01/08/2023

A igreja e a defesa dos povos indígenas

Em entrevista exclusiva ao Porantim, Dom Leonardo Steiner, o primeiro cardeal da Amazônia, destaca o elo entre a Igreja Católica e a causa indígena

Dom Leonardo Steiner. Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Por Hellen Loures – Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 457 DO JORNAL PORANTIM

Neste contexto de desafios imensos e responsabilidades compartilhadas, emerge uma voz que transcende as fronteiras eclesiásticas: a de Dom Leonardo Ulrich Steiner, Cardeal e Arcebispo de Manaus, presidente do Regional Norte I da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e defensor dos direitos dos povos indígenas no Brasil.

Em entrevista exclusiva ao Porantim, o primeiro cardeal da Amazônia destaca o elo entre a Igreja Católica e a causa indígena, descrevendo-a como uma luta histórica. Uma defesa que, segundo ele, não se limita às fronteiras religiosas, mas que engloba ações práticas, como a de missionárias e missionários que há anos estão lado a lado com os povos indígenas, enfrentando muitas vezes acusações e injustiças. Nesse sentido, Steiner sublinha o papel do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) por sua assistência pastoral, mas, principalmente, por seu compromisso incansável com a defesa dos direitos indígenas.

Em suas declarações, Dom Leonardo fala ainda de sua nomeação como Arcebispo de Manaus, que o fez sentir como um missionário enviado a uma Igreja em constante movimento. Para ele, a Amazônia é uma região de atuação missionária, uma Igreja que se lança às realidades, sendo guiada pela participação ativa dos leigos e leigas. A Igreja, segundo o Cardeal, deve ser um “fermento na massa”, testemunhando os valores do Reino e ao lado dos vulneráveis.

O destaque principal do relato de Dom Leonardo recai sobre a questão vital das terras indígenas. Ele criticou a falta de senso histórico e a ganância presentes na negação dos direitos dos povos indígenas, enfatizando que a aceitação do marco temporal é um passo para trás, ameaçando a sobrevivência e a cultura desses povos.

Ele expressou ainda a esperança na mobilização da sociedade civil em defesa dos indígenas e suas terras, à medida que o Brasil se prepara para sediar a COP-30, em 2025. Para ele, a conferência representa uma oportunidade única para trazer à luz a destruição na Amazônia e destacar a importância vital dos povos originários na preservação do meio ambiente.

Nas palavras de Dom Leonardo, a esperança permanece como guia. Mesmo diante de desafios aparentemente intransponíveis, o cardeal – citando Dom Pedro Casaldáliga – reafirma que as causas importantes não devem ser abandonadas. Suas palavras ressoam como um chamado à ação, para que todos, unidos, possam trabalhar em prol dos povos indígenas, da Amazônia e do planeta.

Porantim – A defesa dos povos indígenas é uma bandeira histórica da Igreja Católica. Nos últimos anos, como tem sido o trabalho realizado pela Igreja junto a essas comunidades?

Dom Leonardo Steiner – Mais que uma bandeira é uma causa. O serviço que a Igreja tem oferecido, através de seus missionários e missionárias do Conselho Indigenista Missionário, Cimi, é incalculável. Admiro e rezo por esses irmãos e irmãs. A presença da Igreja juntos aos povos nas aldeias, nas organizações é tão extraordinária que tem gerado acusações, injustiças. Várias organizações indígenas são frutos da ação da presença da Igreja através de seus missionários/as. Sou testemunha da luta do Cimi em relação à causa indígenas: articulações junto ao Congresso Nacional, diálogo com o Supremo Tribunal Federal e quando possível junto ao Executivo. A evangelização, a apresentação do Evangelho, passa hoje pelo respeito à cultura, e expressões religiosas arquetípicas. O apreço que os indígenas tem pelo Cimi, pela Igreja nos anima a estar com eles.

Dom Leonardo Steiner durante a abertura da Campanha da Fraternidade em 2018. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Porantim – Com o seu cardinalato, como espera participar da construção de uma Igreja missionaria – que não exclui, mas que acolhe, que dialoga e escuta? Seria essa “uma Igreja em Saída”, que é tanto pedida pelo Papa Francisco?

Dom Leonardo Steiner – Ao ser nomeado para Manaus, me senti um enviado, um missionário. A Amazônia, a Igreja que está na Amazônia é uma Igreja missionária e estar nela inserida é a oportunidade de ser missionário. É uma Igreja em saída, pois busca levar em consideração todas as realidades onde se encontra. Uma Igreja em saída, pois é a extraordinária participação dos leigos e leigas nas pastorais sociais, nas lideranças das comunidades, nos ministérios não ordenados. Uma Igreja encarnada e libertadora como nos ensina o Documento de Santarém de 1972 e o Documento de Santarém 50 anos depois. Uma Igreja sinodal. Antes que houvesse a insistência de uma Igreja sinodal, na Amazônia, a dinâmica eclesial era sinodal: as comunidades com seus representantes participando das Assembleias das dioceses e prelazias, das Assembleias do Regional. Uma responsabilização de todo o Povo de Deus, na missão de anunciar o novo Reino: leigas e leigos, vida consagrada, diáconos, presbíteros, bispos. Um Povo que caminha! É graça participar de uma Igreja que é fermento na massa, que testemunha vida do Reino, que sabe estar ao lado dos necessitados.

Porantim – Como o Senhor avalia a escolha de Belém, no Pará, para sediar a 30ª Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-30), em 2025?

Dom Leonardo Steiner – Será uma oportunidade para visibilizar a realidade do meio ambiente no Brasil, especialmente a Amazônia tão depredada e destruída. Mas também a oportunidade de visibilizar os povos originários que habitam nessas terras. A população mundial pouco ou nada sabe dos povos assim denominados isolados. O perigo que esses irmãos e irmãs correm com a destruição da Amazônia é assustador. Será oportunidade de demonstrar a importância para as outras regiões do Brasil e para o mundo de uma Amazônia de pé, com suas culturas cuidadas e as águas sem mercúrio. Uma oportunidade de visibilizar como os povos originários mantém a Amazônia preservada para o bem da humanidade, para o bem do Brasil. Talvez ajude a lançar o grito: tirem as mãos da Amazônia! As mãos da ganância, da depredação, da dominação, da destruição, do dinheiro, do mercado. Oportunidade de visibilizar a violência que vai crescendo de modo assustador na região. Uma violência que veio para a Amazônia, mas que não é própria dos nossos povos, nas nossas culturas. Será uma oportunidade de retomarmos a Laudato Sí, a Fratelli Tutti e Querida Amazônia, de Papa Francisco. Apesar de não vermos horizontes abertos pelas COP, é sempre uma oportunidade de crescer o número das pessoas que ajudam a construir um mundo melhor, ajudam a cuidar da Casa Comum.

Dom Leonardo Steiner e Dom Roque Paloschi, no lançamento do Relatório Violência Contra os Povos In-dígenas, em 2015 – Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Porantim – Conte-nos sobre a avaliação da Igreja a respeito da aprovação do PL 490 – que, entre outras coisas, inviabiliza demarcação de terras indígenas e ameaça territórios já homologados – e do pedido de vista do julgamento do marco temporal.

Dom Leonardo Steiner – A questão da demarcação das terras é essencial para a vida dos indígenas e seus povos. O que podemos perceber é que um bom número de deputados do Congresso Nacional é contra os indígenas, que falta senso histórico, que existe uma ganância em relação ao que é por direitos dos indígenas; mais grave é a incapacidade de justiça para com os primeiros habitantes das terras que recebeu o nome de Brasil. A aceitação do marco temporal significa morte e destruição dos indígenas. Todo esforço de quem assumiu a causa indígenas é de continuar o debate para iluminar a questão e acompanhar no Supremo o andamento do julgamento. É alentador que os indígenas têm discutido, debatido na sociedade e se manifestado a respeito da necessidade da não aprovação do marco temporal. Ajuda muito o movimento na sociedade, que ajuda na elucidação da questão. A esperança sempre nos guia. Dom Pedro Casaldáliga dizia que não podemos perder as causas, mesmo que esteja perdida. Essa causa não está perdida. Ela nos anima a caminhar e lutar.

Porantim – Como questionar as estruturas que violam os direitos dos povos indígenas, em especial as que envolvem o poder Legislativo, Executivo e Judiciário?

Dom Leonardo Steiner – Através da assessoria jurídica, o Cimi tem acompanhado os processos no Supremos Tribunal e junto ao Congresso Nacional quando da apresentação e votação dos projetos que destroem os povos indígenas, pois destroem a sua Casa, o seu lugar de viver. Quando da possibilidade de diálogo com o Executivo, houve uma busca contínua na defesa dos povos indígenas. Porque o Cimi é caluniado, atacado? Porque assumiu a casa indígenas como causa evangélica, isto é, a defesa da vida, a defesa daqueles que a sociedade marginalizou. Juntos com as organizações indígenas, acompanha os projetos e os processos. É extraordinário o que se tem feito!

 

Histórico

No cenário histórico da Igreja Católica, o ano de 2022 será lembrado como um marco notável. Pela primeira vez na trajetória da fé, um bispo da Amazônia ascende ao Colégio Cardinalício. Dom Leonardo Ulrich Steiner passa a fazer parte do Sacro Colégio, que é composto por 229 integrantes, também conhecidos como Príncipes da Igreja. Significa dizer que, além de votar na eleição de um novo papa, caso seja necessário, Steiner integrará os “dicastérios” (que vem do grego e significa ‘juiz’), nome dado para os departamentos do governo da igreja que compõem a Cúria Romana.

Arcebispo de Manaus desde 2019, Dom Leonardo assume a posição de cardeal por um anúncio solene do Papa Francisco, proferido na majestosa Basílica de São Pedro, em Roma. Este feito histórico, que o tornou o primeiro “Cardeal da Amazônia”, lança luz sobre a relevância da região amazônica.

Em 2020, após o Sínodo da Amazônia, o Papa Francisco redigiu a exortação apostólica “Querida Amazônia”. Nesse documento, ele expressou sua aspiração por uma região de equidade social, onde a fé cristã se amalgama às culturas locais e onde a preservação ecológica é central, sem que os missionários se envergonhem de seu compromisso com Jesus Cristo.

A trajetória de Dom Leonardo traz consigo uma rica bagagem intelectual e pastoral. Natural de Forquilhinha (SC), ele trilhou o caminho da filosofia e teologia em Petrópolis (RJ), entre 1973 e 1978, ano de sua ordenação sacerdotal por seu primo Paulo Evaristo Arns.

Steiner já seguiu também as trilhas da docência, tendo lecionado após conquistar mestrado e doutorado em Roma, na década de 1990. Seu retorno ao Brasil, nos anos subsequentes, trouxe-o ao Paraná, onde partilhou sua sabedoria filosófica com os estudantes locais.

Sua jornada episcopal teve início em 2005, quando o Papa João Paulo II o nomeou bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT). Em maio de 2011, foi eleito secretário-geral da CNBB e, no mesmo ano, sua nomeação como bispo auxiliar da Arquidiocese de Brasília pelo Papa Bento XVI. Já em 27 de novembro de 2019, Dom Leonardo foi nomeado pelo Papa Francisco como arcebispo da Arquidiocese de Manaus.

Assim, o nome de Dom Leonardo Ulrich Steiner inscreve-se na história eclesiástica como o pioneiro Cardeal da Amazônia, um defensor dos valores da fé e do compromisso com as questões sociais e ambientais que atravessam o coração dessa região rica e complexa.

 

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