A busca pela terra e o movimento de autodemarcação dos Pataxó
Matéria publicada originalmente no jornal Porantim, edição de março de 2023
Desde 2009, os Pataxó aguardam a emissão da portaria declaratória da Terra indígena (TI) Barra Velha do Monte Pascoal, quando foi publicado o relatório circunstanciado de identificação e delimitação (RCID) da área pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Fazendeiros questionaram judicialmente a demarcação, mas foram derrotados no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu favoravelmente aos indígenas em 2019. Desde então, não há nenhum impedimento legal à emissão da portaria.
O movimento de autodemarcação iniciado pelos Pataxó tem sido uma resposta à omissão do Estado e uma forma de evitar a degradação ainda maior do território pelo agronegócio e por empreendimentos privados. Contudo, em meio à crescente onda de violência, ameaças e conflitos com os fazendeiros, “ter a terra no papel”, como explicou Candara, é ainda para seu povo à medida que colocará fim nos conflitos. “Queremos ter nossa liberdade de plantar e colher. Para viver mais em harmonia, sem violência dentro do nosso próprio território”, afirma a liderança.
Histórico
Na década de 1980, a TI Barra Velha foi reservada com uma área pequena, de apenas 8.627 hectares, deixando grande parte do território de fora da demarcação. Para os Pataxó, a revisão dos limites da área demarcada é fundamental para a garantia de um futuro às novas gerações.
“Esses 8.627 hectares, onde eu moro, que é a área demarcada e homologada, ela é pequenininha. E tem uma parte dela, na orla, que está sendo invadida por grileiros, com venda de terras e [especulação] imobiliária dentro do nosso território”, explica Uruba.
Já a TI Comexatibá, identificada e delimitada em 2015, aguarda que a Funai responda às contestações feitas no procedimento demarcatório para que, então, a portaria declaratória possa ser emitida pelo Ministério da Justiça.
A Instrução Normativa 09/2020, publicada pela Funai sob o governo Bolsonaro, evidenciou a enorme pressão a que estes territórios estão submetidos. A medida liberou a certificação de fazendas sobre terras indígenas ainda não homologadas, como é o caso das duas terras Pataxó no centro dos atuais conflitos.
As consequências para os Pataxó foram imediatas: nos primeiros meses após a publicação da normativa, 51 fazendas, com um total de 11,4 mil hectares, foram certificadas sobre as TIs Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá, a maioria delas integralmente sobrepostas às terras indígenas.
Entre abril e agosto de 2020, foram dez certificações de propriedades sobre a TI Comexatibá e 41 sobre a TI Barra Velha do Monte Pascoal, a maioria delas pertencente aos fazendeiros derrotados no STJ.
Apesar das decisões judiciais suspendendo a validade na normativa em 13 estados após ações do Ministério Público Federal (MPF), inclusive na Bahia, e do anúncio de anulação da normativa pelo Ministério dos Povos Indígenas, as certificações já concedidas não perderam validade.
Com elas, os fazendeiros podem negociar e financiar atividades nestas áreas, aumentando ainda mais a pressão e a devastação do território já reconhecido oficialmente como tradicionalmente ocupado pelo povo Pataxó.
Autodemarcação
Em junho do ano passado, o povo Pataxó iniciou um processo de autodemarcação territorial inédito na região, retomando muitas das áreas invadidas pelos fazendeiros. O avanço das comunidades sobre as áreas tomadas por fazendas e empreendimentos privados se deve à demora no processo de regularização de suas terras.
“Nós não estamos mais aguentando a morosidade, a demora da conclusão dos processos fundiários nas terras indígenas Pataxó. Com essa morosidade está vindo a prostituição, a droga, a urbanização, a degradação ambiental, a contaminação e a descaracterização do que é terra indígena pela construção imobiliária”, explica Mãdy Pataxó, cacique da aldeia rio do Cahy, localizada na TI Comexatibá.
“Por não aguentarmos mais todo esse processo violento, estamos fazendo um processo de autodemarcação, ocupando as áreas degradadas, as áreas que estão em mãos irregulares, de fazendeiros e latifundiários dentro das terras indígenas. Estamos ocupando essas áreas para poder evitar a destruição. E, por causa disso, nós estamos sofrendo toda uma represália”, relata a liderança.
A autodemarcação desses dois territórios foi a saída encontrada pelo povo para efetivar o direito de viver e habitar suas terras
“Esse território é nosso”, explica Uruba Pataxó, vice-cacica da aldeia-mãe Barra Velha, ao se referir aos 52,7 mil hectares relativos à área de revisão de limites da TI Barra Velha e aos 28 mil hectares da TI Comexatibá. A autodemarcação desses dois territórios foi a saída encontrada pelo povo para efetivar o direito de viver e habitar suas terras.
“Se a gente não fizer a nossa autodemarcação, governo nenhum vai fazer. Porque eles acham que se a gente não entrar para dentro da terra, ela não nos pertence”, considera a vice-cacica.
Força-Tarefa e atuação da PM
À medida em que a comunidade avança sobre as áreas invadidas, cresce a violência empreendida contra o povo Pataxó. A gravidade da situação obrigou o governo do estado da Bahia a intervir por meio de um grupo policial constituído por policiais militares, civis e bombeiro, conhecido na região como Força-Tarefa.
Criada em setembro do ano passado, após o assassinato de Gustavo Pataxó, a Força-Tarefal se estabeleceu na região com a finalidade de conter a violência e os conflitos promovidos pelos fazendeiros e garantir a segurança e a proteção do povo Pataxó.
Contudo, o grupo policial tem se ocupado parcamente de suas atribuições e se mostrado pouco disponível para atender as denúncias feitas pelo povo. Segundo Uruba Pataxó, a Força-Tarefa só veio para a região depois do assassinato do Gustavo, mas não conseguiu evitar a morte de outros jovens como Samuel e Nauí.
“Eles chegaram dizendo que vieram para apaziguar o conflito. Mas antes de sentar com os indígenas para saber o que estava acontecendo, eles foram primeiro sentar com os fazendeiros”, relata Uruba.
A falta de clareza na atuação da Força-Tarefa no extremo sul da Bahia reflete-se, também, em declarações de integrantes do governo estadual. Foi o caso do secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, Felipe Freitas, que afirmou, no final de janeiro, que “no extremo sul [da Bahia] não existe demarcação, há um litígio, uma disputa”.
O diálogo com a comunidade Pataxó só ocorreu após muita cobrança e pressão, mas ainda assim se mostrou insuficiente. “Eles passam na porta das ocupações indígena, das áreas de autodemarcação, mas não entram nas fazendas para prender os pistoleiros que estão atirando todas as noites no indígena”, denuncia Mãdy.
Os questionamentos dos Pataxó quanto à conduta da Força-Tarefa não se dão em vão. Tanto o assassinato de Gustavo como de Samuel e Nauí resultaram na prisão de policiais militares, suspeitos de atuarem como pistoleiros a mando de fazendeiros. Três PMs foram presos, em outubro, suspeitos de matarem Gustavo, e outro foi preso em janeiro, acusado de assassinar os outros dois jovens.
É dever da Polícia Federal intervir, tomando pé dessas investigações referente à morte de Samuel e Nau
“Hoje, quem anda matando nosso povo na nossa região, fazendo pistolagem, é uma parte da Polícia Militar do estado da Bahia”, relata uma liderança não identificada por razões de segurança. “Por isso, nós queremos a presença da Polícia Federal dentro da área indígena. É dever da Polícia Federal intervir, tomando pé dessas investigações referente à morte de Samuel e Nauí”, reivindica.
A demanda pela intervenção da Polícia Federal e do envio da Força Nacional à região tem sido reiteradamente reclamada pelo povo Pataxó, mas é barrada pelo governo do estado da Bahia, que rejeitou o apoio da Força Nacional. O povo Pataxó segue em situação de extrema insegurança, o que faz o pedido de socorro, outrora feito por Gustavo, seguir ecoando num brado uníssono na voz do povo Pataxó.
Pressão jurídica
Na segunda quinzena de março, um conjunto de decisões de reintegração de posse expedidas contra retomadas do povo Pataxó nas TIs Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal aumentaram ainda mais a tensão na região, com risco de uso de força policial para despejar os indígenas das retomadas.
O fato de que a Polícia Militar poderia ser convocada a efetuar os despejos gerou apreensão, dado que muitos policiais são investigados e denunciados por atuarem como milicianos para fazendeiros em conflito com os Pataxó.
No final de março, pelo menos seis decisões de reintegração de posse a favor de fazendeiros e proprietários de lotes pairavam sobre o povo Pataxó. Cinco delas foram emitidas pelo juiz Raimundo Bezerra Mariano Neto, da Justiça Federal de Teixeira de Freitas (BA). Destas, três foram assinadas digitalmente em menos de meia hora, no dia 17 de março.
A outra decisão foi emitida por uma vara da Justiça Estadual da Bahia no município de Prado, contra a aldeia Quero Vê, retomada estabelecida pelos Pataxó em janeiro de 2022 numa área que sofre intensa especulação imobiliária.
Contrariando a Constituição, que estabelece que assuntos ligados aos povos indígenas são de competência federal, a decisão foi emitida pela Justiça Estadual da Bahia em Prado e nem sequer menciona a palavra “indígena”.
“O dono dos lotes entrou na Justiça Estadual porque ele não reconhece que é uma ocupação indígena. Ele diz que são pessoas que ‘se dizem indígenas’, mas que, na verdade, seriam trabalhadores rurais”, explica a assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Leste, Lethicia Reis.
“Isso é uma forma de racismo, negar a identidade dos Pataxó. Mas essa estratégia não é nova e tem sido utilizada pelos fazendeiros. Esse proprietário, inclusive, tem pressionado os Pataxó a saírem da área antes das 72 horas determinadas para a reintegração”, prossegue a assessora.
Para Tawã, liderança da aldeia Alegria Nova, o cumprimento da reintegração de posse pode gerar prejuízos enormes à comunidade. “As nossas famílias já estão na área há nove meses, com nossa produção, com todo o nosso desenvolvimento, com as nossas crianças em atividade, em sala de aula. A verdade é que essa reintegração de posse é inconstitucional quando se tem um território que é indígena”, afirma a liderança.
Os Pataxó, com assistência do Cimi, e a Defensoria Pública da União (DPU) recorreram das sentenças. Até o final de março, quatro decisões da Justiça Federal haviam sido suspensas pelos ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), e a decisão da Justiça Estadual foi suspensa pela própria vara de Prado.
Uma das decisões emitidas pela Justiça Federal – e posteriormente suspensas pelo STF – contra os indígenas atende ao pedido do fazendeiro Airson Celino Gomes, conhecido como “Nem” e proprietário da fazenda Santa Therezinha – local onde Gustavo Pataxó foi assassinado.
Segundo reportagem da Agência Pública, o pedido de reintegração de posse foi feito no dia seguinte ao atentado que resultou no brutal assassinato do menino Pataxó. A decisão da Justiça Federal contra a retomada Vale do Cahy, de Candara, foi expedida no dia 30 de março.
Meses após o ataque brutal, a retomada segue viva, apesar da ameaça de despejo e da tensão constante devido ao risco de novos ataques. Os irmãos e irmãs de Gustavo – Guilherme, de doze anos, Beatriz, de dez, e Moisés, de dois anos – também precisaram assimilar sua ausência e de suas brincadeiras.
“Gustavo brincava tanto com Moisés… ele não tinha maldade nenhuma. Moisés sente falta dele. Quando a gente estava no caixão, ele estava lá e a gente cantou a música do auê [canto tradicional Pataxó], ele viu a gente chorando. Então hoje, quando a gente começa a cantar o auê, ele começa a chorar”, conta Candara.
Mesmo diante da dor, a luta de Candara segue movida pela lembrança do filho e pelo pedido de socorro por ele deixado. “Eu achava que ele ia comer desse fruto que ele ajudou plantar. Se eu colho um abacaxi, se eu colho uma jaca, se eu colho um coco, tudo é lembrança do meu filho. Ele foi um menino muito guerreiro, sonhador, que foi impedido, mas tenho certeza que existe Guilherme, existe Beatriz, existe Maim, existem outros Pataxó que têm futuro, que têm sonhos e que pode dar encaminhamento para o que está aí”.