30/07/2023

Marco temporal: STF adia decisão e lideranças indígenas reafirmam que “direito à terra é inegociável”

Ministro Alexandre de Moraes se posiciona a favor dos povos indígenas, mas propõe “meio termo”; ministro André Mendonça prolonga processo com pedido de vista; lideranças se mantem mobilizadas pela garantia de seus direitos constitucionais

Registro dos indígenas durante o julgamento sobre marco temporal, no STF, dia 23 julho de 2023. Foto: Hellen Loures/Cimi

Por Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 456 DO JORNAL PORANTIM

No dia 7 de junho, mais um passo foi dado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento que avalia a legalidade da tese do marco temporal: o ministro Alexandre de Moraes, o terceiro membro da corte a votar nesse processo, se posicionou contrário a tese do marco temporal, que usa a data de promulgação da Constituição (1988) como parâmetro para definir as demarcações de terras dos povos originários do País.

Apesar do voto favorável aos povos indígenas, Moraes apresentou novos elementos para análise e considerações que buscam um “meio termo” em prol daqueles que possuem propriedades sobrepostas às terras indígenas, o que motivou o ministro André Mendonça a pedir vista do processo, interrompendo novamente o andamento do caso. Agora, o STF tem até 90 dias para colocar novamente o caso na pauta de votação, mas Mendonça assegurou que apresentará seu voto antes do prazo estabelecido pelo regimento da Corte.

Em Brasília, para o julgamento, cerca de dois mil indígenas acampados na Praça da Cidadania reforçavam que o direito à terra é inegociável, que a história dos povos originários no Brasil não começa em 88, menos ainda seus direitos. Durante a sessão no STF, uma delegação de lideranças indígenas, entre elas do povo Xokleng, que está no centro da discussão do caso, acompanhou diretamente do Plenário da suprema corte. Enquanto isso, indígenas e apoiadores da causa acompanharam o julgamento em vigília na Esplanada dos Ministérios. Nos territórios, os povos indígenas das cinco regiões do Brasil se mobilizavam pelo fim da tese do marco temporal, contra as ameaças sofridas pela Câmara dos Deputados e em busca da garantia de seus direitos constitucionais.

Em uma coletiva de imprensa realizada do próprio acampamento, Kleber Karipuna, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disse que os indígenas não se deslocaram “só para acompanhar o julgamento”.

“Viemos a Brasília para trazer o nosso posicionamento contrário ao marco temporal, o nosso repúdio, a nossa força ao Supremo Tribunal Federal. Que os ministros e ministras do Supremo votem, à luz da Constituição brasileira, à luz dos direitos originários, não aprovando uma tese totalmente inconstitucional, que é o marco temporal”, afirmou Kleber.

Aproximadamente 2 mil indígenas desceram a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para acompanhar a retomada do julgamento. Foto: Marina Oliveira /Cimi

“A gente sabe que, antes da chegada dos invasores em nossos país, os povos originários já estavam aqui, já existia povos indígena nessa terra, que depois foi chamada de Brasil. Então, não existe tese de marco temporal para nós, é uma inconstitucionalidade e, por isso, chamamos esse acampamento e chamaremos tantos quantos acampamentos contra o marco temporal forem necessários, para fazer força e frente à aprovação dessa tese”, completou o coordenador.

 No acampamento da Mobilização Nacional Contra o Marco Temporal, debates sobre questões territoriais, garantia de direitos e proposições que tramitam nos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. A programação contou ainda com a realização de plenárias, seminários, análises de conjuntura e atos em apoio aos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.

No palco da tenda principal no segundo dia de acampamento, Cristiane Baré, assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), afirmou que a tese do marco temporal, se aprovada, “vai mexer com toda a nossa vida, com os territórios de todo o Brasil”.

“O marco temporal é uma tese política que vem para barrar as questões de demarcações dos nossos territórios, uma tese trazida pela bancada ruralista, pelo agronegócio, pelos fazendeiros para tentar legalizar a entrada nos territórios indígenas, uma tese de genocídio para as populações indígenas”, disse Cristiane.

A assessora da Coiab reforçou, ainda, a importância de “rechaçar a tese inconstitucional do marco temporal pela vida do nosso povo, do nosso território”. “O território, para nós, não é algo abstrato. Nós somos o território, nós somos as florestas, nós somos o bioma. Um não vive sem o outro. Os seres que vivem nesse território também são seres de importância. É a nossa cosmovisão. Para nós, os rios têm vida, a floresta tem vida, e são esses seres que a gente tem que proteger”, finalizou.

Marco temporal e o PL 490

A mobilização permanente, que une os diversos povos indígenas do Brasil, ganhou ainda mais forças após a indignação e revolta com a aprovação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, no dia 30 de maio, véspera do julgamento do marco temporal no SFT. O PL busca justamente fixar a tese do marco temporal, além de prever outros retrocessos aos direitos constitucionais.

No Plenários da Câmara, Projeto de Lei (PL) 490/2007 é aprovado sobe protestos. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

O Projeto de Lei – agora no Senado Federal sob a numeração PL 2903/2023 – também foi pautado nos trabalhos realizados no acampamento. A proposição legislativa foi aprovada por 283 votos a 155 pela Câmara dos Deputados. O PL tem como finalidade inviabilizar, na prática, a demarcação dos territórios indígenas por meio da aplicação do marco temporal.

Contudo, sua gravidade “vai muito além do marco temporal”, afirmou Eliana Torelly, procuradora da 6ª Câmara do MPF, que enfatizou a necessidade do movimento indígena “ficar bastante vigilante”. Para ela, o projeto aprovado na Câmara não só limita direitos originários por meio do marco temporal, como também retira uma série de outros direitos constitucionalmente garantidos.

A ameaça investida contra o povo Tapayuna, do Mato Grosso, no período da ditadura militar, foi um dos exemplos dos perigos impostos pelo marco temporal. Para Renan Sotto Mayor, Defensor Público Federal que acompanha o caso que envolve o direito territorial deste povo, “o argumento [do marco temporal] é político, não jurídico”.

“O povo Tapayuna, do Mato Grosso, na ditadura militar, foi removido de seu território e colocado compulsoriamente no parque do Xingu. O Estado brasileiro praticou um crime, diversos indígenas morreram, houve quase um etnocídio durante a ditadura militar e o povo Tapayuna e diversos outros povos sofreram”, explicou.

“Em 1988, o povo Tapayuna não estava no território deles. Hoje tramita no Mato Grosso uma ação possessória para demarcar o território Tapayuna. Se a tese do marco temporal for aprovada, o povo Tapayuna sequer vai poder estar em seu território, um território que foi retirado pelo Estado na ditadura militar”, completou.

Antônio Eduardo Cerqueira, secretário executivo do Cimi, durante audiência pública sobre o marco temporal na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), do Senado Federal, falou sobre a preocupação com o andamento do PL 2903/2023. “É de se estranhar que o Legislativo brasileiro venha conceber um projeto de lei, o PL 2903, antigo PL 490, em que retoma toda essa discussão do extermínio dos povos indígenas em pleno século 21, quando mundo todo se mobiliza para salvar o planeta. E é de conhecimento de todos que a demarcação dos territórios indígenas não protege só os próprios indígenas, mas também toda a população, a natureza, toda a biodiversidade. Em pleno século 21, vemos uma elite agrária retrograda se articular e pensar de uma forma não afirmativa ou construtiva, mas destrutiva”, se posiciona.

Votação no STF

Após o julgamento do dia 7 de junho, no Supremo Tribunal Federal, o processo que avalia a tese do marco temporal somou três votos: dois contrários e um a favor da tese. O voto favorável ao marco temporal foi proferido em 2021, pelo ministro Nunes Marques. Já o primeiro voto favorável aos povos indígenas foi dado pelo ministro Edson Fachin, no dia 9 de setembro de 2021, quando o magistrado rechaçou a tese do marco temporal e reafirmou o caráter originário dos direitos constitucionais indígenas, que ele caracterizou como cláusulas pétreas. O segundo voto contrário a tese veio do ministro Alexandre de Moraes, no dia 7 de junho 2023. Embora contrário ao marco temporal, Moraes apresentou considerações que buscam um “meio termo” em prol daqueles que possuem propriedades sobrepostas às terras indígenas.

Diante da decisão do Supremo, o Movimento Indígena reafirmou que os direitos indígenas são inegociáveis e que a mobilização contra o marco temporal continua em todo país. “O pedido de vistas feito pelo ministro de Bolsonaro, André de Mendonça, representa a continuidade das violências contra os povos indígenas. Precisamos que esse julgamento seja feito o quanto antes e exigimos que o STF retome a pauta de forma urgente”, afirma o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá.

Mobilização indígena durante a retomada do julgamento do marco temporal, no dia 7 de julho de 2023. Foto: Marina Oliveira /Cimi

O presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Arcebispo de Porto Velho, Rondônia, Dom Roque Paloschi conta que “em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes rechaçou o marco temporal, trouxe toda questão da violência contra as populações indígenas historicamente, lembrando 1865 com a Guerra do Paraguai e a promessa do Imperador, e a necessidade de encontrar um caminho de paz social”, No entanto, Dom Roque, avalia que “não retirar o direito dos povos originários é uma causa indiscutível”.

Histórico

O julgamento do marco temporal estava paralisado há quase dois anos no Supremo Tribunal Federal (STF), desde setembro de 2021, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vista. O placar, desde então, estava empatado em 1×1. À época, Brasília foi palco da maior mobilização nacional indígena pós-Constituinte, com a presença de seis mil indígenas.

Desde dezembro de 2016, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina, tramita na Suprema Corte. Um pouco mais de dois anos após o protocolo do processo, o STF, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral do caso – no dia 22 de fevereiro de 2019. Ou seja, a decisão tomada neste julgamento terá consequência para todos os povos indígenas do país.

De um lado, indígenas e apoiadores da causa lutam pela preservação da flora e da fauna, da água, das florestas, do planeta. Já do outro, ruralistas e setores econômicos interessados na exploração das terras originárias tentam inviabilizar, por meio da falaciosa tese do marco temporal, os direitos constitucionais dos povos indígenas, como o direito ao território.

Vale lembrar que, no Poder Executivo, a tese do marco temporal passou a ser aplicada por meio do Parecer 001 da Advocacia Geral da União (AGU). Publicado em julho de 2017, o Parecer, na prática, inviabiliza e revê demarcações dos territórios originários, mesmo aquelas já concluídas ou em estágio avançado. Ele barrou e anulou inúmeras demarcações de terras tradicionais, motivo pelo qual é conhecido também como “Parecer Antidemarcação”.

A base do Parecer são as condicionantes do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, além da tese do marco temporal. Mesmo após o STF decidir que tais condicionantes só eram obrigatórias para a referida TI, sucessivas tentativas de usar o caso para justificar a aplicação do marco temporal apareceram em outros julgamentos.

Marcha pela revogação do Parecer 001/2017 da AGU, em Brasília. Esse foi um dos muitos momentos da luta dos povos indígenas contra a medida. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Desde a publicação do Parecer 001/2017, ocorrida ainda sob o governo Temer, os povos indígenas vêm lutando por sua anulação. O ministro Edson Fachin suspendeu os efeitos do Parecer da AGU e determinou a suspensão de todas as ações e recursos sobre terras indígenas até que o processo de repercussão geral fosse julgado pelo STF, mas, em contrariedade a definição do Supremo Tribunal Federal, a Justiça Federal chegou a determinar algumas ações de despejo, como no caso da aldeia Novos Guerreiros, situada na Terra Indígena Coroa Vermelha, do povo Pataxó, em Porto Seguro, litoral sul da Bahia.

 

Entenda o caso

Povo Xokleng participa de marcha contra o marco temporal, em Brasília. Foto: Mita Xipaya/Coiab

A tese do marco temporal, considerada inconstitucional por muitos especialistas, está em debate no Supremo Tribunal Federal (STF), exigindo que os povos indígenas comprovem sua posse e ocupação de terras no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. O caso em questão envolve a Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, habitada pelo povo Xokleng, mas a decisão que será tomada servirá como referência para todos os territórios indígenas do país.

A decisão do STF sobre a tese do marco temporal terá implicações significativas para os povos indígenas do Brasil. E, caso a tese seja validada, os povos originários perderão seus direitos que sempre foram garantidos pela Constituição Federal, resultando em uma séria ameaça aos direitos históricos dessas comunidades, que há séculos lutam pela preservação de suas terras e culturas.

Essa tese é defendida por ruralistas, assim como por setores econômicos e políticos interessados na exploração dos territórios indígenas. Contudo, ao adotar essa perspectiva, os defensores do marco temporal ignoram o histórico de violências sofridas pelos indígenas desde o Período Colonial.

Essa abordagem negligencia completamente os crimes cometidos contra os indígenas, incluindo as invasões de terras e grilagem de territórios durante o período da ditadura militar. Durante esse tempo sombrio da história brasileira, os povos indígenas enfrentaram uma série de atrocidades, com suas terras sendo invadidas e usurpadas de maneira ilegal e violenta.

Outro aspecto relevante a ser considerado é o fato de que, até o fim da ditadura militar, os povos indígenas eram tutelados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), assim como pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que deu origem à Funai. Portanto, nesse período, os indígenas não possuíam os meios necessários para reivindicar seus direitos perante a justiça.

É necessário refletir ainda que, após o período sombrio da ditadura militar no país, os indígenas conseguiram assegurar seus direitos por meio dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988. Um dos pontos elencados na Constituição diz que a destinação dos territórios indígenas é de usufruto exclusivo dos povos, sob domínio da União – não do Poder Legislativo ou Judiciário. Mas, apesar das garantias constitucionais, os povos indígenas sofrem com incontáveis ataques contra os direitos originários, assim como ocorreu na época da ditadura.

Portanto, é essencial reconhecer que a luta dos povos indígenas por suas terras e direitos não começou em 1988. A história mostra que eles foram vítimas de uma longa lista de injustiças e violações ao longo dos séculos. Portanto, qualquer tese ou argumento que busque negar essa realidade e restringir os direitos dos povos indígenas é profundamente problemático e questionável.

 

Mobilização continua

Num contexto em que ataques do governo federal ameaçam os direitos indígenas e, no legislativo, projetos e bancadas contrários aos povos indígenas se sobressaem, os olhares e as esperanças de garantir que os direitos constitucionais dos povos originários não sejam desfigurados se voltam ao Supremo Tribunal Federal.

Foto: Bianca Feifel

“Aguardamos o anúncio de uma nova data para a continuidade do julgamento e seguimos firmes na luta”, argumenta Ivo Macuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).

Assim como estiveram nesses últimas dias, mobilizados em todo país contra o marco temporal, os indígenas asseguram que “os direitos indígenas são inegociáveis” e que, portanto, a mobilização nacional contra esta tese genocida e todas as medidas anti-indígenas em trâmite no Congresso Nacional, continua.

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