“Tocar na Banda”: o que será que será dos direitos dos povos indígenas e de suas organizações?
Neste artigo os autores refletem sobre episódios recentes, do Governo Lula, que levantam questionamentos se de fato serão efetivados os direitos dos povos originários
“Tocar na banda, pra ganhar o quê?
Duas mariolas e um cigarro Yolanda”
Adoniran Barbosa
Há décadas, o genial e irreverente Adoniran Barbosa, lançava essa marchinha carnavalesca que até hoje faz sucesso nos blocos e clubes de carnaval Brasil afora. Afinal, compensava ou não tocar na banda para receber em troca duas mariolas e um cigarro Yolanda (famosa marca dos anos 60)?
A dúvida se coloca atualíssima quando nos confrontamos com a realidade da participação de companheiras e companheiros indígenas e indigenistas, em relação aos quais não se lança dúvida quanto à integridade e dedicação à luta pelos direitos dos povos originários, e de suas organizações, ainda que formalmente independentes, no atual Governo Lula. Se a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a participação direta de inúmeros e inúmeras lideranças no comando de órgãos diretamente relacionados aos direitos e demandas dos povos, tais como Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), pareceram inaugurar uma nova era na relação (e respeito) do Governo e do Estado brasileiro para com os povos indígenas, a prática – sempre está a nos ditar a realidade cotidiana – tem se mostrado no mínimo extremamente duvidosa e profundamente aquém do que de fato deve (o Estado) aos povos originários conquanto o assentado em tratados e convenções internacionais e nos direitos e princípios estabelecidos pela Constituição da República.
Dois recentes episódios, embora aparentemente distantes entre si, se põem nessa contramarcha à efetivação dos direitos dos povos originários. Um é a morte, após décadas de sofrimento intangível para muitas e muitos, de Dona Damiana Cavanha, Terra Indígena Apikay. Mulher e liderança Guarani Kaiowá ímpar e única, que durante anos e anos a fio, tendo passado por toda a sorte de provações, no que se incluem torturas, agressões, ameaças, destruições dos seus precários barracos de beira de estrada, seguidas perdas do marido, filhos e neto, era e é o retrato da tragédia humana que beira o etnocídio que vivem os Guarani e Kaiowá (e outros povos) do Mato Grosso do Sul. Onde o latifúndio e agronegócio ditam as regras, regras essas que parecem encapsuladas pelo Governo atual, que se mostrou politicamente incapaz das extremamente urgentes medidas de proteção e garantia, inclusive de ordem médica, sanitária e nutricional, para milhares de irmãos e irmãs indígenas do Mato Grosso do Sul.
Não que não haja outros povos e grupos maiores ou menores de indígenas em agoniantes e urgentes necessidades, sim, os há! Contudo, a marcha das prioridades, no que diz aos povos indígenas, no que se incluem isolados e de recente contato, continua aquém, absurdamente aquém daquilo que se lhes deve o Estado brasileiro, ainda que este tenha sido brutalmente dilapidado pelo governo genocida e de péssima memória que findou recentemente.
Dona Damiana se foi sem ver realizado o seu direito fundamental, essencial e humano de ter posse e título do seu território em um processo que se arrasta sem fim, sem eira e beira. Isto é, viveu suas últimas décadas como morreu, integralmente ao abandono do(s) governo(s) federal, ainda que este hoje tenha uma estrutura aparentemente relacionada às urgentes prioridades dos indígenas, nos quais Dona Damiana e seu clã despontavam e ainda despontam indelevelmente como situação de máxima atenção.
O outro episódio a mostrar realmente ao que veio e vem o atual governo, é a postura indecorosa, inaceitável e antiética de barganhar a aprovação de uma reforma, dita tributária – e que mais atende aos interesses do grande capital nacional e internacional, do que às dos trabalhadores e trabalhadoras do país e à sua gente sofrida e espoliada – com a derrubada dos vetos presidenciais à Lei número 11. 701/2023 – acerca do marco temporal definido pelo Congresso – que, ao contrário do que reclamaram as próprias organizações indígenas e outras entidades e instituições parceiras, sequer foi totalmente vetada, o que por si só constituiu uma péssima sinalização de descompromisso com os direitos consagrados internacional e constitucionalmente para com os povos indígenas.
A “solução” meia – boca (veto parcial), ao contrário do que disseram algumas e alguns que defenderam essa bisonha governamental, mais pôs lenha na fogueira da direita, que tem assento no Congresso Nacional, do que lhes tirou os argumentos à derrubada dos vetos. Não se mobiliza, não se organiza, não se articula de baixo para cima a legítima e necessária pressão à manutenção de direitos inegociáveis, o que representaria a mantença do veto total, mas se negocia e se barganha, se vende, esse é o termo correto, exatamente para aqueles setores da sociedade que mais violam e desrespeitam os povos originários e os seus irretorquíveis direitos.
Não podemos deixar de registrar que algumas demandas e situações limites, atinentes a alguns povos e suas comunidades, vêm sendo enfrentadas pelo atual Governo – combate ao garimpo ilegal e a derrubada de madeira – embora sem o emprego de todas as formas possíveis de ação governamental, como se nos indicam a suspensão de certas iniciativas e a timidez de outras. Porém resta mais que evidente que a acanhada demarcação de territórios até aqui havida, assim como as cada vez mais íntimas e prolixas relações do atual governo com o agronegócio e mineração, têm representado concretamente um barramento à plena consecução dos direitos dos povos indígenas, o que, em se tratando da extremada vulnerabilidade de povos e nações, é mais que um contrassenso, é verdadeiro desdém e enorme menoscabo.
Um parêntese para dizer que, se assim o é quanto aos povos indígenas, com alguma presença e participação nos espaços dirigentes governamentais, pior o é em relação aos quilombolas e populações tradicionais para os quais falta praticamente tudo em todos os quadrantes, a começar pela concretude de medidas governamentais diretas e objetivas que ponha em marcha efetiva os direitos assegurados a esses segmentos. A começar pela titulação dos seus territórios e políticas públicas de curto, médio e longo prazo a serem fixadas de maneira peremptória e perene.
Há ainda de se dizer que a violência contra indígenas e quilombolas tomam proporções inaceitáveis. Assassinatos, perseguições, ameaças e invasões são cotidianas e refletem, em grande medida, a ausência de um plano de ação com os objetivos de proteger e fiscalizar os territórios, bem como as vidas das lideranças e responsabilizar os criminosos. A Funai e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) – e por tabela, o INCRA, ICMBio, etc – por mais boa vontade que seus servidores expressem, não possuem recursos humanos, materiais e financeiros para atuarem de forma eficaz e planejada. Parece haver um corre-corre para onde há fumaça, buscando apagar incêndios que por vezes deixam apenas as cinzas e o desespero das pessoas dentro das comunidades.
As emergências do clima também desvelam o despreparo dos entes governamentais no sentido de assegurar ações emergenciais aos atingidos. Inundações ou secas deixam rastros de destruição. As pessoas, particularmente indígenas, quilombolas, populações tradicionais, ficam submetidas ao descaso e falta de apoio para suportar as perdas sofridas e a reconstrução daquilo que lhes foi tirado. Tudo é muito, muito, muito demorado quando se pede ajuda humanitária e social necessária aos indígenas, quilombolas e populações tradicionais, deixando que fiquem – milhares de pessoas – ao completo desalento e abandono, potencializando, assim, seu apresamento por oportunistas e aumentando ainda mais e mais o grau de vulnerabilidade.
No âmbito das políticas de educação e saúde verifica-se o mais do mesmo, ou seja, mantém-se as mesmas lógicas assistenciais do passado, onde se disputam cargos e funções, mas pouca efetividade para aos que dependem das ações públicas para simplesmente viverem. A educação está sob a responsabilidade dos estados, que em geral não investem e nem se preocupam com uma educação escolar indígena específica e diferenciada, sonegam tudo e congelam os serviços às formalidades de sempre – de ter carga-horária sem compromisso com os sujeitos da política. No âmbito da saúde diferenciada observa-se também discursos engajados, mas sem alteração das (nefastas) práticas de terceirização e até de quarteirização. Falta de controle social e esvaziamento das ações de prevenção de doenças comuns e das epidemias, como a da malária, hepatites, diabetes, doenças respiratórias e, bem grave, do acelerado aumento dos suicídios.
Diante dessa verdadeira catástrofe humanitária, que poderá ser ainda piorada em função do arrocho fiscal (vulgo arcabouço fiscal) que está por vir, espera-se que as práticas e os negaceios do Governo Lula 3 já tenham sido suficientes para alertar lideranças e organizações indígenas quanto à forma de agir e proceder em relação ao governo – o mesmo se aplica a lideranças e organizações populares – sob pena de estarmos diante de um quadro em que se optou por tocar na banda (alheia) ainda que seja para receber o óbulo de duas mariolas e um cigarro Yolanda.
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*Marcelo Chalréo é advogado e membro titular da Comissão de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, Quilombolas e Populações Tradicionais e presidente da Comissão de Direitos Sociais da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ).
**Roberto Antonio Libegott é advogado e missionário leigo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Regional Sul.