Nota do Cimi: falecimento de Ramão Fernandes Filho, liderança Kaiowá
Aty Guasu perde mais um grande guerreiro da luta pela terra; Ramão faleceu sem ver o seu tekoha devidamente demarcado
O Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Mato Grosso do Sul, com dor e indignação, lamenta profundamente a morte do guerreiro Ramão Fernandes Filho, liderança Kaiowá, falecido na madrugada do último sábado (19), na aldeia Limão Verde, em Amambai, município de Mato Grosso do Sul.
Ramão lutou bravamente na defesa dos direitos territoriais do seu povo, conduzindo retomadas, sobrevivendo a ataques, como o de de 2011, que vitimou Adélio Rodrigues. Ramão era, há décadas, integrante da Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani Kaiowá – e realizou incontáveis incidências no Congresso Nacional e nos poderes Judiciário e Executivo.
Forte, robusto e discreto, Ramão era destemido. Ele falece em decorrência de graves traumas físicos, resultantes de uma emboscada perpetrada por pistoleiros anos atrás, quando retornava ao seu tekoha. Como dizem na ótica cristã, sobreviveu por um milagre. Resistiu o quanto pode, mesmo sem conseguir se movimentar direito, devido às fraturas por todo o corpo, que impôs dificuldades permanente para se alimentar e, até mesmo, falar.
Na última Aty Guasu, realizada em Sete Cerro em 2021, Ramão, apesar de todas estas condições, estava lá presente, juntamente com sua esposa e companheira de todas as horas. Para nós, do Cimi, foi uma alegria o reencontro e sua reação emocionada tentando nos dizer como estava. O episódio comoveu a todos.
Ramão ancestraliza sem ter tido justiça contra os seus algozes. Sem sequer ter visto o processo de demarcação de seu tekoha concluído. Mas Ramão fez história na luta de seu povo que obrigou o Estado Brasileiro a reconhecer os limites da maior terra indígena Kaiowá e Guarani, até aquele momento Pyelito kue-mbacaray, com 41 mil hectares.
Que a luta do nosso amigo e Ñanderu Ramão seja semente de novos Guerreiros e Guerreiras da Vida e da Terra. Querida Ñandesy Helena, familiares, recebam o nosso mais profundo abraço, cheio de esperança neste momento de dor e resistência, rumo à terra sem males.
Ramão, cerne Kaiowá, descanse em paz
Em meio a tantos seres emplumados, empossados de Jeguakas coloridos que enfeitavam de luta as assembleias da Aty Guasu, se destacava um sujeito alto, de pele escura e de notória coragem, este era seu Ramão.
A um primeiro olhar saltava aos olhos seu jeito rústico. “Como um cerne de árvore”, disse uma vez Helena, sua companheira de uma vida.
E como não seria rústico? Ramão, como tantos outros Kaiowá, foi forjado e talhado na dureza e aspereza da vida, trabalhando em fazenda. Do seu suor, derramado sobre terras que lhes foram roubadas, muita gente fez lucro.
Nas retomadas e lutas do seu povo, Ramão foi mesmo “puro cerne”. Defendeu, com a própria vida, as investidas de fazendeiros e jagunços no território. Segurou ao lado de bons companheiros os pilares da permanência e existência do território de Pyellito. Ele sonhava a cada dia com a demarcação de Mbarakay, para onde ele, sua amada Helena, rezadores e famílias já deveriam ter retornado, se não fosse a criminosa inação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e os espúrios governos, que, pactuados com o agronegócio, jamais permitiram o avanço dos processos de demarcação.
Sem a terra, como sempre, sobra a violência. Violência religiosa que trouxe sofrimentos a Ramão enquanto rezador ou que, nas estradas da vida, viriam vitimar sua saúde para sempre. Ramão foi espancado em emboscada. Teve derrame e sequelas que o acompanharam até seu dia derradeiro.
Ramão não viu justiça contra seus algozes e nem tampouco a demarcação de sua Terra Ancestral, mas lutou e se colocou à disposição da luta de todos e qualquer Kaiowá que necessitou até o último dia, enquanto sua saúde não havia ainda sido roubada a golpes covardes.
Presença confirmada em cada encontro da Aty Guasu, por mais de uma vez foi a pé, por quilômetros, só com sua mochila e sua garrafinha de cedro batizada. Garrafinha que oferecia aos amigos, para que combatessem as dores de garganta, outros males e “essas enfermidades que castigam quem vive debaixo da lona nas noites de frio”, dizia.
Apesar da aparência rústica, Ramão era leve e doce. Possuiu coração quente e solidário, e quem o conheceu sabe o quanto isso era uma de suas mais íntimas características. Cuidava do filho adotado, com muito carinho, e falava sempre suave com ele, mesmo quando saía aprontando no meio do povo, nas reuniões da Aty Guasu. Era sempre o primeiro a estar disposto para qualquer desafio, não importava o tamanho. Era um dos últimos a deitar e só escolhia um colchão quando todos os idosos estavam já bem acomodados.
A “árvore-Ramão” tombou, mas é certo que as raízes deste grande “homem-tronco” seguem firmes dentro de cada guerreira e cada guerreiro Guarani e Kaiowá
O Cimi Regional Mato Grosso do Sul presta ao amigo Ramão sua mais sincera homenagem, se comprometendo com a busca pela justiça contra seus agressores e cumprindo o compromisso incondicional na luta pela demarcação dos territórios tradicionais deste povo. Só assim, Ramão e mais tantos companheiros poderão descansar, e sua luta de uma vida inteira terá valido a pena. Que, sob o tronco de Ramão, se ergam em paz as novas gerações.