21/10/2022

Joênia Wapichana e o apoderamento dos espaços para a ampliação do protagonismo indígena na política

A trajetória de Joênia Wapichana, a primeira deputada federal indígena na história e terceira representante indígena no parlamento brasileiro, que abriu caminhos para a “bancada do cocar”, eleita em 2022

Joênia Wapichana. Foto: Tiago Miotto

Por Hellen Loures, Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 449 DO JORNAL PORANTIM

Há 40 anos, o cacique Xavante Mário Juruna fez história ao se tornar o primeiro indígena a ocupar uma cadeira no parlamento brasileiro. Com mais de 31 mil votos, ele foi eleito como deputado federal pelo PDT no Rio de Janeiro e abria caminhos para a visibilidade indígena. Era o começo da conscientização sobre o papel do povo originários e sua representatividade na política. Após seu mandato, o país voltou a ter representação indígena no Congresso Nacional somente em 2014, quando José Carlos Nunes da Silva (PT-ES) foi eleito deputado estadual no Espírito Santo.

Mas foi nas eleições de 2018 que o protagonismo e a força das mulheres originárias ficaram historicamente conhecidas, quando Joênia Batista de Carvalho – Joênia Wapichana – fez ecoar, no Congresso Nacional, as vozes até então silenciadas das mulheres indígenas.

Naquele ano, pela primeira vez, foram registradas a candidatura de três mulheres indígenas na busca por representar efetivamente seu povo e sua etnia diante do cenário político brasileiro: Sonia Guajajara para a Vice Presidência, Telma Taurepang para o Senado Federal pelo Estado de Roraima e Joênia Wapichana para o cargo de Deputada Federal também pelo Estado de Roraima. Esta, na ocasião, eleita com 8.434 votos, se tornando exemplo de liderança e representatividade feminina nas lutas das mulheres e dos povos indígenas na Câmara Federal.

A partir daí, o crescente processo de representação e visibilidade das mulheres indígenas, por meio do protagonismo desse grupo, vem fortalecendo o cenário político que muitas vezes era invisibilizado. É um movimento de construção e de ressignificação de estruturas organizativas que muitas vezes se entrelaçam – seja de gênero, seja étnico-racial. É a busca dos povos originários e da mulher indígena no meio político para frear a desigualdade e as injustiças.

Sua trajetória – carregada por caminhos que legitimam a bandeira histórica de luta e resistência de seu povo -, serviu de exemplo e incentivo para que um novo grupo se reerguesse diante da política nacional neste ano

Na ONU, Joênia Wapichana recebe o Prêmio de Direitos Humanos 2018. Primeira advogada indígena do Brasil foi premiada ao lado da ativista dos direitos das meninas na Tanzânia Rebecca Guymi, da advogada de direitos humanos no Paquistão Asma Jahangit e da fundação Front Line Defenders da Irlanda. Foto: Evan Scheneider / ONU

Nesse sentido, Joênia Wapichana imprimiu uma nova forma de olhar a política. Sua trajetória – carregada por caminhos que legitimam a bandeira histórica de luta e resistência de seu povo -, serviu de exemplo e incentivo para que um novo grupo se reerguesse diante da política nacional neste ano, se fortalecendo à medida que a mulher indígena vem tomando posse dos espaços que também lhes pertencem.

Trajetória

Antes mesmo de sua candidatura, Joênia já fazia história como a primeira mulher indígena a se formar em direito no Brasil, em 1997, pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Outro feito foi a conclusão de seu mestrado pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Uma trajetória que embasou ainda mais suas ações contrarias as violações dos direitos dos povos indígenas, levando-a, em 2008, a ser a primeira mulher indígena a fazer uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal – STF, durante a homologação que definiu os limites contínuos da Terra indígena Raposa Serra do Sol.

Joênia Wapichana construiu sua trajetória e identidade junto à comunidade, buscando representar os povos indígenas na busca pelos direitos que por lei são garantidos e ao mesmo tempo lutando por reparações que ainda não foram totalmente reconhecidas.

Apesar de toda sua história e atuação, a parlamentar não se reelegeu para o mandato de 2023 – 2026. Numericamente, Wapichana teve mais votos que outros três candidatos na região, foram 11.221 votos. Ela foi a sexta candidata mais votada na classificação geral, mas sua reeleição foi impossibilitada pelo coeficiente eleitoral roraimense.

Joênia, entretanto, tornou-se uma personalidade de destaque nacional e internacional no cenário político brasileiro e, por ser uma voz feminina indígena que é resistência, continuará sendo referência, independente do status que ocupe. A quem diga que ela possa vir a ocupar o posto de ministra dos Povos Originários, tendo em vista que o candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), garantiu em sua campanha que, se eleito, irá criar tal ministério.

Uma coisa é certa, Joênia Wapichana semeou a agenda indígena e de apoio às mulheres originarias na Capital Federal e, agora, em 2023, outras guerreiras da ancestralidade poderão dar continuidade ao seu legado no Congresso Nacional. Sônia Guajajara Psol/SP, Célia Xakriabá PSOL/MG e Juliana Cardoso PT/SP serão os nomes das representantes indígenas dentro do parlamento brasileiro até 2026.

O que essas mulheres tem em comum? Elas vêm construindo uma visibilidade nacional com suas lutas e demandas, transformando a maneira como outras mulheres indígenas se posicionam frente a sociedade opressora e racista, reagindo a toda investida de violação e conquista de seus territórios tradicionais.

A seguir, entrevista inédita de Joênia Wapichana ao Jornal Porantim. Nela, a liderança indígena fala sobre sua trajetória enquanto parlamentar e também sobre as perspectivas do processo de articulação da pauta indígena no Brasil.

Porantim – Quais foram os maiores desafios enfrentados durante o período em que esteve na cadeira de Deputada Federal pelo Estado de Roraima?

Joênia Wapichana – Foram inúmeros os desafios. O primeiro por estar num espaço onde a maioria dos parlamentares era da base do governo e somente uma minoria, entorno de 130 parlamentares, faziam parte da oposição. Consequentemente, vimos ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça o Projeto de Lei (PL) 490, que traz em seu texto impactos significantes para a demarcação de terras indígenas. O desafio foi convencer os parlamentares da importância de não reduzir os direitos constitucionais e não desmontar a política indigenista. E, principalmente, quando me deparei com a pandemia de Covid-19, que era necessário um projeto específico para assegurar a saúde dos povos indígenas, ter que sensibilizar de uma forma bem clara, dizendo não se tratar de uma disputa sobre direitos, mas sim a garantia a vida de cidadãos e cidadãs brasileiras indígenas que mereceriam uma política específica e diferenciada para o enfrentamento da Covid.

Creio que o bolsonarismo e todo esse pensamento que traz as pessoas que defendem o governo, o negacionismo em torno de algumas questões ambientais, o período que vimos avançar o desmatamento na Amazônia e, principalmente, a contradição em termos de desenvolvimento econômico fez com que precisaremos vencer esse tipo de ideologia para não retroceder ainda mais os direitos.

Outro desafio foi justamente encaminhar as denúncias relacionadas a violação de direitos dos povos indígenas, principalmente relacionadas aos garimpos ilegais, uma vez que apenas eu atuava como parlamentar indígena em todo o país.

Porantim – Qual sua análise a respeito do legado deixado de ampliação da participação das mulheres indígenas no espaço social e da abertura do diálogo para a pauta indígena?

Joênia Wapichana – Desde que fui eleita, sempre motivei a participação indígena nos processos eleitorais, por entender que o exercício dos direitos civis e políticos são uma ferramenta também de defesa desses direitos. E que a participação dos povos indígenas, especialmente das mulheres, vem somar como mecanismo de proteção e de protagonismo, além também de luta pelos interesses, uma vez que a participação política ela nos dá a possibilidade de fazer proposições, de manifestar as nossas opiniões e de possibilitar a defesa dos direitos constitucionais. Então, eu sempre coloquei que não gostaria de ser a única e nem a última, já que os povos indígenas tem todo direito de exercer sua cidadania, de voltar, mas também de ser votado e, principalmente, de reivindicar seus direitos e de tomar decisões sobre suas vidas.

Porantim – Quais serão os novos caminhos que irá percorrer após o encerramento do mandato?

Joênia Wapichana – Continuarei na defesa dos direitos dos povos indígenas. Sou advogada por profissão, tenho uma trajetória na defesa da causa indígena e estou disponível para qualquer convite do governo, pois quero contribuir nas políticas públicas, no exercício dos direitos indígenas e continuar acompanhando essa pauta, mesmo que de outras formas, atuando como ativista de defesa de direitos ou nos muitos projetos que iniciei na Câmara dos Deputados. Creio que é possível continuar fazendo Advocacy dentro do parlamento e vou continuar fazendo isso em outras frentes, apoiando as organizações indígenas a partir do movimento indígena.

Porantim – Qual sua perspectiva a respeito da atuação das novas representantes indígenas eleitas para o mandato de 2023 – 2026? Quais os desafios elas encontrarão atuando em prol dos direitos indígenas e das reparações históricas que ainda não foram totalmente reconhecidas?

Joênia Wapichana – Eu espero que elas consigam continuar esse trabalho de representação política indígena parlamentar. Eu fiquei por quase quatro anos sozinha ali e o desafio de ser líder me deu oportunidade de ter espaços dentro da casa. Agora, num outro cenário, com uma bancada – a bancada do cocar – que vem maior número, eu espero que elas consigam fazer um trabalho mais articulado, mais intenso. Eu sei que a nova composição da próxima legislatura também será de maioria de bolsonarista, ruralistas e de pessoas que querem retalhar os direitos dos povos indígenas. No entanto, estamos com o Executivo que se manifestou a favor dos povos indígenas, que fez propostas e promessas de governo para que resolva questões urgente como a retirada de garimpos e que se propôs a revogar atos administrativos que revertem direitos. Que o Executivo então possa fazer um trabalho conjunto com a bancada cocar no sentido de possibilitar a consolidação de algumas políticas públicas, tais como a participação social dos povos indígenas, através do Conselho Nacional de Política Indigenista; que possam trabalhar um orçamento mais condizente com a realidade dos povos indígenas, para que haja proteção das terras, fiscalização e monitoramento; que a educação indígena tenha a promoção de mais ações e programas que visam proteger as línguas indígenas; e que a questão saúde indígena possa ser fortalecida. Minha perspectiva é que a bancada do cocar possa ter mais possibilidade de avançar nas políticas públicas indígenas.

 

Conheça as representantes indígenas para o mandato de 2023-2026

Sônia Guajajara é a primeira mulher indígena eleita como deputada federal por São Paulo, com mais de 156 mil votos, o maior número já obtido por um indígena na história. A representante dos povos originários também foi candidata a vice-presidente na chapa do PSOL encabeçada por Guilherme Boulos na eleição de 2018 – a primeira indígena a concorrer ao cargo. Guajajara nasceu na Terra Indígena Araribóia (MA), atua no movimento indígena há mais de 20 anos e é formada em Letras e Enfermagem e especialista em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Sônia é uma personalidade muito homenageada e premiada por sua atuação em defesa dos direitos humanos dos povos indígenas.

Célia Xakriabá é a primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal por Minas Gerais, com mais de 101 mil votos. A professora ativista do povo Xakriabá é mestra em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília e doutoranda em antropologia pela UFMG. Ela dedica-se à luta pelos direitos das línguas indígenas ameaçadas e é uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade.

 

Juliana Cardoso PT/SP se autodeclara afro-indígena (mãe negra e pai indígena), é educadora e é a única mulher indígena na Câmara Municipal de São Paulo. Em seu quarto mandato como vereadora pelo PT no estado, Cardoso já presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal e criou o Conselho Municipal dos Povos Indígenas. Ela é a primeira indígena eleita deputada federal pelo partido dos Trabalhadores – PT, com mais de 125 mil votos. Juliana atua nas áreas de direitos humanos, direitos das mulheres, moradia popular, saúde pública, assistência social, infância e juventude.

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