09/04/2023

Descobrindo os Brancos

Depoimento recolhido e traduzido por Bruce Albert, na maloca Watoriki, setembro/ 1998

Por Davi Kopenawa Yanomami – Depoimento recolhido e traduzido por Bruce Albert, na maloca Watoriki, setembro/ 1998 – Publicado Originalmente em Povos Indígenas no Brasil

18ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), realizado de 4 a 14 de abril de 2022, com o tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”. Foto: Hellen Loures/Cimi

Há muito tempo, meus avós, que habitavam Mõramabi araopi, uma casa situada muito longe, nas nascentes do rio Toototobi, iam às vezes visitar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio Aracá (como o Toototobi, o Aracá é um afluente do rio Demini, ele próprio tributário da margem esquerda do rio Negro).

Foi lá que encontraram os primeiros brancos. Esses estrangeiros coletavam fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio Aracá. Durante essas visitas nossos mais velhos obtiveram seus primeiros facões. Eles me contaram isso muitas vezes quando eu era criança. Naquele tempo, eles só encontravam brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não iam vê-los sem motivo, simplesmente para visitá-los. Haviam visto suas ferramentas metálicas e as cobiçavam, pois possuíam apenas pedaços de metal que Omama deixara (os antigos Yanomami possuíam fragmentos de facões e de machados muito gastos, que obtinham por um complexo circuito de trocas interétnicas, mas cuja origem atribuíam a Omama, seu herói cultural). Era durante essas longas viagens que, de vez em quando, eles conseguiam obter um facão ou mesmo um machado. Trabalhavam então em suas plantações emprestando-os uns aos outros. Quando um tinha aberto sua plantação, passava-os a um outro e assim por diante. Eles emprestavam também essas poucas ferramentas metálicas de uma aldeia a outra.

Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos tão longe, não: tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo. Evidentemente, eles achavam as panelas de alumínio muito bonitas, mas tampouco era por isso que faziam aquelas viagens: também tinham vasilhas de terracota para cozinhar sua caça. Era realmente por seus facões e seus machados que iam visitar aqueles estrangeiros.

Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos

Mas foi bem mais tarde, quando habitávamos Marakana, mais para o lado da foz do rio Toototobi, que os brancos visitaram nossa casa pela primeira vez. Na época, nossos mais velhos estavam ainda todos vivos e éramos muito numerosos, eu me lembro. Eu era um menino, mas começava a tomar consciência das coisas. Foi lá que comecei a crescer e descobri os brancos. Eu nunca os vira, não sabia nada deles. Nem mesmo pensava que eles existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adultos já os haviam encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos. Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam. Além disso, não compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas. Parecia que eles tinham uma língua de fantasmas. Eram pessoas da “Comissão” (uma equipe da Comissão Brasileira Demarcadora dos Limites/ CBDL subiu o rio Toototobi em 1958-9). Os mais velhos diziam que eles roubavam as crianças, que já as haviam capturado e levado com eles quando tinham subido o rio Mapulaú, no passado (Alusão a uma primeira visita da CBDL ao rio Toototobi, em 1941). Era por isso também que eu tinha muito medo: estava certo de que também iam me levar. Meus avós já haviam contado muitas vezes essa história, eu os ouvira dizer: “Sim, esses brancos são ladrões de crianças!”, e tinha muito medo. Por que eles levaram aquelas crianças? Eu me pergunto isso ainda hoje.

Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação, minha mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no fundo de nossa casa. Ela me dizia então: “Não tenha medo! Não diga uma palavra!”, e eu ficava assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu me lembro, no entanto devia ser realmente muito pequeno, senão não teria cabido debaixo daquele cesto! Minha mãe me escondia pois também temia que os brancos me levassem com eles, como tinham roubado aquelas crianças, da primeira vez. Era também para me acalmar, pois eu estava aterrorizado e só parava de chorar quando estava escondido. Todos os bens dos brancos me assustavam também: tinha medo de seus motores, de suas lâmpadas elétricas, de seus sapatos, de seus óculos e de seus relógios. Tinha medo da fumaça de seus cigarros, do cheiro de sua gasolina. Tudo me assustava, porque nunca vira nada de semelhante e ainda era pequeno! Mas, quando seus aviões nos sobrevoavam, eu não era o único a ficar assustado, os adultos também tinham medo; alguns chegavam mesmo a romper em soluços, e todo mundo fugia para a mata vizinha! Nós somos habitantes da floresta, não conhecíamos os aviões e estávamos aterrorizados. Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam cair sobre nós e queimar todos. Todos tínhamos muito medo de morrer! Eu me lembro que também tinha medo das vozes que saíam dos rádios e da explosão dos fuzis que matavam a caça. Perguntava-me o que todas aquelas coisas que pareciam sobrenaturais poderiam ser! Perguntava-me também por que aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa.

Mais tarde, muitos outros Yanomami novamente morreram quando a estrada entrou na floresta

Mais tarde, realmente comecei a crescer e a pensar direito, mas continuei a me perguntar: “O que os brancos vêm fazer aqui? Por que abrem caminhos em nossa floresta?”. Os mais velhos me respondiam: “Eles vêm sem dúvida visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde!”. Mas eles não compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que os deixaram penetrar em suas terras dessa maneira amistosa. Se tivessem compreendido suas palavras, acho que os teriam expulsado. Aqueles brancos os enganaram com seus presentes. Deram-lhes machados, facões, facas, tecidos. Disseram-lhes, para adormecer sua desconfiança: “Nós, os brancos, nunca os deixaremos desprovidos, lhes daremos muito de nossas mercadorias e vocês se tomarão nossos amigos!”. Mas, pouco depois, nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia, depois em uma outra. Mais tarde, muitos outros Yanomami novamente morreram quando a estrada entrou na floresta (A BR-210, Perimetral Norte, aberta em 1973-4 e abandonada em 1976, depois de cortar duzentos quilômetros a sudeste do território yanomami) e bem mais ainda quando os garimpeiros chegaram ali com sua malária. Mas, dessa vez, eu tinha me tomado adulto e pensava direito; sabia realmente o que os brancos queriam ao penetrar em nossa terra.

Descobrir o Descobrimento

Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas não têm nenhuma sabedoria. Não pensam mais no que eram seus ancestrais quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram como nós, mas esqueceram todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessaram as águas e vieram em nossa direção. Depois, repetem que descobriram esta terra. Só compreendi isso quando comecei a compreender sua língua. Mas nós, os habitantes da floresta, habitamos aqui há longuíssimo tempo, desde que Omama nos criou. No começo das coisas, aqui só havia habitantes da floresta, seres humanos (a autodesignação dos Yanomami -yanomae thëpë significa antes de tudo “seres humanos”, e se aplica também aos outros índios, opondo-se aos animais, aos seres sobrenaturais e aos não-índios/ napëpë). Os brancos clamam hoje: “Nós descobrimos a terra do Brasil!”. Isso não passa de uma mentira. Ela existe desde sempre e Omama nos criou com ela. Nossos ancestrais a conheciam desde sempre. Ela não foi descoberta pelos brancos! Muitos outros povos, como os Makuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante, os Kayapó e os Guarani ali viviam também. Mas, apesar disso, os brancos continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra! Como se ela estivesse vazia! Como se os seres humanos não a habitassem desde os primeiros tempos!

Desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para procurar ouro, esqueceram sua amizade

Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos para nós! (os brancos foram criados por Omama a partir do sangue de um grupo de ancestrais Yanomami devorados por lontras e jacarés numa grande enchente provocada pela quebra de um resguardo menstrual). Ele lhes deu uma terra, muito longe daqui, pois queria nos proteger de suas epidemias e de suas armas. Foi por isso que os afastou. Mas esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram por muito tempo. Eles se lembraram: “É verdade! Havia lá, ao longe, uma outra terra muito bela!”, e voltaram para nós. Na margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios. Esses brancos eram pouco numerosos e começaram a mentir: “Nós, os brancos, somos bons e generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos viver a seu lado nesta terra com vocês! Seremos seus amigos!”. Era com essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que também chegaram a nós. Depois dessas primeiras palavras de mentira eles foram embora e falaram entre si. Depois voltaram muito numerosos. No começo, sem casa nesta terra, ainda mostravam amizade pelos índios. Tinham visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui. Mas desde que se instalaram realmente, desde que construíram suas habitações e abriram suas plantações, desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para procurar ouro, esqueceram sua amizade. Começaram a matar as gentes da floresta que viviam perto deles.

Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nesta terra. É o que dizem nossos mais velhos. Não havia doenças perigosas, sarampo, gripes, malária. Estávamos sozinhos, não havia garimpeiros para queimar o ouro, fábricas para produzir ferro e gasolina, carros e aviões. A floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes. Foi apenas quando os brancos se tomaram muito numerosos que sua fumaça epidemia xawara começou a aumentar e a se propagar por toda parte. Essa coisa má se tomou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta começaram a morrer (a expressão xawara wakëxi, “epidemia-fumaça”, designa aqui a um só tempo as epidemias e a poluição, às quais é atribuída a mesma origem: a fusão do ouro, dos metais e dos carburantes extraídos da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer seus veículos). Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais não tinham fábricas, caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer crescer seu alimento. Também não sujavam todos os rios como esses brancos que agora procuram ouro em nossas terras.

Habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri

“Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos importantes!”, dizem os brancos. Mas são apenas palavras de mentira. Eles não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a devastá-Ias. Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe desde os primeiros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio nessas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso que repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros a propósito de nossa floresta: “Os Yanomami não habitavam aqui, eles vêm de outro lugar! Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!”. Mas eu, sou filho dos antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve ali, antes de mim. Eu não digo: “Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram sobre ela, portanto a possuo!”. Ela existe desde sempre, antes de mim. Eu não digo: “Eu descobri o céu!”. Também não clamo: “Eu descobri os peixes, eu descobri a caça!”. Eles sempre estiveram lá, desde os primeiros tempos. Digo simplesmente que também os como, isso é tudo.

O Povo das Mercadorias

Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa. Era sua floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores para construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de aumentar, e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, não havia mais caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar mercadorias e seu espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses bens sobre os quais fixaram seu pensamento. Eles construíram casas de pedra, para que não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta, dizendo-se: “Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas delas e dinheiro também! Assim, quando formos realmente muito numerosos, jamais seremos miseráveis!”. Foi com esse pensamento que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios. Agora, só bebem água “embrulhada”, que precisam comprar. A água de verdade, a que corre nos rios, já não é boa para beber.

Primeiro estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar

Nos primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e seus ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas perigosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor é perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas ferramentas, máquinas, carros e aviões. Eles se tomaram eufóricos e se disseram: “Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!”. Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar. Nunca mais eles se disseram: “Se destruirmos a terra, será que seremos capazes de recriar uma outra?”.

Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas cidades são belas, mas seu barulho não pára nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito se toma obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: “Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são mentirosos!”. O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os “brancos-espíritos-tatus-gigantes” [mineradoras] entram por toda parte sob a terra para retirar os minérios, eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais (o universo yanomami compõe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um “grande vazio”; o mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora dos tempos; é habitado pelos ancestrais Yanomami da primeira humanidade, que se tornaram monstros canibais – os aõpataripë).

Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento

Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapïripë, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, não queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos.

Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas. As terras dos brancos estão contaminadas, estão cobertas de uma fumaça epidemia-xawara que se estendeu muito alto no peito do céu. Essa fumaça se dirige para nós mas ainda não chega lá, pois o espírito celeste Hutukarari a repele ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o céu ainda é claro, pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós. Mas bem mais tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fumaça aumente a ponto de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol. Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixa-lo sem descanso em suas mercadorias, como se fossem suas namoradas.

Share this: