22/03/2024

Povos indígenas retomam o ritmo das articulações e mobilizações em defesa de seus direitos

Invasões de grileiros e madeireiros no território demarcado “vêm piorando com a aprovação da lei 14.701, que normatiza o marco temporal”, relatam os indígenas em carta entregue ao ministro Edson Fachin

Indígenas dos povos Avá-Guarani, Guarani e Kaiowá, Terena, Kinikinau e Kadiwéu em ato em frente ao STF contra a Lei do Marco Temporal. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Por Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 463 DO JORNAL PORANTIM

Veja aqui a edição na íntegra.

Os povos indígenas retomam, nesse mês de março, o ritmo das articulações e mobilizações nacionais. As agendas seguem com incidências orgânicas e permanentes em defesa de seus direitos constitucionais, elementos fundamentais na vitória contra o marco temporal – julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro de 2023 – e, agora, frente aos ataques às suas vidas e territórios impulsionados pela Lei 14.701/2023 –que, promulgada em dezembro pelo Congresso Nacional, transformou o marco temporal em lei, ignorando a decisão do STF com o objetivo de impedir as demarcações e abrir terras já demarcadas para a exploração econômica.

Não por acaso, completa-se em 2024 cinco décadas do documento “Y-Juca Pirama: o índio, aquele que deve morrer” que, hoje, assume extrema atualidade mais uma vez. Ao longo deste período, os indígenas conquistaram direitos, sobreviveram à tutela e à Ditadura e mostraram uma força política única. Entretanto, enfrentam um novo decreto de extermínio com a Lei 14.701/2023.

Apesar de sua flagrante inconstitucionalidade, a lei do marco temporal foi promulgada depois do Congresso derrubar a maioria dos vetos do presidente Lula às partes mais temerárias da lei, também em dezembro. Com este ato, a Lei 14.701/2023 passa a vigorar em sua integralidade, causando insegurança física e jurídica para todos os povos indígenas do Brasil e instaurando uma situação de conflito constitucional.

Foi por essas razões que, imediatamente após sua promulgação, a Lei 14.701 foi questionada junto à Suprema Corte

Enquanto a Lei promulgada pelo Congresso Nacional não é declarada inconstitucional pela Suprema Corte, ela segue em vigor, causando inúmeras consequências aos povos originários, todas elas de extrema gravidade. Além de inviabilizar a continuidade das demarcações de terras indígenas e fragilizar a atuação dos órgãos do poder Executivo – como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – que têm entre suas atribuições a proteção, a identificação e a delimitação destes territórios, a Lei 14.701 pode desencadear uma série de decisões judiciais que resultem em despejos de comunidades já estabelecidas e na anulação de demarcações já consolidadas.

Portanto, os povos indígenas, mobilizados, têm pedido que o STF, em seu papel de guardião da Constituição Federal, reafirme seu recente julgado e declare a inconstitucionalidade da Lei 14.701, revertendo este difícil momento para a convivência democrática no país e, particularmente, para a vida e o futuro dos povos indígenas.

Povo Karipuna é recebido pelo ministro Edson Fachin

Na tarde do dia 23 de fevereiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin recebeu representantes do povo Karipuna em Porto Velho (RO). Durante a reunião, Fachin escutou o clamor do povo Karipuna, na voz da matriarca do povo, Katika Karipuna, e da liderança Adriano Karipuna, que relataram as inúmeras violências e violações de direitos que os indígenas vêm sofrendo em seu próprio território.

Uma carta em nome do povo Karipuna também foi entregue ao ministro, com uma série de pedidos e reivindicações – entre elas, a desintrusão da Terra Indígena (TI) Karipuna, amplamente invadida por grileiros e madeireiros, e a declaração da inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, que inviabiliza demarcações, determina a aplicação a tese do marco temporal e abre as terras já demarcadas para a exploração econômica predatória.

Adriano Karipuna fala sobre situação de seu povo ao ministro do STF Edson Fachin durante reunião em Porto Velho (RO), no dia 23 de fevereiro. Foto: Pedro Abib Hecktheuer

Os Karipuna foram recebidos na Faculdade Católica de Rondônia, em Porto Velho (RO), onde o ministro Fachin foi homenageado e recebeu o título de Doutor Honoris Causa. O arcebispo de Porto Velho e ex-presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi, também participou da reunião.

“Nossa terra tem muita invasão, muitos madeireiros. A gente tem medo, eles [os invasores] querem matar nós todos”, relatou Katika, matriarca do povo e uma das oito sobreviventes do contato que quase dizimou os Karipuna, na década de 1960.

“Queremos agradecer ao senhor, que disse não ao marco temporal. Mas, infelizmente, virou uma lei”, refletiu Adriano Karipuna, referindo-se à Lei 14.701/2023. “Isso também acarretou e acelerou o processo de invasão e grilagem dentro do território indígena Karipuna, que já é homologado desde 1990”.

“Estamos em iminência de um genocídio, em decorrência dessas atrocidades que estão acontecendo dentro do território. Além disso, esse desmatamento tem nos afetado na questão econômica, na alimentação, dentro outros [aspectos]. Temos medo de ser assassinados a qualquer momento”, relatou a liderança.

O ministro Fachin escutou atentamente as lideranças e reafirmou a defesa dos direitos constitucionais indígenas, mencionando a dívida que o Estado brasileiro tem com os povos indígenas.

“Agradecemos seu compromisso com a defesa dos povos indígenas”, reconheceu Dom Roque Paloschi. O arcebispo também mencionou a importância do STF reafirmar a inconstitucionalidade da Lei 14.701.

Apesar de inconstitucional, a lei vigora em sua integralidade desde o dia 28 de dezembro de 2023, quando foi promulgada pelo Senado Federal, com graves consequências para os povos originários de todo o país.

“Os grileiros firmam sua presença na terra, através da grilagem de terra, com pastos plantados em lugares antes denunciados e o roubo de madeira em lugares já denunciados inúmeras vezes”, relatam os Karipuna no documento entre ao ministro. “Essa situação vem piorando com a aprovação da lei 14.701, que normatiza o marco temporal”.

Os indígenas avaliam que, apesar das inúmeras denúncias realizados e diversas decisões judiciais, inclusive do próprio STF, prevendo a proteção e a fiscalização da TI, “não há uma eficácia na retirada dos invasores, ocorrendo operações que não surtem efeitos, uma vez que não existe uma Base Permanente para fazer a fiscalização da Terra Indígena”

O documento também ressalta que, apesar das denúncias recorrentes acerca da presença de indígenas em isolamento voluntário na TI Karipuna, ainda não houve medidas do setor de índios isolados da Funai “para a proteção dos isolados e retiradas dos invasores”. Os indígenas registram que as denúncias sobre este tema são feitas desde pelo menos 2021.

“Novamente denunciamos a falta de eficácia do Estado Brasileiro em garantir o direito constitucional, que é a proteção territorial e a proteção física dos povos isolados e nossa”, afirmam os Karipuna na carta.

Incidência internacional

Na mesma semana do encontro com o ministro Edson Fachin, André Karipuna, cacique do povo Karipuna de Rondônia, foi recebido por representantes de pelo menos 14 embaixadas e de diversos órgãos do poder público. Na pauta, também neste caso, a situação de extrema vulnerabilidade tanto do povo como dos indígenas em isolamento voluntário que se refugiaram no território.

Apesar da TI Karipuna já estar demarcada e homologada desde a década de 1990, o descaso do governo frente às frequentes invasões de madeireiros, grileiros e fazendeiros traz o risco de extinguir os povos ali presentes.

André Karipuna fala a representantes de embaixadas durante reunião na sede da Delegação da União Europeia no Brasil, em Brasília (DF), no dia 22 de fevereiro de 2024. Foto: Verônica Holanda/Cimi

“Será vergonhoso ao Estado brasileiro se chegarmos ao ponto de deixar nosso território. Os órgãos públicos não fizeram nem a metade do que disseram que fariam”, relatou André. Hoje, cerca de 60 indígenas, dentre jovens, anciãos e crianças, vivem no território demarcado – e ameaçado pelos invasores.

“Há nove anos, a gente vem para Brasília para denunciar aos órgãos federais dos ataques sofridos pelos grileiros em nosso território, que tentam dizimar o povo Karipuna”, relatou o cacique, fazendo eco às denúncias apresentadas por seus parentes ao ministro Edson Fachin.

No mesmo período, lideranças indígenas, juntamente com integrantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), participaram da 55ª sessão ordinária do Conselho de Direitos Humanos (CDH), da Organização das Nações Unidas (ONU). A sessão ocorre em Genebra, na Suíça, entre 26 de fevereiro e 5 de abril, período que prevê mais manifestações virtuais de representantes indígenas e do Cimi.

Na oportunidade, o jovem Guarani Kaiowá Germano Lima, denunciou incêndios criminosos de casas de reza. Na mesma sessão, a missionária do Cimi Marline Dassoler destacou os efeitos devastadores das mudanças climáticas que assolam os povos e os biomas brasileiros. Já secretário executivo do Cimi, Luis Ventura Fernández, que também participou das atividades, expôs preocupação com cenário atual dos direitos indígenas no Brasil. “Pedimos ao Conselho de Direitos Humanos que mantenha a atenção sobre o que está acontecendo no Brasil e continue solicitando ao Estado brasileiro que cumpra suas obrigações internacionais”, cobrou Luis Ventura.

“Não há lei que nos impedirá de reivindicar os nossos direitos”

Mais de cem indígenas do Mato Grosso do Sul e Paraná se reuniram na tarde do dia 20 de março em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) para realizar manifestação contra a Lei 14.701/2023 – a “Lei do Marco Temporal”. Os indígenas reivindicam que a lei, promulgada em dezembro de 2023 pelo Congresso Nacional, seja declarada inconstitucional.

Os indígenas dos povos Avá-Guarani, Guarani e Kaiowá, Terena, Kinikinau e Kadiwéu desembarcaram essa semana em Brasília (DF) para demandar a demarcação de suas terras e exigir a efetivação e a garantia dos direitos territoriais reconhecidos pela Constituição Federal.

Indígenas do Mato Grosso do Sul e do Paraná em frente ao Ministério da Justiça, em Brasília. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Os povos cobram que a Lei do Marco Temporal seja declarada inconstitucional pela Suprema Corte, que já decidiu sobre o tema em setembro de 2023, no processo de repercussão geral que discutiu a demarcação de terras indígenas.

A demarcação das terras é urgente para os povos indígenas. Não à toa, as lideranças percorreram mais de 1000 quilômetros de ônibus até Brasília, em busca de respostas sobre o andamento dos processos. A maioria aguarda há vários anos a regularização de suas terras.

“Eu vim aqui para levar alguma resposta para minha comunidade. A gente está aguardando há 35 anos. Será que meu pai vai ver a demarcação desta terra?”, questionou Dionísio Guarani Kaiowá, da Terra Indígena (TI) Arroio Korá, durante reunião realizada na tarde de ontem (19) com a equipe da Diretoria de Proteção Territorial da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

A demora na demarcação de suas terras acirra ainda mais os conflitos em seus territórios. “A gente já está cansado de vir aqui [em Brasília], de ser perseguido, atacado, baleado por essa demora. Por isso, viemos atrás dessa resposta, porque a gente sabe que essa lei que tá aí, a 14.701, é inconstitucional”, bradou Simão Guarani Kaiowá, liderança da Aty Guasu também presente na reunião.

Para Samanta, do povo Terena, “não há lei que nos impedirá de reivindicar os nossos direitos, porque a nossa lei maior é a Constituição de 1988. O nosso marco é ancestral”, afirmou. Ao longo da semana, os indígenas devem percorrer uma série de outros órgãos dos poderes Executivo e Judiciário em busca de respostas a suas reivindicações.

Alto lá: o que Sepé Tiaraju diria nos dias de hoje

Texto em memória de Sepé Tiaraju, lembrado no 7 de fevereiro e eternizado pelos Guarani por sua luta em defesa da Terra e de todos os ambientes de vidas físicas e espirituais

Por Roberto Liebgott, do Cimi Regional Sul

Alto lá, genocidas, vocês têm as mãos sujas do sangue indígena, assim como tiveram os seus cruéis antepassados.

Alto lá, gerenciadores de um Estado nefasto, construído sobre os corpos dos originários filhos e filhas da Mãe Terra.

Alto lá, sistema que oprime, marginaliza e desumaniza indígenas, quilombolas, pobres, pretos e pretas deste Continente Ameríndio.

Alto lá, racistas e escravagistas, vocês obtêm suas riquezas roubando as forças vitais de homens e mulheres empobrecidos e vulnerabilizados.

Alto lá, governos ladinos, que prometem a justiça e o direito, mas traem os povos em função dos acordos com as elites criminosas.

Alto lá, políticos que se elegem jurando o Bem Comum, mas exercem seus mandatos amarrando-se aos interesses dos exploradores.

Alto lá, aqueles pastores, padres e bispos que desenvangelizam, porque tornaram seus púlpitos e templos em balcões de negócios.

Alto lá, capitães do mato, carne de minha carne, sangue de meu sangue, pele de minha pele, vocês traem nossos povos em troca de uma moeda.

Alto lá, togados do judiciário, vocês vulgarizaram as leis a serviço dos opressores, vinculando-se a eles pelas mordomias e privilégios.

Alto lá, ruralistas, fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, marginais do ambiente, matadores e devastadores de todas as formas de vida, em especial dos povos originários das Américas e da África.

Alto lá, saqueadores da Mãe Terra, fonte de vida e esperança, ela que é coletiva e comunitária, semente e fruto, partilha e comunhão, é o chão nosso de cada dia.

Alto lá, usurpadores de direitos, digo-lhes que os povos seguirão lutando em defesa da Constituição, pela demarcação das terras e territórios, dizendo não ao marco temporal – a tese dos genocidas.

 

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