Encontro Nacional de Lideranças Indígenas: diálogos que unem a resistência e a luta por direitos
O Encontro segue o compromisso estabelecido há 50 anos na primeira assembleia do Cimi junto às lideranças indígenas, reiterando a importância de sentar junto aos povos, ouvir as realidades e dialogar para o enfrentamento dos desafios
Lideranças indígenas de diversos povos e regiões do país se reuniram, nos dias 20 e 21 de fevereiro, no Centro de Formação Vicente Cañas, situado em Luziânia (GO), para compartilhar experiências, delinear estratégias de enfrentamento diante dos desafios que se impõem às comunidades tradicionais e fortalecer a luta pela demarcação de terras e pelos direitos indígenas.
O Encontro Nacional de Lideranças Indígenas reuniu representantes dos seguintes povos: Nawa e Jamamadi (AC); Guarasungwe e Karipuna (RO); Mura (AM); Wapichana e Macuxi (RR); Tembé/Tenetehar (PA); Tremembé, Akroá-Gamella e Gavião/Pyhcop Catije (MA); Tapirapé/Apyawa (MT); Guarani e Kaiowá, Terena e Kinikinau (MS); Anacé (CE); Jeripankó (AL); Pataxó Hã-Hã-Hãe (BA); Kaingang e Avá-Guarani (PR); Krahô (TO).
Durante o evento, as lideranças indígenas destacaram diversas questões cruciais que refletem a complexidade das realidades vivenciadas pelos povos originários. Entre elas, ressaltaram a histórica luta pela demarcação de terras, a persistente violência contra as comunidades tradicionais e a firme resistência diante dos projetos legislativos que representam ameaças aos seus direitos constitucionais. Além disso, enfatizaram a urgência de ações concretas por parte das autoridades para resolver problemas que persistem ao longo de décadas.
Luis Ventura, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), destacou a importância do encontro como um espaço de diálogo e resistência, a exemplo da primeira assembleia do Cimi junto as lideranças indígenas, em 1974, em Diamantino, no Mato Grosso. “Há 50 anos, a primeira assembleia marcou muito o Cimi e sua forma de atuar, que é essa aqui: sentar junto com os povos indígenas, ouvir as realidades e dialogar, para pensarmos juntos como enfrentar esses desafios”, lembrou.
O secretário do Cimi ainda ressaltou a necessidade de fortalecer a articulação entre os povos indígenas e de pensar em estratégias de enfrentamento para o contexto que está posto. “Os povos indígenas vêm enfrentando uma luta secular, de 500 anos, mas, nos últimos anos, enfrentamos uma luta muito difícil. Por isso, a ideia é sair daqui fortalecidos, com ações concretas”, frisou.
Resistência indígena
A violência e a perseguição sofridas pelos indígenas foram temas recorrentes nas falas das lideranças, como ressaltado pelo cacique Fábio Titiá, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, que lamentou o assassinato de Nega Pataxó, no dia 21 de janeiro, e exigiu justiça e proteção para os povos originários e seus territórios.
“A violência que tem acontecido tanto na nossa aldeia como em outras comunidades indígenas é inaceitável. Eu aproveito essa oportunidade para fazer um apelo às autoridades do nosso país, que tenham cuidado com movimentos onde o Estado, através das polícias, está envolvido nos assassinatos do nosso povo. Faço o apelo para que o nosso governo seja imparcial, que o nosso governo não procure ter lado, que o nosso setor de segurança pública esteja para fazer a lei acontecer, sem se omitir e sem fortalecer esse grupo miliciano que tira a vida das nossas lideranças, dos nossos jovens e da nossa comunidade”, pediu Fábio Titiá.
Simão Guarani Kaiowá, da Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, ressaltou a persistência histórica das violações enfrentadas pelas comunidades tradicionais e destacou a importância de implementar ações concretas para superar esses desafios – a começar pela demarcação das terras indígenas.
“O que a gente está enfrentando hoje é o que a gente vem enfrentando há décadas: sem demarcação, falta de atendimento médico, perdendo a nossa juventude e também um abandono total na educação. E, hoje, a gente está perdendo também o nosso direito no Congresso Nacional. É projeto de lei um em cima do outro, em cima do povo, em cima do nosso direito de ser indígena do Brasil. A nossa situação está bem precária, perseguidos pela segurança do Estado, sendo mortos por pistoleiros, e a gente precisa achar a solução para o nosso povo. A gente não quer mais sofrer violência, a gente quer que eles resolvam a nossa situação e, se não houver boa vontade, o derramamento de sangue vai continuar acontecendo”, alertou Simão.
Outra voz que ecoou com força no encontro foi a de Aurea Anacé, liderança e conselheira de saúde do povo Anacé e representante da Articulação das Mulheres Anacé (AMA), no Ceará, que denunciou os impactos devastadores dos empreendimentos que avançam sobre os territórios indígenas ignorando a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece o direito de os povos indígenas serem consultados, causando danos irreparáveis ao meio ambiente e às comunidades locais.
“As cacimbas estão ficando secas por conta desses empreendimentos que vêm avançando, tirando água dos nossos rios e das nossas lagoas. A gente tem um governo que deveria estar trabalhando e olhando mais para o Ceará e para o povo Anacé, da terra tradicional, porque é lá onde vários empreendimentos estão: empresas eólicas, de hidrogênio verde e minerações, que querem passar por dentro do nosso território. É muito difícil estar dentro de um território onde somos violados”, lembrou Aurea Anacé.
Edinho Macuxi, coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, por sua vez, destacou os desafios enfrentados pelos povos indígenas no atual cenário político, marcado por retrocessos herdados de governos anteriores e por ataques do Congresso Federal aos direitos originários garantidos pela Constituição.
“O Brasil segue desrespeitando e causando grande dano contra a vida dos povos indígenas. Em 2023, vimos no Congresso o interesse da bancada ruralista de forma disparada no Projeto de Lei nº 490/2007, aprovado na Câmara dos Deputados, e, depois, no PL nº 2.903/2023, aprovado no Senado Federal. Agora, com a lei nº 14.701/2023, retorna a discussão sobre o marco temporal, mesmo que o Supremo tenha declarado a inconstitucionalidade dessa tese”, pontuou Edinho Macuxi.
Já Marcilene Gavião e Rosa Guarasungwe trouxeram relatos contundentes sobre a invasão de terras e a destruição ambiental que afetam seus respectivos povos, evidenciando a carência de medidas efetivas para garantir a segurança e o bem-estar das comunidades indígenas.
“Estão ameaçando nossa comunidade. As denúncias já foram feitas no Ministério Público, mas nenhuma medida foi tomada e somos nós, da base, nós, que vivemos bem de perto, que temos que fazer algo que possa impedir a entrada deles no nosso território”, frisou Marcilene Gavião, liderança da TI Governador, Maranhão.
“O povo Guarasungwe é um daqueles que ainda estão lutando por demarcação de seu território tradicional, que estão nas mãos de invasores. Assim como os Guarasungwe, nós temos os Puruborá, os Migueleno, Cujubim, Wayoro e Cassupá”, explicou Rosa Guarasungwe, de Rondônia.
A liderança destacou que, há um ano, uma decisão judicial numa ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF) determinou uma série de medidas em relação ao seu povo. Entre elas, a principal era a demarcação do território. Ele enfatizou que estão há 12 anos lutando pela demarcação territorial, por uma educação diferenciada, por melhorias no atendimento à saúde e pelo reconhecimento étnico na certidão de nascimento para aqueles que não possuíam o sobrenome do povo indígena, tendo feito várias manifestações junto aos órgãos competentes ao longo desse período para andamento dos temas citados.
Rosa Guarasungwe também compartilhou que o território tradicional do povo Guarasungwe está atualmente sendo utilizado para o cultivo de soja, resultando na destruição do cemitério ancestral da comunidade. Nesse local, muitas urnas funerárias foram removidas e lançadas no rio, um ato de profundo desrespeito. Ela enfatizou a importância vital desse cemitério sagrado, onde repousam os restos mortais de seus antepassados, como uma parte fundamental de suas raízes e identidade cultural.
Articulação e mobilização
Diversas lideranças enfatizaram a necessidade de uma maior organização e articulação. Aurea Anacé sublinhou a importância de envolver lideranças locais em eventos como o Acampamento Terra Livre (ATL), com o intuito de ampliar a representatividade e fortalecer as reivindicações territoriais.
“Que as organizações deem força para que possamos debater mais sobre a problemática dos territórios do Brasil inteiro. Então, que seja dada a oportunidade para que a gente tenha mais um local de fala. Temos que ter mais essa abertura para que a gente possa reivindicar e dizer o que está acontecendo nos territórios”, cobrou Aurea Anacé.
Edinho Macuxi frisou a importância da união e da pressão política para avançar nas pautas indígenas, destacando a mobilização prevista para o ATL 2024 como um momento crucial nesse contexto. Ele destaca ainda a necessidade de eleger representantes que defendam suas causas em todas as esferas do governo, municipal, estadual e federal. Sua fala ecoa o chamado por avanços na demarcação de territórios indígenas e na proteção dos direitos fundamentais, destacando a preocupação com propostas legislativas que possam ameaçar essas conquistas.
“O cenário político vai demandar muito a nossa participação e o nosso envolvimento, de poder eleger os nossos representantes para poder ocupar os espaços. É o momento da gente se fortalecer enquanto movimento indígena, para continuar avançando com a nossa pauta e, principalmente, garantir a demarcação dos territórios indígenas e também assegurar os nossos direitos em relação aos artigos 231 e 232, que não podem ser mudados por esse projeto de lei que está em vigor”, frisou Edinho Macuxi.
Perspectivas e desafios futuros
No encontro, as lideranças expressaram ainda suas esperanças e desafios para o futuro, destacando a necessidade de ações concretas por parte do governo para garantir a demarcação dos territórios tradicionais e o respeito aos direitos dos povos originários.
Rosa Guarasungwe expressou suas expectativas em relação ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ela enfatizou a esperança de que, com a presença de parentes indígenas nessas instituições, as demandas que estão estagnadas há anos possam avançar.
“Esperamos que o governo se sensibilize e faça o seu papel. O seu papel de demarcar os territórios, de devolver o que é do povo indígena. É o mínimo depois de tanto tempo em que os povos foram privados de estar dentro do seu espaço. É um direito sagrado, é um direito originário. Os povos foram brutalmente violentados, violados em todos os aspectos. O Estado brasileiro deve isso. Não é um favor, mas sim um direito originário que foi retirado. E é por esse direito que a gente sempre luta”, concluiu.
Marcilene Gavião. Foto: Tiago Miotto/CimiMarcilene Gavião também ressaltou a importância da resistência e a conexão entre o território tradicional e a vida dos povos indígenas: “é do território tradicional que vem as outras abundâncias da própria vida dos povos indígenas”.
O Encontro Nacional de Lideranças Indígenas foi um espaço de resistência, diálogo e esperança. As vozes das lideranças indígenas ecoaram em uníssono, clamando por justiça, respeito e reconhecimento de seus direitos ancestrais. Diante dos desafios presentes, fica o chamado às ações concretas por parte do Estado brasileiro para garantir a proteção e o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas.