13/10/2022

Aldeia Betel, na Terra Indígena Barreira da Missão (AM), recebe jovens indígenas no I Encontro de Juventude Indígena de Tefé

Aproximadamente 120 jovens indígenas de sete povos e 16 aldeias da região do médio rio Solimões e afluentes debateram temas e trocaram vivências da juventude indígena

Dom José Altevir, bispo da Prelazia de Tefé, participa da mesa de abertura do I Encontro da Juventude Indígena de Tefé. Foto: Fábio Pereira/Cimi Regional Norte I

Por Fábio Pereira e Lígia Kloster Apel, do Cimi Regional Norte I

Com o tema “Juventude indígena: Protagonizando suas lutas e fortalecendo sua organização na defesa da vida e de seus territórios”, o I Encontro da Juventude Indígena de Tefé reuniu, no período de 7 a 9 de outubro de 2022, na aldeia Betel, Terra Indígena Barreira da Missão, Município de Tefé, aproximadamente, 120 jovens dos povos indígenas Kokama, Kambeba, Ticuna, Mayoruna, Kaixana, Miranha e Apurinã, das aldeias Porto Praia, Nova Aliança, Severino, Vasques, Betel, Barreira da Missão de Cima, Barreira da Missão de Baixo, Barreira da Missão do Meio, Boarazinho, Boará, Boará de Cima, Arauiri, Projeto Mapi, Kanata Ayetu, do município de Tefé, Tupã Supé, do município de Uarini e Marajaí, do município de Alvarães.

O encontro foi realizado com o objetivo de articular, debater e animar a juventude indígena para seu protagonismo na dinâmica e luta de seus territórios, construindo um espaço de partilha dos desafios, dificuldades, expectativas, sonhos e experiências da organização juvenil locais; articulações e participação em espaços dentro e fora de suas comunidades e promover jovens lideranças comunitárias para a participação efetiva nos espaços de proposição e decisão das políticas públicas para a juventude indígena.

“Seu objetivo é articular, debater e animar a juventude indígena para seu protagonismo na dinâmica e luta de seus territórios”

O I Encontro da Juventude Indígena de Tefé reuniu, no período de 7 a 9 de outubro de 2022, na aldeia Betel, Terra Indígena Barreira da Missão, Município de Tefé, aproximadamente, 120 indígenas de sete povos. Foto: Fabio Pereira/Cimi Regional Norte I

O encontro é uma das atividades previstas no projeto “Povos Indígenas do Médio rio Solimões e Afluentes: Fonte de Resistência na Garantia de Direitos e na Defesa da Vida”, que visa contribuir com a promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas, fortalecer o protagonismo das mulheres para o rompimento do ciclo de violência e acesso aos direitos, fortalecer estratégias de lutas para proteção dos territórios, defesa dos direitos fundamentais e afirmação de seus projetos de vida, e é apoiado pela Agência Católica para o Desenvolvimento no Exterior (CAFOD).

Vários parceiros se uniram à iniciativa para apoiar a juventude indígena e contribuíram, no decorrer do encontro, com os debates das diversas temáticas trabalhadas. Estiveram presentes representantes da Associação das Mulheres Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (AMIMSA), da Articulação dos Povos Indígenas da Cidade de Tefé (AINCT), da Associação dos Povos Indígenas da Cidade de Tefé e Entorno (APICTE), da Coordenação Municipal de Educação Escolar Indígena de Tefé, da Coordenação Municipal de Assuntos Indígenas de Tefé, do Projeto Tecedor@s de Paneiros, da União dos Povos Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (UNIPI – MRSA), do Projeto Ampliando Vozes, do Bispo da Prelazia de Tefé, do Representante do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), da Fundação Nacional do Índio – CTL Tefé, professores e professoras indígenas e lideranças tradicionais das aldeias.

Uma das principais análises feita pelos jovens e organizações parceiras durante o evento é que, no contexto de retrocessos e ataques sistemáticos aos direitos dos povos indígenas, a juventude é um dos segmentos que mais sofrem pela falta de perspectivas e oportunidades impostas pelo projeto político excludente do atual governo. Sem conseguir acessar seus direitos básicos, os jovens estão sujeitos a todo e qualquer tipo de violência, seja física, cultural, psicológica e estrutural, o que lhes empurra para uma condição de vida sem perspectivas, “à margem da sociedade”.

Para Wellinton Santos Kambeba, da comunidade Betel, o encontro vem para resgatar a cultura, ensinar sobre os direito e deveres indígenas e, assim, denunciar esse sistema. “Achar que ser índio é aquele que vive no mato é errado. Nós aprendemos um pouco de tudo e mostramos que somos indígenas em qualquer lugar. E com direitos. Isso é muito importante para nós e para a comunidade, é fonte de conhecimento e estaremos sempre nessa luta”.

“Nós aprendemos um pouco de tudo e mostramos que somos indígenas em qualquer lugar”

Apresentações durante o I Encontro da Juventude Indígena de Tefé (AM). Foto: Fábio Pereira/Cimi Regional Norte I

Memória, cultura e conhecimentos

Abgail Medeiros Kambeba, Tuxaua da aldeia Barreira da Missão, que sediou o encontro, manifestou a alegria em receber o I Encontro da Juventude Indígena na sua aldeia. “Os dias que vocês irão passar aqui, estaremos para servir, para ajudar no que precisarem. Aproveitem os conhecimentos repassados, aprendam e pratiquem nossos conhecimentos”, afirmou Abgail.

“Aproveitem os conhecimentos repassados, aprendam e pratiquem nossos conhecimentos”

Abgail é filha de Zacarias Medeiros Kambeba, liderança respeitada pelos Kambeba – e que já fez sua travessia para o mundo dos encantados, mas que deixou o legado da contribuição com a organização do movimento indígena e da luta pela demarcação das terras indígenas na região do médio rio Solimões e afluentes.

Com cantos e danças do povo Kambeba, a anfitriã recebeu os parentes das aldeias e conclamou a todos para “fincarem sua morada durante os três dias de programação, de debates, plenárias, formação, de convivência, partilha e teçume de esperanças, de perspectivas da organização da juventude indígena de Tefé”.

A viúva de Zacarias, Raimundinha Medeiros Kambeba, que sempre esteve junto com o companheiro, também manifestou sua alegria em ver a juventude reunida. Disse que, a exemplo dos seus filhos, a participação dos jovens na luta é fundamental para a vitória. “Estamos felizes e sempre junto para ajudar o que precisarem. Nossos filhos sempre estiveram participando do movimento ao nosso lado, na luta pela nossa terra, que hoje é demarcada e homologada. Resultado da luta pela nossa nação indígena”.

A jovem Taline Medeiros Frazão Kambeba, entoou o hino nacional na língua materna Kambeba, trazendo para o centro da oca [local da reunião], o espírito de pertencimento à cidadania brasileira, como povos que contribuíram de forma expressiva na formação do povo brasileiro e que, hoje, são negligenciados em seus direitos, chamados pejoradivamente de “índios que congelaram no tempo”, por um sistema politico que exclui, persegue e mata.

Manoel Ribeiro Tikuna, liderança tradicional da Barreira da Missão de Cima, também um dos precursores do movimento indígena e da luta pela demarcação dos territórios na região, considera que a luta indígena é uma herança para a juventude: “Nem todos conhecem a história do movimento indígena e o que passamos para ter nossas conquistas, mas deixamos a herança para todos vocês. Sempre lutamos por melhorias e, junto com parceiros, queremos o melhor para os jovens”.

“Nem todos conhecem a história do movimento indígena e o que passamos para ter nossas conquistas, mas deixamos a herança para todos vocês”

A Constituição Federal foi abordada durante o I Encontro da Juventude Indígena de Tefé (AM). Foto: Fábio Pereira/Cimi Regional Norte I

Para o jovem indígena – uma das mais novas lideranças da aldeia Betel –, Rangel da Silva Santos Kambeba, o encontro é um marco para a juventude indígena de Tefé e municípios vizinhos, que traz a revitalização da cultura indígena para a sua continuidade. “O primeiro encontro é um marco importante para nós, devido às informações que recebemos. É muito bom refletir sobre as memórias de trajetória de quem já viveu a luta do movimento indígena e que hoje pode repassar para nossa juventude”, avalia. Ainda segundo Rangel, a memória da luta das gerações anteriores é uma ferramenta que fortalece as energias da juventude.

“A nossa juventude hoje precisa desses conhecimentos. Trabalhar a memória viva é, para nós, eu acredito, uma ferramenta que vai fortalecer muito mais a nossa juventude, que vai trazer conhecimento sobre nossa cultura, nossas tradições. Aquilo que estava esquecido por nossa juventude, hoje se abre um leque de informação e vale para todos que estão aqui”, disse o jovem Kambeba.

 

Conteúdos que são da vida

A juventude indígena e os diferentes aspectos de suas vidas compuseram os conteúdos das sete mesas de debate formadas e organizadas. Cada uma com sua importância e objetivo de aprofundar e iluminar a reflexão crítica sobre a realidade e, assim, construírem propostas e estratégias de luta e organização.

Memória e resistência do movimento indígena na região do médio rio Solimões e afluentes; políticas públicas e controle social para os povos indígenas, desafios e perspectivas da educação escolar indígena; a juventude e os desafios do contexto social; formas de organização da juventude indígena e a comunicação como instrumento de luta para conquista de direitos, foram os assuntos das mesas que contaram com lideranças indígenas locais e compartilharam suas experiências, conquistas e as motivações que os impulsionam a seguir na luta pelo projeto de vida e do Bem Viver dos povos.

Dom José Altevir, Bispo da Prelazia de Tefé, presente na mesa de abertura do evento, diante de tantos assuntos relacionados à vida da juventude indígena disse que o encontro é uma importante oportunidade de trazer os jovens para a frente de suas lutas, ouvindo as experiências dos mais velhos, compondo a organização indígena e unindo forças em defesa da vida, dos direitos e de seus territórios.

“Sem dúvida, o objetivo do encontro é unir forças em torno do Bem Viver das comunidades indígenas. Esse espaço é uma das oportunidades para os jovens indígenas se expressarem, dizerem o que pensam de uma maneira mais livre, ouvir os mais velhos e unir-se a eles para que seus direitos não sejam violados, de manter a responsabilidade da continuidade de sua cultura, costumes e tradições, de aprenderem com os mais idosos”, destacou o Bispo.

“Esse espaço é uma das oportunidades para os jovens indígenas se expressarem, dizerem o que pensam de uma maneira mais livre”

Com dinâmicas e metodologias participativas, os jovens debateram, interagiram, trocaram experiências e vivências tanto nos grupos de trabalho como em momentos de descontração e culturais. Nas noites, após os trabalhos, sob a luz da lua e com os pés descalços no terreiro da aldeia, os jovens dos diferentes povos entoaram e dançaram seus cantos e rituais.

 

Saúde mental: conversar para promover

Um dos temas mais importantes do evento foi a saúde mental da juventude indígena. Considerando que nos últimos anos os casos de suicídio e depressão juvenil têm aumentado significativamente, o encontro trouxe o assunto para o centro do debate.

O psicólogo David Pinheiro, do serviço no Centro de Atenção Psicossocial de Tefé (CAPS), participou do encontro trazendo dados que preocupam. Segundo as informações do Distrito Sanitário Especial Indígena – Médio Rio Solimões e Afluentes (DSEI/MRSA), em 2020, houve três casos e, em 2022, foram dois casos e uma tentativa de suicídio.

Sendo uma realidade bastante desafiadora, David diz que o assunto deve ser tratado com cautela e sabedoria. E que, juntos, profissional e lideranças, podem levantar pontos que contribuam com a saúde mental dos jovens. “É importante falar sobre saúde mental com a juventude indígena. Vamos contribuir levantando questões sobre saúde mental e sobre a importância do cuidado dessa parte psicológica que afetam a juventude indígena. É necessário levantar essa bandeira do cuidado pessoal, com um olhar contínuo, cuidadoso”.

“É necessário levantar essa bandeira do cuidado pessoal, com um olhar contínuo, cuidadoso”

Para os jovens presentes, David apontou dois sentimentos que precisam de atenção, porque afetam a juventude intensamente: a ansiedade e o medo. Quanto ao medo, “é algo que pode ajudar a evitar problemas, porque a pessoa age com cautela ao ter medo”, considerou o psicólogo, dando dicas eficazes: “precisamos cuidar de nossa saúde mental ouvindo boa música, assistindo bons filmes, lendo bons livros, tirando tempo para estar consigo mesmo refletindo na vida, estar presente na família e na comunidade”, pondera.

 

Unidos para realizar os sonhos

Durante todo o encontro, nos momentos de fala, nas expressões, comentários e depoimentos dos jovens, os verbos “sonhar” e “acreditar” eram conjugados. Mas, no momento de expressar seus desejos para o futuro, os sonhos revelados e o acreditar na sua realização vieram com a partilha, refletindo a mensagem da famosa frase do escritor e poeta Miguel de Cervantes: “Quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha junto é o começo da realidade”.

Animados, os jovens passam a sonhar juntos, a falar de habilidades e conhecimentos que constroem seus sonhos para o futuro. Ser advogada, engenheiro, médico, técnico de enfermagem, integrante do exército brasileiro, ter a terra demarcada, ter saúde e educação de qualidade na aldeia e ter coragem para lutar foram alguns dos sonhos escritos em tarjetas e apresentados aos demais em uma ciranda ao som dos cantos Tikuna.

Davison Kokama, da aldeia Porto Praia, enaltecendo a participação de todos no encontro, disse que a realização de um sonho era estar ali, presente, participando. “Estar aqui é muito raro, [é difícil se encontrar] para conversar sobre nossos povos, demarcação das terras indígenas. Nossa terra está em processo de demarcação e não aceitaremos o marco temporal para retirar nossos direitos, queremos nossa terra demarcada e por isso iremos seguir lutando para a Mãe Terra ser nossa. Vamos lutar com garra e fé, em nome de Jesus iremos conseguir”, exulta, com a certeza de que os sonhos compartilhados começam a se realizar com a coletividade.

“Nossa terra está em processo de demarcação e não aceitaremos o marco temporal para retirar nossos direitos”

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Protesto contra o marco temporal. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Mariany Mayoruna, da comunidade Marajaí, município de Alvarães, é estudante de mestrado da Universidade Estadual do Amazonas, campus de Tefé, (UEA), e diz que o sonho de fazer um curso universitário se tornou realidade. Agora, ela quer contribuir com a realização dos sonhos de seus “parentes indígenas”. No encontro, ela compartilha as experiências da universidade e diz que a construção do conhecimento é importante quando é participativo, assim como os conteúdos que estão sendo debatidos no encontro.

“O grande objetivo [do encontro e dos estudos acadêmicos] é a partilha e deve servir para mobilizar a participação dos jovens das diversas comunidades indígenas a participar. É necessário que os jovens participem e construam seus saberes. Os jovens precisam exercer o protagonismo da sua história e utilizar os conhecimentos para construir, apoiar e dar continuidade às lutas de seu povo. Além de exercer seus direitos sociais, econômicos e políticos”, afirma, sintetizando em uma frase a importância dos indígenas chegarem à universidade: “Não queremos ser objeto de pesquisa, queremos ser sujeitos de direito, da nossa história”.

 

Um documento para o compromisso

Os conteúdos dos debates se tornaram propostas e demandas sistematizadas em um documento do I Encontro da Juventude de Tefé. Nele, a juventude se posiciona como sujeito de direito e reafirma seu compromisso de lutar e fortalecer o movimento indígena.

“Animados e no sentimento de esperançar, afirmamos nosso compromisso com a luta em nossas aldeias, nos movimentos, nos territórios, com nossos ancestrais, nossas culturas, nossas vidas, mesmo diante do contexto de ataques aos direitos, ousamos em resistir para existir, construindo pontes para fortalecer as alianças e parcerias em defesa das vidas dos povos indígenas”, afirma o documento, que elenca as reivindicações da juventude indígena da região.

Articular e realizar oficinas sobre direitos indígenas, tecnologias e comunicação social, produção de audiovisual e outros materiais de visibilidade; promover encontros e rodas de conversa sobre saúde e educação indígena; lutar pela efetivação das Políticas Públicas para a juventude indígena, e articular a organização de uma coordenação provisória do movimento da juventude indígena de Tefé são algumas das demandas apresentadas no documento que será encaminhado para as instituições responsáveis pelos direitos indígenas.

Outro sonho realizado pelos jovens foi a escolha de representantes dos grupos de jovens indígenas de cada aldeia, que serão as referências para iniciar a organização local. Além deles, quatro jovens indígenas foram indicados para serem mobilizadores, animadores e articuladores dos grupos nas aldeias e, junto com parceiros, organizarão a Assembleia da Juventude Indígena, a ser realizada em breve.

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