresso Nacional, mas além de ter a Constituição Federal como principal obstáculo, enfrenta contrapontos e conceitos autóctones que tratam do direito à Terra Indígena

Corrida do Imbu, ritual realizado tradicionalmente na TI Pankararu. Foto: arquivo povo Pankararu

Por Renato Santana – da Assessoria de Comunicação do Cimi Nordeste – matéria publicada originalmente na edição 464 do jornal Porantim

Veja aqui a edição na íntegra.

Havia chovido forte durante a madrugada. Sem o aguaceiro conseguir dissipar, pela manhã, as nuvens estavam carregadas. Na região metropolitana do Recife, pajé Maninho levantou-se cedo de um dos leitos da Casa de Saúde Indígena (Casai) de Pernambuco, na Aldeia Camará, um distrito com Mata Atlântica preservada distante 461 quilômetros da retomada Pankararu Angico, cuja aldeia foi levantada com a liderança do pajé, há cerca de 15 anos, às margens do Rio São Francisco.

Dores nas costas o acompanham. O peso da história sobre os ombros do velho pajé cobra a conta. Dias antes estava sem conseguir se locomover, imobilizado pelas hérnias de disco atiçadas pelo trabalho na terra. Na manhã nublada, porém, o pajé consegue caminhar pelas estruturas da Casai densamente arborizada – com a ajuda dos efeitos da medicação e amparado pelo filho, Benedito Pankararu Angico. No refeitório, o café da manhã é colocado à mesa.

Mas não foram as dores nas costas que o levaram a Recife, inicialmente, e sim os pulmões, carregados por manchas em investigação hospitalar, gerando tosse incômoda e cansaço atípico. As enfermidades esfumam as lembranças, que chegam à fala em desordem cronológica, sem, entretanto, pajé Maninho deixar escapar detalhes importantes de um movimento de luta pela terra no sertão de Pernambuco peculiar, sem precedentes, surgido em um cenário específico, mas com condições de sintetizar uma compreensão mais ampla do que é o direito à Terra Indígena a partir de uma compreensão própria destes povos.

Os levantamentos de aldeias, iniciados em meados da década de 1970, formaram um método de garantia territorial com diferenças em relação à categoria retomada, conceito cujas primeiras notícias datam desse mesmo período. O ´levantamento de aldeia´ é um movimento com especificidades cosmológicas que na terra tece a legitimidade da ocupação tradicional como uma teia, restaurando o poder encantado a partir da abertura de terreiros, a escolha do encantado guardião da aldeia e a construção do Poró, a casa dos Praiá, os encantados da tradição de povos do submédio São Francisco, entre outras “sementes” plantadas para fazer brotar a Terra Indígena. Soma-se a esses aspectos a intersecção com a política, ferramenta de resistência em todos os seus desdobramentos.

“Levantar aldeia”, a grosso modo, é um conceito autóctone de recuperação territorial, mas sedimentado no entendimento da Constituição Federal de 1988 de que terras indígenas são um direito originário, anterior à formação do Estado brasileiro. Ou seja, transpondo o conceito jurídico constitucional à compreensão Pankararu do “levantar aldeia”, a terra reivindicada torna-se terra indígena a partir das sementes plantadas nela pela tradição, pelos usos, pelos costumes, pelas ramas que despontam nela a partir disso.

Mas a tese restritiva do marco temporal ainda insiste em desconstruir a legislação consolidada gerando uma falsa ideia do que é uma Terra Indígena e distorcendo as prerrogativas constitucionais que garantem a sua demarcação.

O levantador de aldeias

Levantar aldeia é um movimento que teve à frente o pajé João Tomás Pankararu, liderança histórica dos povos indígenas do Nordeste e um dos fundadores da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). João Tomás arregimentava outros caboclos da tradição – aqueles voltados ao mundo dos encantados, à condução dos rituais – para formar o que ficou conhecido como ´Pelotão João Tomás´. Para ingressar no pelotão, Maninho precisou passar por um teste da tradição, comandado por João Tomás. Assim como os demais integrantes, que precisavam ser da tradição para andar ao lado do “levantador de aldeias”.

Nas retomadas ou terras indígenas, João Tomás chegava com seu pelotão para o trabalho da tradição de devolver a terra aos encantados. Enredando num só os mundos material e imaterial, a presença do pelotão servia senão à resistência do povo, acossado pelos pretensos proprietários violentos em seus meios de questionar a tradicionalidade do território. Havia também os povos ainda não reconhecidos como indígenas, ou seja, desprotegidos da ação truculenta de delegados e policiais militares. Uma das estratégias deste grupo heterogêneo de inimigos desses povos era a de impedir a realização de torés, as chamadas brincadeiras.

Pajé Maninho se recorda de uma dessas ações do pelotão na Terra Indígena Pankararé de Brejo do Burgo, localizada no Raso da Catarina, na Bahia. “Disseram para o João que o patrão chegaria lá com a polícia para acabar com o ritual. Então João disse: não vamos parar com o trabalho. Foram três dias de Toré até que os homi apareceram. João os recebeu na porteira, a gente lá no fundo pisando forte. Mandaram parar com aquilo. João respondeu: e quem é que vai fazer a gente parar?”.

O latifundiário, jagunços e policiais se retiraram da porteira prometendo retornar, mas sem conseguir intimidar João Tomás, aqueles que seguiram no ritual e os demais Pankararé. “Era uma tradição tão forte que não tinha pedra que não se quebrava”, lembra Maninho ao explicar a coragem diante de situações ameaçadoras e potencialmente conflituosas. “Acontece que o João era um sujeito de conhecimento político, sabia quem era o delegado, os militares de Paulo Afonso, conhecia o prefeito”, explica o pajé.

Foto: Hellen Loures/Cimi

O episódio é marcante para desencadear a mobilização dos Pankararé acerca do reconhecimento do povo, então desabrigado do poder tutelar, ou seja, seus integrantes não eram tratados pelas instituições, caso dos poderes públicos locais e polícia, como indígenas sendo submetidos a desmandos e proibidos de exercer a tradição. O que reflete uma característica de João Tomás observada pelo antropólogo José Maurício Arruti, da Universidade de Campinas (Unicamp), autor de estudos, artigos e etnografias importantes sobre o povo Pankararu.

Conforme a análise de Arruti, João Tomás ajudava a levantar as aldeias não apenas pelo exercício ritual, “mas pelo exercício de uma autoridade política que se misturava com uma certa autoridade policial dada por sua relação com o Chefe de Posto (da Funai), com a ideia de que os índios são federais e as polícias militares estaduais. Então ele exercitou essa dimensão, de uma espécie de frente mais militarizada, não que fosse armada, longe disso, mas uma frente mais de embate”.

Durante a década de 1990, Arruti conviveu e entrevistou as principais lideranças Pankararu. João e Quitéria Binga, João de Páscoa e João Tomás são alguns dos principais nomes. Entre os joãos Pankararu, Tomás impôs desafios às tentativas de entrevistas do então jovem antropólogo, que na ocasião cruzava a ponte entre a História e a Antropologia. O pajé preferia ouvir a falar, se mantendo desconfiado e distante. Arruti revela que gravou três fitas, em ocasiões distintas, com as conversas, mas sequer uma delas rodou quando foi ouvi-las para transcrevê-las.

“As informações das conversas foram conseguidas via anotações de caderno de campo. Então não pude me atentar a elementos da retórica que traziam essa contação de histórias”, explica. No entanto, Arruti diz que foi nas conversas com João Tomás que se deu conta do trabalho de levantamento de aldeias. “Atividade encarada pelos Pankararu como muito séria e relevante no trato com a tradição e sobrevivência do grupo”, resume.

Uma das histórias anotadas por Arruti é o relato oral do pajé Maninho sobre o episódio no Brejo do Burgo. “Os Pankararé estavam desabrigados do poder tutelar e o João Tomás vai até lá emprestar esse poder. Ele consegue enfrentar o delegado e o prefeito e autoriza o ritual Pankararé. Minha impressão é de que isso teve um efeito muito grande sobre o reconhecimento dos Pankararé ou pelo menos a mobilização dos Pankararé nesse movimento”, analisa Arruti. A história, por outro lado, caberia em qualquer relato a respeito de retomadas de terras tradicionais realizadas pelos povos indígenas Brasil afora. O que diferencia então o levantamento de aldeias das retomadas?

Metáfora vegetal: diferenças entre ‘levantar aldeia’ e ‘retomada’

Para Arruti, a diferença entre retomada e levantar aldeia está no histórico das categorias, em um primeiro momento. Ocorre que “levantar aldeia é um termo interno, próprio da dinâmica Pankararu e é a descrição do processo a partir de uma cosmológica, associada a uma metáfora vegetal, em que você tem um enxame, o enxame sai de uma aldeia, assenta em outro lugar, bota a semente, e você tem que levantar a aldeia a partir dali. Muito relacionado a uma cosmológica Pankararu, mas que tem parentesco com outros grupos, como os Xukuru do Ororubá, em que a ideia de semente, de encanto que emerge da semente, faz parte desse conjunto”, explica.

A categoria retomada, conforme o antropólogo, trata de uma linguagem sumamente política. “Um termo, uma chave que vem muito do plano do político, do movimento político que foi se construindo nas décadas de 1990 e 2000, mas que não recua tanto no tempo assim, e tem a ver com certa proximidade com debates que conectam a questão indígena a temas mais largos”, analisa. Ao estudar a categoria a partir das retomadas Tupinambá, a antropóloga Daniela Alarcon aponta a utilização do termo desde meados da década de 1970, período concomitante ao início do uso dos Pankararu da categoria “levantar aldeia”.

Para Arruti, o movimento indígena pode chegar a um determinado momento e olhar para trás e chamar o levantamento de aldeia de retomada, no sentido de que estão recuperando e regressando a um território que era considerado seu. Ainda assim, o antropólogo intui que uma primeira distinção seria do contexto de produção histórica dessa categoria – o que entende como uma “dimensão mais externalista”.

“Mas talvez podemos internalizar os sentidos mais próprios dessas categorias e entender que no caso Pankararu levantar aldeias está menos associado a retomar do que expandir. O levantamento de aldeias é expansão de território; não retomar território. O uso político pode ser indistinto, mas do ponto de vista mais dos fundamentos cosmológicos do uso da expressão, levantamento está mais associado à expansão étnica, expansão territorial do tronco Pankararu, dessa ramificação dos galhos, de pontas de rama que vão se expandindo, do que de uma retomada. Levantar aldeia é levantar uma ponta de rama nova, isso é uma coisa bem encantadora do ponto de vista Pankararu: eles não precisam afirmar que aquele território era deles porque eles é que levam legitimidade para a terra, porque eles assentam a semente, criam o terreiro e aquilo torna-se Terra Indígena nesse sentido”, conclui.

O que não significa que esta compreensão de ‘levantar aldeia’ tenha se restringido aos Pankararu ou aos seus parentes mais próximos, os Pankararé. Na Terra Indígena Kambiwá, por exemplo, no sertão de Pernambuco, o cacique Ivan Kambiwá lembra que João Tomás e seu pelotão logo trataram de ir atrás do Praiá protetor no episódio de levantamento de aldeia do povo. Ergueu o Poró, abriu o terreiro e como era de sua tática, mapeou junto aos Kambiwá os inimigos, que estavam ameaçando cacique Ivan, sua família e os demais Kambiwá que tomaram o rumo de recuperar o território.

João Tomás: resistência da tradição

João Tomás encarna também um tipo de ação política tipicamente relacionada à imbricação entre o que se convenciona chamar – e separar – de “religioso” e “político”. Se tratava de um pajé com a marca do enfrentamento aos oponentes locais que impediam a realização das brincadeiras (torés e demais rituais). Arruti salienta que o pajé João “não faz parte do campo de atores que produzem as pontas de rama, mas ele é uma espécie de braço armado, digamos assim, da tradição. Não que usasse armas, longe disso, não é nesse sentido, mas no sentido de emprestar sua autoridade política para além da tradição”.

O indigenista José Karajá chegou ao município de Paulo Afonso em 1982 para abrir a sede do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Nordeste. O trabalho consistia em atender com mais ênfase os povos daquela região do Vale do São Francisco abrangendo municípios no norte da Bahia e Pernambuco, entre eles os Pankararé e os Pankararu. “João Tomás adotou a seguinte estratégia: ele ia para a feira de Paulo Afonso, sábado ou domingo pela manhã, à procura dos caboclos. Ele fazia contato com esse povo, os reunia e depois levantava a aldeia. A primeira coisa era fazer um terreiro e erguer o Poró”, conta Karajá.

Ritual Praiá do povo Pankararu registrado em 1938 pela Missão de Pesquisas Folclóricas liderada pelo escritor modernista Mário de Andrade

Existe um contexto específico, de meados do século passado, para explicar a dispersão dos indígenas naquela região de Paulo Afonso. Na década de 1950, a Chesf iniciou a construção das usinas hidrelétricas. A primeira delas, a UHE Paulo Afonso I, com início de operação em 1954, já havia tomado dezenas de cachoeiras do Rio São Francisco, sagradas para os povos Pankararu e Pankararé. Além disso, a presença da Chesf promoveu uma catastrófica reorganização fundiária para os indígenas: terras no entorno do rio antes utilizadas pelos povos tradicionais para moradia, tradição e caça foram, da noite para o dia, transferidas para a Chesf. Os acontecimentos provocaram novos deslocamentos, deixando grupos familiares sem terra e à própria sorte em Paulo Afonso, na Bahia, Petrolândia e Tacaratu, em Pernambuco. O que perdurou até a década de 1970.

“Conforme os relatos e depoimentos que coletei à época, João Tomás fez contato com os Pankararé na feira de Paulo Afonso e o povo estava disperso, parte estabelecido na então Mina Grande, chamada depois de Brejo do Burgo. A antropóloga e professora Maria do Rosário de Carvalho me contou que achava que seria Brejo dos Bugres, não do Burgo, por conta dos engenheiros da Chesf que vieram do Sul e toparam com os indígenas. No Sul os indígenas eram chamados de forma pejorativa de bugres”, conta.

Karajá conta que João Tomás levou a Fundação Nacional do Índio (Funai) para os Pankararé e enfrentou os antagônicos, ressaltando o observado por Arruti: emprestou aos Pankararé sua autoridade. “Ele foi peitudo! Chegava nas madrugadas, escondido, e quando os posseiros se davam conta ele já estava lá dentro da terra fazendo toré. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Glória (município baiano) fazia uma forte oposição aos indígenas também. O Tomás então no Brejo garantia essa resistência e proteção aos praiás, ensinava a tradição, e para os Pankararé era a afirmação étnica que desejavam”, diz Karajá.

O Poró dos Pankararé certa vez foi incendiado pelos posseiros. João Tomás não deixava que os Pankararé se deixassem intimidar. “Para o Tomás não importava o lado do rio em que estavam, considerava os Pankararé com a mesma tradição dos Pankararu. Para os Pankararé estava bem consolidado o João Tomás como o levantador da aldeia”, lembra.

Share this: