Desintrusão da TI Pankararu é suspensa e aguarda julgamento do TRF-5 para ser concluída
Um agravo de instrumento deferido pelo próprio Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região suspendeu a retirada pacífica dos não-indígenas, que estava em curso desde o início do mês
Os vinte e cinco anos de espera pareciam estar perto de um desfecho favorável ao povo Pankararu, com a desintrusão dos posseiros ocupantes da Terra Indígena, no sertão de Pernambuco, em cumprimento à sentença do juiz federal Luiz Felipe Mota Pimentel de Oliveira, da 38ª Vara Federal de Serra Talhada. No entanto, um agravo de instrumento deferido pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região suspendeu a retirada pacífica dos não-indígenas, que estava em curso desde o início do mês. Os Pankararu aguardam agora a votação do mérito da ação, que poderá restabelecer a desintrusão caso as informações do agravo sejam julgadas improcedentes.
Conforme o despacho do desembargador Leonardo Augusto Nunes Coutinho, a decisão favorável ao agravo, impetrado pelo líder dos posseiros, Eraldo José de Souza, não desconsidera a posse das 300 famílias da área tradicional Pankararu como ilegal. Argumenta que a Terra Indígena está demarcada desde 1987, a busca por uma solução judicial teve início em 1993 e está sentenciada há 15 anos resguardando o direito do povo Pankararu ao usufruto exclusivo do território. Em contrapartida, o desembargador diz que “não se tem certeza” quanto ao reassentamento das famílias necessitando de “mais cautela” para que “seja levada a cabo qualquer medida irreversível”.
“A própria decisão do desembargador diz: há 15 anos tem uma determinação judicial para a saída dos posseiros. A Justiça brasileira deu todo o tempo para que tudo fosse discutido, agora seria cumprir a sentença. Aqueles que saíram na década de 1990 estão bem”, destaca um indígena Pankararu ouvido pela reportagem e que pediu para não ser identificado por conta das ameaças sofridas pelo povo nos últimos meses. Para ele, os indígenas não podem esperar mais e chegou a hora dos posseiros saírem porque não estão desamparados.
“A Justiça brasileira deu todo o tempo para que tudo fosse discutido, agora seria cumprir a sentença. Aqueles que saíram na década de 1990 estão bem”, destaca um indígena Pankararu
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), principal alvo do agravo de instrumento, reservou 93 lotes para o Reassentamento Abreu e Lima, destinado a estas famílias posseiras. Conforme o órgão federal, os posseiros decidiram não se transferir para o local, inclusive atrasando o cadastro das famílias (só ocorreu por determinação judicial). No total, a área reservada possui 18.500 hectares – a TI Pankararu possui 8.100 – e fica no município de Tacaratu.
No início do mês de maio, o Incra e a Fundação Nacional do Índio (Funai) abriram um escritório provisório no município de Jatobá para atender a ordem da Justiça Federal de Serra Talhada pela desintrusão dos posseiros. A Polícia Federal passou a notificar as famílias concedendo um prazo de dez dias, a partir do aviso, para a saída da Terra Indígena. Enquanto o trabalho vinha sendo executado, o agravo de instrumento da liderança posseira chegou ao TRF-5.
De acordo com informações obtidas pela reportagem junto à Funai, aproximadamente dez famílias saíram por livre e espontânea vontade até a suspensão da desintrusão pelo TRF-5. Cerca de 190 famílias não indígenas (de um total de 300) já residem fora do território tradicional, mas mantêm propriedades nos 20% de área Pankararu que dizem ocupar há séculos. Conforme as lideranças Pankararu, é exatamente este espaço da Terra Indígena o mais produtiva, mas que vem sendo usado como sítio ou casa de campo para seus “proprietários”.
Interlocutores do órgão indigenista estatal também desmentiram as informações aventadas por matérias veiculadas de que a indenização às famílias não estava liberada pelo governo federal. O Ministério Público Federal (MPF) e a Justiça Federal de Serra Talhada também desmentem, informando que para tal fim R$ 6 milhões estão em depósito judicial. Mesmo nesta modalidade, o montante é beneficiado por juros. A avaliação de valores foi atualizada, conforme a Funai, em 2013.
“Clima é tenso”
“Embora o povo Pankararu tenha ciência que a desintrusão apenas foi retardada pela decisão, fica a angústia de ter sua terra livre em menos tempo, pois são anos de luta e resistência Pankararu pra ter autonomia sobre a terra e manter o fortalecimento do povo e da existência Pankararu”, declara uma outra liderança indígena ouvida pela reportagem e que pediu para não ser identificada. “O clima é tenso. A suspensão engana os posseiros, que se sentem estimulados em nos ameaçar porque acham que não vão sair, mas até mesmo os líderes deles sabem que é inevitável isso. Até na decisão pela parada da desintrusão o desembargador coloca a posse deles como ilegal”, analisa.
A história que abrange estas duas décadas e meia de celeuma judicial demonstram que os Pankararu esperaram que o Incra reservasse uma área de reassentamento, e a Funai separasse o montante para indenização, para o povo ser mais enfático pela desintrusão. Durante o Encontrão da Comissão de Professores e Professoras Indígenas de Pernambuco (Copipe), em junho de 2011, a reportagem do jornal Porantim constatou a presença dos posseiros durante as refeições e em um ritual Praiá, tradicional do povo. “Não podemos deixar essa gente sem terra. Então aguardamos a definição de para onde vão e o dinheiro que devem receber”, disse à época uma destacada liderança Pankararu.
“O clima é tenso. A suspensão engana os posseiros, que se sentem estimulados em nos ameaçar porque acham que não vão sair”, diz Pankararu
“O que a gente conclui é que a decisão traz prejuízos ao povo Pankararu, mas sobretudo a estas famílias que já tinham manifestado interesse em sair espontaneamente e agora vão recuar, atrás de falsas promessas. Entendemos que esse atraso só coloca mais tempo para ações de retardar um processo que sem um desfecho acirra o conflito”, declara o Pankararu. Esta análise é compartilhada por especialistas que acompanham há anos o povo e demonstram preocupação com as consequências de mais este atraso.
Articulação política
Enquanto a desintrusão era realizada pelos órgãos federais na TI Pankararu, em Brasília uma reunião ocorreu no Ministério da Justiça. Itomar Varjão, representando a prefeita de Jatobá, Goreti Varjão, e o superintendente do Incra no Médio São Francisco, Bruno Ferreira Medrado, foram levados pelo deputado federal Augusto Coutinho (Solidariedade/PE) para um encontro com o ministro interino, Gilson Libório (Torquato Jardim estava fora da capital). Em vídeo divulgado nas redes sociais do parlamentar, Coutinho explica os motivos da reunião: “Trouxemos uma grave preocupação. Uma ação que a Funai entrou para desapropriar uma área que já é ocupada por famílias há mais de 100 anos, que vai desassistir mais de 300 famílias. É um conflito muito grande, que nos traz enorme preocupação. Queremos trazer o governo federal para este entendimento (…) porque pode ocorrer derramamento de sangue”.
Conforme o deputado, do mesmo partido de Varjão, que representou a prefeita de Jatobá sem ocupar nenhum cargo no Poder Público municipal, o trio saiu da reunião com o compromisso do governo “de entrar nessas negociações para que a gente possa apontar uma alternativa para que se evite esse conflito. A preocupação é muito grande porque pode causar um problema social enorme”. O parlamentar compõe a bancada ruralista da Câmara dos Deputados. No Supremo Tribunal Federal (STF), é réu em ação penal por crimes cometidos contra o meio ambiente e o patrimônio genético. No TRF-5, é alvo de ação civil pública por dano ambiental.
“Estranha a presença do superintendente do Incra (Bruno Ferreira Medrado) na reunião. Já existe uma área reservada pelo Incra para o reassentamento. Enquanto ele estava em Brasília, em Jatobá servidores do Incra faziam o trabalho de desintrusão. Ou seja, ele representa o órgão do governo federal responsável pela solução administrativa, que já tinha sido encontrada e estava sendo executada por ordem judicial, e ele vai para o Ministério da Justiça pedir uma solução? É no mínimo estranho”, questiona uma liderança Pankararu.
Medrado, que é engenheiro civil e chegou a ser vice-prefeito de Santa Maria da Boa Vista (2004-2012) filiado ao atual MDB, chegou ao posto de superintendente do Incra por indicação política de Coutinho. “São muitas interferências e ingerências. Por isso o processo empaca e quando anda, logo para. O deputado teme por derramamento de sangue, mas a paralisação da desintrusão é que pode causar algo assim. Fosse cumprir a Constituição e a legislação vigente, os posseiros estavam reassentados e os indígenas com a totalidade da terra tradicional”, analisa a liderança Pankararu.
“Os indígenas Pankararu, que ocupam aquele território há séculos, esperam há mais de 90 anos que o processo de regularização territorial seja finalizado”, diz a antropóloga Lara Erendira
Histórico da ocupação Pankararu
Em artigo publicado pelo jornal Brasil de Fato, a antropóloga Lara Erendira Andrade entende que “os indígenas Pankararu, que ocupam aquele território há séculos, esperam há mais de 90 anos que o processo de regularização territorial seja finalizado. Apesar de concordarem que as condições oferecidas pelo Incra não são as ideais para os não-indígenas, os indígenas aguardam que o processo seja finalizado para poderem ter melhores condições de vida. São mais de 7500 indígenas que vivem “impensados entre as serras”, como se diz localmente”.
Lara Erendira cita o historiador e antropólogo José Maurício Arruti, professor da Universidade Federal de Campinas (UNICAMP). Em seu estudo, ele comprova que a localização da Terra Indígena Pankararu corresponde ao sítio de uma antiga missão da ordem religiosa de São Felipe Néry. Essa missão, elucida o antropólogo, reuniu em fins do século XVIII, no Brejo dos Padres, atual coração da Terra Indígena, localizada na Serra de Tacaratu, índios de diferentes origens. Conforme o antropólogo, no local em que foi instalada essa missão já existia uma “maloca indígena denominada Cana Brava, formada pela reunião de índios Pancarus, Umaus, Vouvês e Geritacós, presumivelmente do grupo linguístico Kariri”.
O primeiro registro de aldeamento data de 1700, de acordo com a carta régia de 1703. De acordo com documentos históricos, em 1877 Dom Pedro II, em viagem pelo Rio São Francisco fez a doação de uma sesmaria, ou seja, uma légua em quadra, 14.294 hectares marcada a partir da igreja que está na aldeia Brejo dos Padres. Quase um século depois, na década de 1940, os limites das terras reivindicados não foram respeitados e o território foi reduzido para 8.100 hectares. Assim ficou oficialmente determinado. Já em 1984, a Funai se mostra disposta a corrigir o erro e voltar aos marcos dos 14.294 hectares. Resultado: até hoje o território Pankararu continua com 8.100 hectares.