Em evento, Cimi Regional Leste e lideranças indígenas mulheres discutem as diversas “faces” da fome
Realizado em março, o Encontro das Mulheres Indígenas do Regional Leste teve como tema “Fome de participação, empoderamento e protagonismo nas lutas do cotidiano”
Em meio a fortes rituais, cantos, danças e manifestações religiosas, foi realizado – entre os dias 24 e 26 de março – o Encontro das Mulheres Indígenas do Regional Leste, no território Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. O encontro, que ficou marcado por muitas emoções, teve como tema “Fome de participação, empoderamento e protagonismo nas lutas do cotidiano”, e o lema “Mulheres Indígenas construindo resistências diante das injustiças recorrentes”.
O tema do encontro, alinhado com o tema da Campanha da Fraternidade de 2023 – “Fraternidade e Fome” –, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi escolhido a partir das reflexões do Coletivo de Mulheres do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Leste e das anfitriãs Tupinambá de Olivença. A temática dialoga com as diversas “faces” da fome: a fome de direitos, de justiça, de participação e representação e de comida; fome que se combate com o empoderamento, protagonismo, acesso ao território e autossustentabilidade dos povos indígenas.
O evento contou com a presença de cerca de 200 mulheres, de diversos povos de Minas Gerais: Mokurin, Aranã Kabbok, Pankararú-Pataxó, Xakriabá, Pankararu e Pataxó; da Bahia: Kiriri de Barreiras, Kiriri de Muquém, Tuxá, Atikum, Tapuia, Pankaru, Xakriabá de Cocos, Pataxó do Extremo Sul, Pataxó Hãhãhãe, e as anfitriãs Tupinambá de Olivença e Tupinambá da Serra do Padeiro, vindas das regiões do Norte e Leste Nordeste de Minas Gerais, Oeste, Sul e Extremo-sul da Bahia.
Além disso, participaram representantes da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), da Congregação das Irmãs da Providência de GAP, das Missionárias Agostinianas Recoletas, pesquisadoras da questão indígenas e outros parceiros. A programação contou com uma diversidade de participações e temas, tornando os debates propostos ainda mais ricos.
“A programação contou com uma diversidade de participações e temas, tornando os debates propostos ainda mais ricos”
Com a chegada das delegações na noite do dia 23 de março, a programação teve início na manhã do dia seguinte – 24 de março – com uma confraternização logo no café da manhã. Em seguida, foi aberta uma potente mesa de lideranças, com a presença de mulheres representantes das suas regiões, do Movimento Unido dos Povos Indígenas da Bahia (MUPOIBA), do Movimento Indígena da Bahia (MIBA) e do Cimi Regional Leste.
O primeiro dia foi marcado pelos debates sobre “O protagonismo das mulheres indígenas”, assessorado por Jurema Machado, antropóloga, professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e representante da ANAÍ. Na ocasião, lideranças participaram do debate a partir dos seus entendimentos de protagonismos, trazendo presente a memória de muitas protagonistas indígenas apagadas pela história, e as possíveis que virão.
“O primeiro dia foi marcado pelos debates sobre ‘O protagonismo das mulheres indígenas'”
O primeiro dia foi finalizado com uma prática de autocuidado na construção de uma teia a partir da pergunta “por que eu sou importante para o movimento indígena?”
Continuando a programação do dia anterior, o segundo dia – 25 de março – teve início com um espaço sobre saúde mental indígena, mediado por Marta Mamédio, integrante do Cimi Regional Leste e psicóloga mestranda em Saúde Indígena. Logo no começo das atividades, foi feita a pergunta “o que é saúde mental?”. Após escutas, foram organizados grupos para encontrar respostas aos questionamentos: “como estou?”, “como minha comunidade está?”, “como nos autocuidamos?”. O espaço para partilhar a percepção de cada participante gerou um forte impacto, emocionando quem estava presente.
“O espaço para partilhar a percepção de cada participante gerou um forte impacto, emocionando quem estava presente”
Na sequência, os grupos trouxeram os temas “A cura da terra: proteção e cuidado da casa comum”; “A participação e empoderamento das mulheres frente a luta pela terra”; “Mulheres indígenas na política: desafio ou protagonismo?”; e “Sustentabilidade e comércio justo: janelas para o protagonismo das mulheres indígenas” – temas que conversam entre si no debate das mulheres indígenas na luta pelo acesso e permanência em seus territórios.
Já no período da tarde, aconteceram as oficinas práticas de miçangas, pintura corporal, cerâmica e ervas medicinais, momento que mulheres de diversos povos puderam realizar trocas de conhecimentos a partir dos seus conhecimentos ancestrais, artesanatos e autossustentos.
“Mulheres de diversos povos puderam realizar trocas de conhecimentos a partir dos seus conhecimentos ancestrais”
Não por acaso, foram realizadas conversas sobre saúde mental nesse mesmo dia; debates sobre mulheres indígenas, política e territórios; práticas de artesanatos e autossustentabilidade. No dia a dia, essas temáticas precisam coexistir para garantir a possibilidade de a mulher indígena ser protagonista.
Falar sobre saúde mental é também falar sobre autoestima, e autoestima também é sobre o processo terapêutico dos seus próprios artesanatos, essa mesma bioprodução que tem gerado o que é chamado de sustentabilidade econômica, cultural, política, ambiental para as comunidades, que garantem suas lutas e permanências nos seus territórios.
“Falar sobre saúde mental é também falar sobre autoestima, e autoestima também é sobre o processo terapêutico dos seus próprios artesanatos”
O último dia do encontro – 26 de março – foi marcado por rituais e apresentações das sínteses dos Grupos de Trabalhos (GTs), processos avaliativos da atividade. O encerramento foi acompanhado por um momento místico de despedida, com trocas de presentes e bênçãos das anciãs, e muita chuva.
Ao longo das atividades – que contaram com a presença de lideranças indígenas e das mulheres do Cimi Regional Leste –, percebeu-se que o reconhecimento do papel das mulheres ultrapassa a linha do que é descrito como subsistência ou autossustentabilidade. Vai para além disso: pode-se afirmar que o papel desempenhado ganha contornos de “garantia de sustentabilidade econômica, social, política, cultural e ambiental”, e pode se ancorar na capacidade de coletivos de mulheres pautarem mudanças locais e em políticas públicas.
Pôde-se perceber, ainda, na realização das oficinas práticas de miçangas, cerâmicas e nas oficinas temáticas “Sustentabilidade e comércio justo” e “A participação e empoderamento das mulheres frente à luta pela terra”, que as mulheres indígenas exercem um papel fundamental para a sobrevivência dentro dos territórios. Responsáveis pela produção de artesanato e de outros artefatos, as mulheres garantem a subsistência econômica e cultural do meio que vivem. Ao mesmo tempo, assumem historicamente o papel de educadoras, inclusive se profissionalizando para assumir as escolas indígenas, o que as tornam influentes disseminadoras de conhecimentos.
“As mulheres indígenas exercem um papel fundamental para a sobrevivência dentro dos territórios”
Por assumir os cuidados de saúde não-tradicional, trabalhando em espaços de políticas de saúde – hospitais, Polos Base e o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), por exemplo –, as mulheres colaboram para que sua presença seja vista de outra forma, ainda que não se equiparem aos pajés – devido às dificuldades estruturais. Muitas se destacam pela prática de medicina tradicional, usando fitoterápicos e os seus conhecimentos ancestrais, manifestados por meio de rezas e do uso de ervas.
Essa questão ficou bem evidenciada na oficina de plantas medicinais e na oficina temática “A cura da terra e o cuidado com a Casa Comum”. Outro ponto abordado é que há espaços públicos que facilitam a percepção do valor da igualdade de gênero, sendo principalmente a subsistência econômica, a educação formal e informal e a garantia de vida e de seus territórios.
Esse encontro foi realizado pelo Conselho Indigenista Missionário – Regional Leste e lideranças Tupinambá de Olivença, que participaram de todo o processo de construção. Com uma calorosa acolhida, as Tupinambá de Olivença foram as anfitriãs dos diversos povos presentes. Esse momento ímpar contou ainda com o importante apoio da Misereor, Cáritas Alemã e Países Baixos.