28/09/2022

Década Internacional das Línguas Indígenas evidencia a riqueza da diversidade linguística brasileira

Museu da Língua Portuguesa faz indicação importante de obras que ampliam o alcance da questão indígena no país; “Povos indígenas: terra, culturas e lutas”, uma obra de Benedito Prezia, faz parte da seleção

Por Hellen Loures da Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 448 DO JORNAL PORANTIM

No país que possui mais de 200 línguas faladas, fazer uma seleção dos dez melhores livros que orientam quem busca aprender tanto línguas quanto culturas e cosmologias indígenas – levando em consideração que são muito diversas as visões de mundo desses povos – parece ser uma missão um tanto desafiadora. Mas o Museu da Língua Portuguesa, em comemoração ao início da Década Internacional das Línguas Indígenas – um movimento dos povos indígenas de todo o mundo organizada pela Unesco –, realizou esse importante trabalho, relacionando as publicações que consideraram ser mais importantes para quem pretende adentrar o universo dos povos originários do Brasil e evidenciando a riqueza da diversidade linguística brasileira.

“Povos indígenas: terra, culturas e lutas”, uma obra do historiador e escritor Benedito Prezia, estruturada como um livro didático que apresenta um panorama geral sobre a realidade indígena brasileira, foi uma dessas obras. “Busquei apresentar o olhar diferenciado dos povos indígenas sobre temas importantes como o respeito pela terra, a diversidade cultural, o papel do idoso, da mulher e da criança nas comunidades indígenas, a dimensão do sagrado, a luta pela sobrevivência e os indígenas vivendo em contexto urbano”, diz Prezia sobre sua obra em entrevista ao jornal Porantim.

A ideia é que, ao fim do livro, os leitores se sintam estimulados a conhecer mais sobre esses povos, tornando-se também aliados em suas lutas

Povos indígenas: terra, culturas e lutas”, uma obra de Benedito Prezia

Já Museu da Língua Portuguesa, ao descrever o livro de Prezia, destacou: “com muitas fotografias de atividades cotidianas de diferentes culturas, o material contribui para a expansão do repertório imagético que o público geral tem sobre esses povos. Além disso, somos apresentados a diversos grupos que vivem em áreas urbanas, desfazendo o mito de que indígenas vivem apenas em meio à floresta. Ao longo de sete capítulos, com boxes e seções de conteúdo extra, são focalizados aspectos importantes da cultura (como o papel da mulher, dos idosos e das crianças), bem como o universo religioso de alguns povos.  A ideia é que, ao fim do livro, os leitores se sintam estimulados a conhecer mais sobre esses povos, tornando-se também aliados em suas lutas”.

 

 

Sobre o autor

Benedito Antônio G. Prezia, formado em filosofia, atua na questão indígena desde 1983, tendo trabalhado no Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Brasília, de 1983 a 1991. A partir de 1992 passou a ministrar a História da Resistência Indígena no Brasil no Curso de Formação Básica do Cimi. Em 1997, tornou-se mestre em Linguística Geral (USP) com o tema “Os indígenas do planalto paulista, nas crônicas quinhentistas e seiscentistas”, publicado pela Editora Humanitas (USP, 2ª. ed. 2010). Em 2008, doutorou-se em Ciências Sociais (PUC-SP) com a tese “Os Tupi de Piratininga, acolhida, resistência e colaboração”. Em 2001, participou da fundação do Programa Pindorama para indígenas na PUC-SP. É autor de vários livros paradidáticos sobre a temática indígena, como “Terra à vista, descobrimento ou invasão” (Moderna, 3ª. ed. e 30a reimpr., 2015); “Marçal Guarani, a voz que não pode ser esquecida” (Expressão Popular, 2ª reimpr., 2009) e “Virando gente grande” (4ª reimpr., 2014). É co-autor dos livros “Esta terra tinha dono” (FTD, 6ª ed. 2000), “Brasil indígena, 500 anos de resistência” (FTD, 2ª. ed. 2004), “Povos Indígenas, terra é vida” (Atual/Saraiva, 7ª ed., 2013) e “A criação do mundo e outras belas histórias”.

 

 

Além da obra de Prezia, o livro de Aryon Rodrigues, “Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas”, organizado pelo Cimi, também foi eleito como uma das dez melhores obras para conhecer as culturas indígenas. O livro de Aryon, elaborado com textos publicados no jornal Porantim na década de 1980, entrou também para outra lista, a das dez obras de referência do século.

Tal publicação, segundo o Museu da Língua Portuguesa, é essencial nos estudos da área e organiza, de forma sistemática, conhecimentos sobre as línguas indígenas no Brasil e as relações que se descobriu entre elas. “Por seu caráter de divulgação, destina-se ao público geral, não apenas a especialistas, de modo que conversa com qualquer pessoa interessada nos povos indígenas desse país. O autor, no início do livro, já deixa avisado a quem o lê que não há um povo indígena, mas sim muitos povos, diferentes entre si, cada qual com seus próprios costumes, tecnologias, organizações sociais, filosofias e, claro, línguas. É um ótimo começo para adentrar a ampla diversidade linguística – e cultural – do nosso país”, destaca.

O Museu da Língua Portuguesa lembra ainda que o Brasil é o 10º país no ranking de diversidade linguística e que não são todos os países do mundo que possuem tamanha riqueza linguística. Eles enfatizam que “conhecer a riquíssima diversidade linguística e cultural do Brasil contribui tanto para o entendimento de nossa história, como para a promoção do respeito à pluralidade de existências.

 

 

Confira as outras oito publicações indicadas pelo Museu:

– Línguas indígenas: tradição, universais e diversidades, Luciana Storto. Campinas: Mercado de Letras, 2019.

– Índio Não Fala só Tupi: uma viagem pelas línguas dos povos originários no Brasil, Bruna Franchetto e Kristina Balykova (org.). Rio de Janeiro: 7Letras, 2022.

– Método moderno de tupi antigo – A língua do Brasil dos primeiros séculos, Eduardo de Almeida Navarro. São Paulo: Global, 2006.

– Diversidade linguística indígena: estratégias de preservação, salvaguarda e fortalecimento. Iphan, Brasília, 2020.

– Fala de bicho, fala de gente. Cantigas de ninar do povo Juruna. Cristina Martins Fargetti, participação de Marlui Miranda. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.

– Jene Ramỹjwena Juru Pytsaret: O que habitava a boca de nossos ancestrais, Lucy Seki. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2010.

– A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, Davi Kopenawa e Bruce Albert (trad. Beatriz Perrone-Moisés). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

– Nós: uma antologia de literatura indígena, Mauricio Negro (org.). São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2019.

 

A exemplo do levantamento do Museu da Língua Portuguesa, que busca comemorar o início da Década Internacional das Línguas Indígenas, o Porantim traz uma entrevista inédita com um dos autores indicados, Benedito Prezia, como forma de homenagear a riquíssima diversidade linguística e cultural do Brasil.

Porantim – O que representa a indicação dessas obras, em especial do seu livro?

Prezia – O Museu da Língua Portuguesa é uma grande referência e isso dá mais peso a essa indicação, sobretudo, no contexto do bicentenário da Independência do Brasil. Diante do fato inusitado do Itamarati ter trazido ao Brasil o coração de Dom Pedro I, essa seleção de 10 obras mais significativas sobre a questão indígena, incluindo nosso livro, sinaliza que o Museu está tendo um olhar mais “para dentro” e não “para fora”, como ocorreu inicialmente ao escolher um conto de José Saramago, autor português, para uma encenação no próprio museu. A pergunta que fazia comigo era: por que não foi escolhido um autor brasileiro, do grupo da Semana de Arte Moderna, como Mário de Andrade, ou algum outro modernista, como Jorge Amado ou Guimarães Rosa?

Fico satisfeito em ver que a primeira obra dessa relação foi o livro do professor Aryon Rodrigues, Línguas brasileiras, para conhecer as línguas indígenas (Loyola, 2002, 4ª. ed.) obra organizada pelo Cimi, com artigos publicados no Porantim na década de 1980. Espero que essa indicação leve mais pessoas a conhecer esse e outros livros desse elenco, divulgando de forma mais ampla a questão indígena.

Porantim – Como a sua publicação e a de autores que abordam essa temática tem contribuído para a causa indígena?

Prezia – Penso que é difícil medir esse alcance, mas acredito que pelo fato de alguns de meus livros ainda estarem sendo vendidos, após 30 anos, como é o caso do livro Terra à vista, descobrimento ou invasão (Moderna, 2012, 3ª. ed. 7ª. impr.), indica que há um interesse pelo assunto. Com as várias edições, penso que o livro já foi reimpresso cerca 30 vezes. Esse livro tem tido boa aceitação, pois questiona o chamado “descobrimento do Brasil”. Nele reproduzo o relato da carta de Pero Vaz de Caminha, mas a partir do indígena. A pergunta é: como aquele grupo nativo teria recebido os portugueses em 1500? Acredito que hoje há muitos professores e alunos que não chamam mais aquele fato de “descobrimento”.

A partir do final dos anos 90, pelo menos no estado de São Paulo, houve um maior interesse pela temática indígena, não só pela quantidade de títulos abordando esse assunto, mas pela vivência que tive com meus livros junto a professores e alunos. Fui também um dos autores de Esta Terra Tinha Dono, publicado pelo Cimi em parceria com a editora FTD, em 1989, e que teve muito boa aceitação. Entrou na bibliografia do concurso para professores da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1990, tendo sido comprada uma edição de 60 mil exemplares pelo governo do Estado de São Paulo. No ano seguinte, o MEC comprou mais 6 mil exemplares. Em 2000 foi lançada a 6ª. edição revista, com uma nova capa. Com um título provocador, a obra chegou a incomodar fazendeiros da região de Dourados (MS), como soube em uma de minhas viagens por lá. Penso que a linha que tenho adotado, questionadora e colocando o indígena como protagonista, ajuda a mudar a visão dos leitores. Um dos meus últimos livros, História da Resistência Indígena, 500 anos de luta (Expressão Popular, 2019, 2ª. reimpressão) mostra o interesse pelo tema, pois essa reimpressão corresponde à 3ª edição, estando esgotada. Um dos problemas de se publicar no Brasil é o preço final do livro. A obra Terra à Vista, com 63 páginas, está custando R$ 68,00, preço proibitivo para alunos e professores de escolas públicas. Quando vou dar palestra, levando meus livros, sempre os vendo com o desconto que recebo como autor, ficando com um valor bem mais acessível.

Porantim – Qual a importância dessa literatura militante na disseminação de outras visões de mundo?

Prezia – Acredito que ajuda bastante o público brasileiro a ter uma visão diferente, não apenas do mundo, mas também dos povos indígenas. Um dos livros que fiz em pareceria com um estudante Guarani Nhandeva, de São Paulo – A criação do Mundo e Outras Belas Histórias Indígenas (Formato/Saraiva, 2020, 5ª. tiragem) – procura mostrar a riqueza e a beleza da literatura indígena. Deveria se chamar As Belas Palavras Indígenas, mas a editora achou que não era um título muito vendável. Por isso sugeriu esse outro, com apelo maior para professores do ensino fundamental.

A ideia dessa coletânea era apresentar textos sobre a Mãe-terra, a espiritualidade indígena, a partilha e a literatura. Trazia pequenos poemas em língua nativa, como o quéchua e o guarani.  Quando foi lançado, pelo fato de a editora estar em processo de venda, a obra não teve a saída esperada. Mas ao ser vendida para um grupo empresarial (Somos Educação), teve uma comercialização maior, embora o preço alto ainda seja um complicador, como indiquei acima.

No meu último livro, Povos indígenas, terra, culturas e lutas (Expressão Popular/Outras Expressões, 2020, 2ª. ed.), e que está nessa lista do Museu, busquei apresentar o olhar diferenciado dos povos indígenas sobre temas importantes como o respeito pela terra, a diversidade cultural, o papel do idoso, da mulher e da criança nas comunidades indígenas, a dimensão do sagrado, a luta pela sobrevivência e os indígenas vivendo em contexto urbano.

Infelizmente, essa 2ª edição saiu no início da pandemia, o que dificultou sua divulgação. Agora é que estou sendo convidado para algumas palestras. A vantagem desta editora sobre as demais são os preços acessíveis dos livros, pois é uma editora militante. Mas, na atual conjuntura, não sabemos até quando vai resistir.

Porantim – Como você enxerga o futuro dessas publicações?

Prezia Nos governos do PT, o Estado era o grande comprador de livros didáticos e paradidáticos. Assim, bons livros chegavam às escolas com mais facilidade. Mas não adianta somente colocar um bom livro na biblioteca escolar. É preciso que o professor esteja preparado para trabalhá-lo em sala de aula, o que nem sempre ocorre. Por isso um dos meus alvos é a formação dos professores, para que sejam reprodutores dessa nova visão. Mas precisaria haver a volta da política de compra de livros paradidáticos por parte do MEC e um trabalho junto às televisões para debater esse tema. Felizmente, agora, os indígenas estão tendo mais voz. Há uma grande produção de livros indígenas, sobretudo, na área infantil. É o que vi, recentemente, ao doar meu acervo de literatura indígena para uma biblioteca especializada na PUC-SP.

Hoje, está mais difícil publicar novas obras, pois quase todas editoras estão em crise financeira. Mesmo assim precisamos encontrar parceria e estimular os indígenas a escreverem e a produzirem literatura.

Comecei minha experiência como “escritor” no Cimi, publicando os Subsídios Didáticos (Série A e B), que era um material vendido por ocasião da Semana dos Povos Indígenas. Lançamos 8 fascículos, que eram bem aceitos, pois houve várias reimpressões.

Mais tarde, ao dar um curso para professores da cidade de Osasco, na Grande São Paulo, usei dois textos do fascículo Somos Assim, que relatavam o ritual de passagem de alguns povos indígenas. Vi que aqueles relatos poderiam interessar adolescentes e professores. Resolvi escrever rituais de outros povos, reunindo seis episódios e encaminhei para a editora Moderna, que aceitou a proposta. Assim surgiu um novo livro que se chamou Virando Gente Grande (Moderna, 2010). No ano seguinte a obra recebeu da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil o selo de altamente recomendável. Isso mostra que os analistas estão mais sensíveis e atentos a esse tema. O livro já teve duas reimpressões.

A experiência com o livro Esta Terra Tinha Dono mostrou que as publicações institucionais, como essas do Cimi, atingem um público mais limitado. Via que era preciso ampliar e atingir um público maior. Por isso optei por publicar em editoras comerciais. Já lancei oito títulos. No caso do livro citado acima, teve seis edições, atingindo quase 90 mil exemplares, como comentei, indo a maior parte desses livros para as escolas.

Porantim – Você acredita na possibilidade de o nosso processo pedagógico criar um olhar diferenciado para essas diversas narrativas existentes?

Prezia – Acredito que sim, mas vai depender da formação dos professores, o que é um tanto difícil. A universidade não aborda esse tema e as formações que existem para professores nas suas escolas são pontuais e dependem das cidades e dos estados. Conheço a realidade da cidade de São Paulo e vejo que é bem deficiente. A questão indígena é uma “questão política” e assim os municípios que têm uma administração mais aberta são os mais sensíveis a essa temática e são os que mais oferecem uma formação. Acho que a questão afro está mais avançada, pelo fato de haver mais professores negros e as culturas afros e o racismo serem mais presentes.

Porantim – A criação dessas narrativas pelos próprios indígenas está mais consolidada?

Prezia – São temas de certa forma novos. Somente indígenas com vivência de aldeia tradicional é que conseguem abordar esses temas. Lembro-me de um pajé Guarani Mbyá, já falecido, que falava muito pouco. Era uma referência, mas a gente tinha muita dificuldade de abordar esses assuntos ou ouvir dele alguma coisa. Um membro da Pastoral Indigenista recolheu 46 depoimentos de lideranças Guarani Mbyá, reproduzidas de livros, e os colocou em fichas para trabalhar com jovens. Sugeri que fizesse um livro, pois são temas que levam à muita reflexão. Mas os indígenas com os quais tenho contato, a maior parte, é marcada pela nossa cultura dominante e nem sempre escapa desse nosso modelo cultural. Não tenho experiência com indígenas de aldeias mais tradicionais. Esse meu contato é com os que vivem em contexto urbano e oriundos do Nordeste e sinto que eles enfrentam desafios bem grandes: viver em nossa sociedade sem perder os valores tradicionais. A pressão da sociedade de consumo sobre eles é muito grande. Os indígenas vindos do Nordeste já estão num processo de aculturação muito antigo, tendo perdido a língua original e com forte miscigenação étnica.

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