Na grande São Paulo, hortas cultivadas por indígenas Pankararé dividem espaço com torres de alta voltagem
A chuva na grande São Paulo foi bem-vinda pelos Pankararé de Osasco: as plantas da roça que cultivam transbordam seus diferentes tons de verde. Os pés de alface já despontam da terra. Os tomates cereja começam a ficar vermelhos. Por todo o espaço, cercado por muros acinzentados, vê-se verduras, hortaliças, ervas medicinais, e as grandes estruturas de metal que sustentam fios de alta tensão.
A cena parece retirada de um filme, onde tudo fora dos muros é perigoso demais para a vida humana. Mas não é ficção. A forma encontrada pelo povo Pankararé em contexto urbano para garantir seu sustento foi ocupar e cultivar a terra entre as torres de transmissão de energia elétrica. Isolado das outras casas, o terreno costuma ficar vazio. Qualquer tipo de construção ou atividade na área corre sérios riscos.
A área, chamada “faixa de segurança”, serve para evitar risco às pessoas que vivem perto das torres. Caso haja um rompimento ou queda de um dos fios de energia, aqueles que estiverem ali presentes correm o risco de sofrerem choques elétricos severos, capazes de causar perda de membros, danos neurológicos e até a morte. Além disso, o terreno sofre risco de incêndio.
A faixa é ocupada pelos indígenas desde 2009, e inicialmente contava com apoio da prefeitura de Osasco. Nos primeiros anos, os agricultores indígenas relatam que recebiam um auxílio de R$600. Nos últimos governos, entretanto, o auxílio foi cortado. Ainda assim, os indígenas se mantêm firmes no trabalho. O espaço fica cada vez menos cinza, conforme a horta fica mais verde, amarela, laranja, vermelha. A vida, das plantas e dos povos originários, persiste.
Atualmente, a prefeitura cede a eles uma torneira com água para a irrigação das plantas, e mais nada. O único banheiro disponível para todos fica no início do terreno, e os próprios indígenas construíram os pequenos barracos que usam para guardar as ferramentas de trabalho e ter um breve repouso.
Vários indígenas dividem o espaço, cada um ficando com a quantidade de canteiros que consegue cultivar. Ao lado do portão de entrada, a presença de Genivaldo Pankararé se faz de forma silenciosa, mas constante. Todas as manhãs, há 17 anos, ele trabalha no trecho sob seu cuidado. O tom de voz baixo fala apenas dos planos para sua parte da horta.
O mais recente é uma cobertura para proteger as plantas das instabilidades do clima. Uma dúzia de bastões de madeira foram fincados na terra, criando colunas improvisadas. No entanto, o esqueleto da estrutura está há algum tempo incompleto, esperando o resto do material necessário para ser finalizado.
Quem conta a história da horta urbana é dona Enaide Pankararé, de 65 anos. Agricultora baiana da Terra Indígena Brejo do Burgo, é conhecida tanto pela língua afiada como pela ferocidade na luta pelos direitos do seu povo. “Quando começamos, eu trazia a terra e o adubo com um balde, que carregava em cima da cabeça. Nós mesmos trouxemos as mudas, o adubo, a terra”.
Um pequeno pano vermelho, que serve como tapete, demarca a entrada do barraco onde dona Enaide guarda suas ferramentas de trabalho. Com a temperatura em Osasco chegando aos 10ºC, o quadro pendurado ali, de uma praia ao pôr do sol, denuncia a saudade do calor. A diminuta construção acaba servindo também como abrigo, seja da chuva e do frio, seja do sol.
É comum que a liderança chegue às 5h30 para trabalhar. Com o valor recebido pela venda das verduras, ela complementa a renda de um salário mínimo, garantida pelo benefício assistencial ao idoso. Ainda que suas digitais já estejam apagadas pelo trabalho árduo, ela se mantém firme. “Meu pai foi morto por fazendeiros na frente do meu irmão. Depois de toda a luta dele, acham que não vou lutar também? Só vão me tirar daqui quando acabar o meu último pé de alface”.
O pai da indígena foi Ângelo Pankararé, cacique do povo Pankararé assassinado em 26 de dezembro de 1979, na TI Brejo dos Burgos. Ele lutava contra a tutela ilegal das terras indígenas feita por órgãos do estado da Bahia, contra a invasão dos latifundiários e contra a repressão policial às manifestações culturais do povo Pankararé, em especial o toré. Os autores do crime nunca foram presos.
Apesar da memória dolorosa da perda do pai, ela carrega sempre com carinho as lembranças da sua aldeia. “O trabalho que faço por aqui é o mesmo que na Bahia, mas lá era milho e feijão, e aqui verduras. Eu fui criada indígena, na minha aldeia, e com 65 anos sei de tudo. Quando chegar aos 80 anos, vou saber mais que o próprio diabo!”, zomba.
Se a vida na faixa de segurança persiste, é pelo suor das próprias lideranças. Ainda assim, dona Enaide e seu povo não exigem muito: apenas que respeitem os direitos conquistados enquanto indígenas, e o necessário para que possam trabalhar e viver na grande São Paulo.