Feminismo comunitário: um caminho para a descolonização dos corpos e da natureza
Somente através de ações despatriarcais, decoloniais e antiliberais, guiadas pela Q’amasa Warminanaka (força feminina), podemos alcançar o equilíbrio do corpo-comunidade, disse Julieta Paredes, precursora do feminismo comunitário
O patriarcado é um sistema de discriminação e violência que oprime tanto a humanidade quanto a natureza, mas, historicamente, sua base de construção recai sobre os corpos das mulheres. A própria colonização – outro processo opressor – acaba sendo reproduzida nas comunidades, inclusive as indígenas, e contribui para a opressão e a violência contra as mulheres. Daí a necessidade da disseminação do feminismo comunitário, pois a luta não é apenas contra o machismo.
A fala acima é defendida pela precursora do feminismo comunitário, Julieta Paredes Carvajal, do povo Aimará, da Bolívia, que é escritora e ativista. A militante esteve presente na XXV Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no dia 28 de setembro, e fez observações esclarecedoras acerca do movimento que nasceu de uma prática social.
“Eu venho de uma organização, de um movimento social continental que se chama feminismo comunitário, uma prática política das mulheres em toda a Abya Yala [palavra de origem kuna que quer dizer América]”, explica.
Esse movimento político, protagonizado por mulheres indígenas, nasceu em meio ao processo da assembleia constituinte do Estado Plurinacional da Bolívia, em 2006. Julieta Paredes, juntamente com outras mulheres bolivianas, criaram o conceito do feminismo comunitário, que parte do princípio da construção de direitos coletivos a partir da identidade coletiva e ancestral, unindo as comunidades em toda a Abya Yala, e promovendo ações despatriarcais, decoloniais e antiliberais.
“Nós confrontamos o mundo colonizador, mas a descolonização para nossos parentes homens não toca nos seus privilégios, que o sistema patriarcal dá a eles em nossos territórios. Essa descolonização não vai até onde precisamos. Nós nos posicionamos em nossos territórios diante do que nossos irmãos homens estão fazendo. Então, é necessário que nossos irmãos homens revisem os privilégios que o sistema patriarcal dá. Que olhem com olhos de igualdade, de equilíbrio e de harmonia. Nós, como feministas comunitárias, pedimos a todas e a todos vocês essa revisão dentro de suas atitudes”, pontuou.
A ativista salientou que o feminismo, por si só, não aborda as experiências das mulheres indígenas e que a descolonização, que envolve a valorização dos povos originários, é ponto de chegada apenas para o homem indígena, mas, “para nós, feministas comunitárias, é um ponto de partida e não de chegada, por isso ainda é preciso descolonizar em profundidade. […] Não é fácil criar nossos próprios conceitos em um mundo colonizado, pois, nós, povos originários, não fomos privados da capacidade de conceber nossas próprias ideias”, esclarece.
Julieta Paredes ressalta a urgência da descolonização por inteiro e explica que o processo “descolonial” visa desmantelar práticas opressoras profundamente enraizadas no sistema colonial, além de reconstruir termos sob a perspectiva dos povos originários. Ela afirma que um dos objetivos do movimento é desmistificar o conceito de Estado, uma vez que a criação do Estado de poder anulou o conceito de Estado do povo e sua própria percepção.
“Dentro do feminismo comunitário de Abya Yala, falamos sobre ‘viver bem’, em sintonia com o paradigma do ‘Bem Viver’ indígena, que significa viver em harmonia com a vida. Através de nossas organizações, começamos lutando para defender a vida e, em seguida, decidimos como queremos que essa vida seja. Isso não é apenas uma simples diretriz, mas um conceito político. Eu estive com nossos povos na luta, na construção da esperança do ‘Suma Qamaña’, que é o ‘Viver Bem’, e que também representa a presença e a força das mulheres”, ela conclui.