23/08/2023

Em sua 49ª Assembleia, Cimi Regional Mato Grosso debate sobre os povos originários e o Estado brasileiro

A Assembleia foi realizada de 14 a 18 deste mês, no Distrito de São Lourenço de Fátima (MT); Estiveram presentes missionários da entidade, lideranças indígenas e convidados

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

Por Renan Dantas – Distrito de São Lourenço de Fátima – MT

Missionários e missionárias do Conselho Indigenista (Cimi) Regional Mato Grosso, se reuniram entre os dias 14 a 18 de agosto de 2023, no Distrito de São Lourenço de Fátima, no Mato Grosso, para a 49° Assembleia Regional, que teve como tema fora: “Os povos originários e o Estado brasileiro: perspectivas da política indigenista”. Estiveram presentes pelos menos 45 pessoas entre missionários da entidade, lideranças de vários povos indígenas do estado do Mato Grosso e convidados do Cimi Regional Mato Grosso.

No decurso do encontro, houve momentos de orações, trocas de experiencias missionárias, e análises da conjuntura nacional e local sobre a situação política, econômica, social e fundiária dos povos originários no Estado do Mato Grosso.

“Houve momentos de orações, trocas de experiencias missionárias e análises da conjuntura nacional”

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

Nesta 49ª Assembleia Regional esteve como assessor Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, historiador, militante da causa indígena e secretário executivo do Cimi. Eduardo falou sobre o Projeto de Lei (PL) 2903/2023, que busca instituir o marco temporal de forma legislativa, e está para ser votado no Senado Federal nas próximas semanas. Destacou que a Constituição Federal reconhece os direitos dos povos indígenas as suas terras, e que a Constituição não estabelece nenhum marco temporal. “O legislativo, ao se antecipar e colocar um projeto de lei redefinindo esses direitos listados na Constituição, causa um tumulto constitucional e, ao mesmo tempo, restringe esses direitos dos povos indígenas”, explica o secretário do Cimi.

O PL 490, no Senado foi transformado em PL2903/2023 regulamenta o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas; e altera as Leis nºs 11.460, de 21 de março de 2007, 4.132, de 10 de setembro de 1962, e 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Tal PL propõe o marco temporal, ou seja, que os territórios indígenas só são reconhecidos como tradicionais a partir da Constituição de 1988. Também propõe a revogação da Consulta Livre Prévia Consentida e Informada, e propõe um novo rito de demarcação dos territórios indígenas a partir do legislativo.

“O legislativo, ao colocar um projeto de lei redefinindo os direitos listados na Constituição, causa um tumulto”

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

“Nota-se com isso uma realidade política no país, em que as duas casas legislativas, tanto a Câmara quanto o Senado Federal, estão sendo manipuladas por uma bancada ruralista e do agronegócio que impede qualquer avanço político do país com relação aos direitos fundamentais, não só dos povos indígenas, mas dos pobres no Brasil, portanto, é uma situação que exige dos movimentos sociais, das populações, um processo de mobilização permanente”, lista o secretário do Cimi.

No caso em questão, a votação do PL 2903 no Senado, requer essa mobilização da sociedade, dos povos indígenas e dos seus aliados, porque justamente a Casa que deveria proteger os direitos dessa população está devidamente articulada para que esses direitos sejam negados e não sejam efetivados e, ao mesmo tempo, que seja retirado da Constituição Federal.

“As duas casas legislativas estão sendo manipuladas por uma bancada ruralista e do agronegócio”

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

Está análise foi discutida por dois dias, na 49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso, depois foram feitos encaminhamentos para o Estado a partir das demandas das comunidades indígenas. No decorrer da assembleia, Dom Neri, Bispo referencial do Cimi Regional Mato Grosso, dirigiu umas palavras de motivação para os missionários presentes.

A Assembleia é sempre aquele momento forte de avaliar as atividades desenvolvidas ao longo do ano. A Assembleia também quer aprofundar análises das conjunturas, tanto social como política, econômica cultural, quanto religiosa. Onde atua o Cimi, são mais de 40 povos indígenas no estado do Mato Grosso. Representa o acompanhamento e a proximidade da Igreja no que diz respeito às questões indígenas, lista Dom Neri.

“Assembleia é sempre aquele momento forte de avaliar as atividades desenvolvidas ao longo do ano”

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

“Todos nós sabemos que os povos indígenas são parte integrante do patrimônio histórico e cultural do nosso país. Mais do que isso. Eles são herdeiros do histórico que abraça toda a nossa nação. E vemos que, a cada dia, eles passam por dificuldades e provações por desrespeito aos seus direitos. A cada dia são apertados em seus territórios. A cada dia, vemos maiores dificuldades. Naquilo que diz respeito ao direito, à educação, à segurança, à saúde. E muitos deles também são dizimados diante de um sistema neoliberal que deseja sempre levar adiante aquele paradigma do produzir o máximo, consumir tudo e lucrar. E nem importa de onde vem esses lucros. Muitas vezes, são produtos de ilegalidades, corte ilegal da floresta, garimpos. Projetos grandes em termos de hidrelétricas e PCHs”, reforça o Bispo Referencial do Cimi Regional Mato Grosso.

Grandes fortunas e propriedades, querem tomar conta daquilo que é de direito originário dos povos indígenas, o marco temporal é um ponto crítico de análise, reflete a fragilidade em que se encontram os povos originários. “A Assembleia não pode deixar de tratar destes assuntos todos, além de ser uma Assembleia de convivência, de partilha, além de ser uma Assembleia eletiva como foi desta vez”, reforça o Dom Neri.

“A Assembleia não pode deixar de tratar destes assuntos, além de ser uma Assembleia de convivência e partilha”

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

A Assembleia também traz em sua programação a celebração da espiritualidade, por isso o saldo de uma Assembleia do Cimi em qualquer lugar, em qualquer estado, em especial aqui no Mato Grosso sempre é algo positivo, em termos de compromisso, responsabilização e cuidado com os povos originários. Oxalá possa o Cimi continuar vigilante na proximidade dos povos originários para serem os agentes de Pastoral do Cimi, estes protagonistas, defensores e promotores, fazendo com que os povos originários tenham o seu protagonismo, aponta o reforça o Bispo Referencial do Cimi Regional Mato Grosso.

“Faço votos que o Cimi produza os frutos necessários, quando se tratar de cuidar dos mais vulneráveis da Nação Brasileira, porque não dizer dos mais pobres, os povos indígenas e os povos indígenas isolados, mais vulneráveis ainda”, conclui Dom Neri.

“Faço votos que o Cimi produza os frutos necessários, quando se tratar de cuidar dos mais vulneráveis da Nação”

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso . Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

Na Assembleia houve ainda momentos de despedidas e homenagens à irmã Beth que completará, no próximo dia 23 de agosto, seus 90 anos. Está foi a sua última participação, neste ciclo, junto ao povo Myky onde ficou por 45 anos em missão, com os quais ela conviveu durante esses anos, e agora ela retorna para o Rio de Janeiro, a residir no convento das Irmãs da Congregação do Sagrado Coração, sua congregação.

Sua co-irmã de Congregação, irmã Eloísa Maria Rodrigues da Cunha, testemunhou dizendo:

“Com muita alegria, eu irmã Eloísa Maria Rodrigues da Cunha, estou aqui participando da 49ª Assembleia do Cimi, depois de acompanhar minha irmã Elisabeth Aracy Rondon Amarante, nessa sua última etapa aqui junto aos povos Myky, que aqui viveu 45 anos de inserção, quando nossa congregação a enviou, e ela se sente cada vez mais identificada com nossa espiritualidade e sobreviveu a todo esse tempo, muito encarnada junto aos povos Myky. Para nós estarmos acompanhando a Beth, nesses 45 anos, foi uma aliança muito profunda, não só assumimos a ela, mas como assumimos o povo concreto, o povo Myky e abraçamos a causa do Cimi, e com muita alegria participei desses últimos tempos aqui com ela”.

“Para nós estarmos acompanhando a Beth, nesses 45 anos, foi uma aliança muito profunda”

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso. Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso. Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

A 49ª Assembleia do Cimi foi encerada com uma missa celebrada por Dom Mário Antônio da Silva, arcebispo de Cuiabá, e Dom Mauricio da Silva Jardim, bispo de Rondonópolis/Guiratinga. Na celebração, Dom Mauricio, destacou a frase do Papa Francisco no sínodo especial para Amazônia, em outubro de 2019, dizendo que o Papa em uma de suas intervenções propôs:

“Diante dos desafios e conflitos, pensar respostas totalizantes para não ficarmos em remendos. Às vezes, somos tentados a disciplinar os conflitos. Para cada conflito uma solução parcial. Há conflitos que não se resolvem com disciplina, mas com transbordamento, com excesso. Como Deus resolveu o conflito do pecado? Com o transbordamento do amor total na cruz”.

“Desamarrem as sandálias e descansem. Este chão é terra Santa, irmãos meus. Venham, orem, comam, cantem”

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso. Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

49ª Assembleia do Cimi Regional Mato Grosso. Foto: Renan Dantas / Cimi Regional Mato Grosso

Dom Mário, arcebispo de Cuiabá, por sua vez, destacou sobre a missão do Cimi, convidando os presentes a desamarrem as sandalhas, viver a liberdade missionário, “Desamarrem as sandálias e descansem. Este chão é terra Santa, irmãos meus. Venham, orem, comam, cantem. Venham todos e renovem a esperança no Senhor”.

Ao concluir esta Assembleia publicaram uma carta. Onde expressam os desejos e desafios do trabalho junto aos povos indígenas no estado. Os missionários do Cimi Regional Mato Grosso e demais participantes da 49ª Assembleia, levem em seus corações ardentes, palavras de esperanças, e sabem que novos desafios estarão por vir.

Confira a carta na íntegra:

DOCUMENTO FINAL DA 49ª ASSEMBLEIA DO CIMI REGIONAL MATO GROSSO

 

A causa indígena é de todos nós!
“O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social” (Laudato Si nº 48).

 

Nós, missionárias e missionários do Conselho Indigenista Missionário Regional Mato Grosso, reunidas/os entre os dias 14 a 18 de agosto de 2023, no distrito de São Lourenço de Fátima, Juscimeira (MT), orientados pelo tema: “Os povos originários e o estado brasileiro: perspectivas da política indigenista”, após analisar a conjuntura nacional, local, a situação política, econômica, social e fundiária dos povos originários no Estado do Mato Grosso, vimos por meio deste reafirmar que:

A causa indígena é de todos nós. Defendemos o direito originário, permanente e inegociável dos povos indígenas, conquistados como resultado da resistência e intensa participação dos mesmos na Constituição de 1988. O atual modelo de desenvolvimento, mormente baseado no monocultivo, na produção commodities, construção de hidrelétricas, ferrovias e na mineração apresenta-se como gerador de morte, envenenamento e desertificação dos biomas pantanal, amazônico e cerrado onde vivem povos originários e comunidades tradicionais. É urgente a reversão das proeminentes e nefastas consequências ambientais destes projetos estatais e privados.

Mato Grosso é um estado que atraiu pessoas de diversas regiões do país. A ocupação desordenada, não raras vezes invadindo territórios dos povos, provocou conflitos na disputa por terra, a derrubada e extração desmedida de madeira, provocaram queimadas levando o estado ao topo do desmatamento. A política desenvolvimentista, que visa favorecer o modelo explorador da natureza, favorece a grilagem das terras e a ganância dos grandes produtores rurais e pecuaristas, atingindo e ameaçando a vida dos rios, animais, florestas, ribeirinhos e dos povos originários na Amazônia Legal. Os 48 povos indígenas que vivem no estado de Mato Grosso são vítimas desse processo político e econômico em curso. Os territórios indígenas estão como ilhas acossadas pela ganância que desmata, queima e polui. Desses 48 povos originários, pelo menos 21 povos ainda convivem com demandas reprimidas em relação às demarcações, desintrusão e regularização de seus territórios.

As terras indígenas invadidas há muitos anos ainda não foram regularizadas, a exemplo da TI Tereza Cristina (Povo Boe-Bororo); Urubu Branco (Povo Apyãwa-Tapirapé), Baia dos Guató (Povo Guató), Batelão (Kayabi-Kawaiweté), entre outras. São vários povos originários que não têm terra, como os Xerente do Araguaia, Kanela do Araguaia, Guarani de Cocalinho, Chiquitano de Porto Espiridião e Vila Bela da Santíssima Trindade. Exigimos urgentemente uma decisão política para resolver a situação desses povos indígenas com demarcação, desintrusão, fiscalização e proteção de seus territórios. Exigimos políticas públicas afirmativas no campo da econômica indígena, com o Estado cumprindo de seus deveres, sem permitir que as buscas de soluções sejam articuladas e impostas pelos poderes políticos que andam de braços dados com o agronegócio, levando a monocultura com uso de agrotóxicos e desmatamentos. As Terras Indígenas são patrimônio da União, para o usufruto exclusivo de seus povos, portanto, é dever constitucional da União demarcá-las e protegê-las.

É urgente que os poderes constituídos cessem os ataques em curso aos direitos dos Povos Indígenas como o Projeto de Lei 490, aprovado na Câmara Federal seguindo para o Senado com o número 2903, já com parecer favorável para a aprovação da Comissão de Agricultura. Tal Projeto de Lei busca inserir a nefasta e inconstitucional tese do marco temporal e outras ameaças em andamento no Congresso Nacional. Lembramos que em 2022 o Estado brasileiro acolheu, durante o 4º Ciclo da Revisão Periódica Universal, a recomendação da Noruega de rejeitar a tese do marco temporal; a manobra em curso no Congresso Nacional viola tal recomendação. É preciso que o Brasil cumpra a legitimidade da Constituição de 1988 que outorga os direitos dos povos e efetive sua sintonia com os compromissos internacionais assumidos.

Denunciamos que este e outros projetos que tramitam no Congresso, subvertem a centralidade do direito originário dos povos aos seus territórios e afetam diretamente a garantia das condições de sobrevivência física e cultural de seus habitantes.

Por fim, reafirmamos que somos portadores da esperança e do Bem Viver. Somos inspirados pelo Evangelho dos pobres desta terra: indígenas, negros, ribeirinhos, mulheres e crianças, excluídos e espoliados de seus direitos fundamentais. Alimentamo-nos dos mesmos sonhos, e das mesmas causas pelas quais os/as mártires derramaram seu sangue e doaram suas vidas. Dizemos não ao modelo capitalista, promotor da morte, da extinção dos povos indígenas e da natureza.

Que os Encantados iluminem nosso caminho na construção do Bem Viver!

São Lourenço de Fátima, Juscimeira (MT), 18 de agosto de 2023.

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