02/10/2020

Ataques ao território indígena

Invasões a terras crescem 135% sob Bolsonaro

A comunidade Huni Kuī do Centro Huwá Karu Yuxibu, em Rio Branco, no Acre, teve 100 de seus 200 hectares queimados em 2019 | Fotos: Denisa Sterbova

Por Lucia Helena Rangel e Roberto Antonio Liebgott*

Vermelho sangue, em vez de urucum e preto carvão no lugar do jenipapo. As violências e violações contra os povos indígenas no Brasil são práticas sistemáticas. Elas formam a base sobre a qual, desde 1964, projetos desenvolvimentistas avançaram, ao custo de expropriações forçadas, redução ou eliminação de territórios, epidemias induzidas e assassinatos de lideranças. Nos últimos anos, porém, temos assistido a uma escalada sem precedentes nos ataques aos territórios, inclusive com a venda de lotes de terra em áreas demarcadas.

Em 2019 e até setembro de 2020 não só nenhuma demarcação foi concluída, como, ao contrário, processos em estágio avançado retrocederam

No ano de 2019, o primeiro sob a presidência de Jair Bolsonaro, o recém-lançado relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registrou um crescimento inédito das invasões e danos ao patrimônio indígena: foram 256 casos, 135% a mais do que no ano anterior. Além disso, houve 113 assassinatos e o descaso em relação à saúde desses povos no combate à Covid-19.

Em 2019 e até setembro de 2020 não só nenhuma demarcação foi concluída, como, ao contrário, processos em estágio avançado retrocederam. Esta situação intensifica os conflitos em locais como o Mato Grosso do Sul, onde comunidades vivem em verdadeiros campos de concentração, em acampamentos de beira de estrada ou em áreas degradadas. Tanto a morosidade nas demarcações quanto a omissão frente aos ataques são produto de ações governamentais explícitas — como o desmonte dos órgãos de fiscalização. Refletem, ainda, as posições expressas pelo presidente da República, que desde a campanha eleitoral afirma que não demarcará um centímetro de terra indígena.

O Cimi começou a registrar regularmente as violências cometidas contra os povos originários na década de 1980. Desde então, utiliza estas informações em defesa dessas comunidades, fazendo denúncias a organismos nacionais e internacionais. A cada publicação, percebemos que as violências têm sido uma constante invariável, praticadas por agentes ávidos pela destruição e apropriação dos recursos naturais em nome do lucro e de uma racionalidade econômica desenvolvimentista, que considera um atraso o desejo de trabalhar a terra em consonância com as necessidades familiares e com a transcendência que une matéria, espírito e cosmos.

As violências contra os indígenas caracterizam-se pela desqualificação destes povos como sujeitos de direitos, pela desvalorização das suas formas de produção e pela desumanização da pessoa indígena, historicamente considerada um “estorvo” para o progresso

As violências contra os indígenas caracterizam-se pela desqualificação destes povos como sujeitos de direitos, pela desvalorização das suas formas de produção — reativando os estereótipos de improdutivos, indolentes e obsoletos — e pela desumanização da pessoa indígena, historicamente considerada um “estorvo” para o progresso. Essa compreensão resulta em variadas formas de agressão, passando por racismo, negligência, ameaças e assassinatos.

Com a Constituição Federal de 1988, esperava-se que fossem implementadas políticas de respeito aos povos originários e seus territórios, já que os artigos 231 e 232 preveem a demarcação, proteção e fiscalização das terras indígenas e reconhecem esses povos como sujeitos de direitos em suas culturas, crenças e tradições. A recente intensificação das violências precisa ser entendida a partir dessa lógica estatal que remete à ditadura militar, quando se propagava a integração ou o extermínio dos povos indígenas do país.

*Lucia Helena Rangel é antropóloga, professora da PUC/SP e assessora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e Roberto Antonio Liebgott é coordenador do Cimi Regional Sul

Artigo publicado originalmente no jornal O Globo.

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