Delegada da PF que chamou morte de índio de “consequência indesejável” vira ré em ação de improbidade do MPF/MS
Ela elaborou parecer que isentou de responsabilidade o próprio marido, um dos comandantes de operação que resultou na morte do indígena Oziel Gabriel e dezenas de feridos
A Justiça aceitou ação do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF/MS) e tornou ré a delegada da Polícia Federal Juliana Resende Silva de Lima. Ela agora responde a processo por improbidade administrativa por não ter se declarado impedida de elaborar parecer em sindicância interna da PF em que o próprio marido era investigado. O delegado da Polícia Federal Eduardo Jaworski de Lima foi um dos comandantes da operação de 30 de maio de 2013, que tinha como objetivo a reintegração de posse na Fazenda Buriti, localizada em Sidrolândia, a cerca de 80 km ao sul de Campo Grande, e ocupada por indígenas que reivindicavam a posse da área.
Investigação do MPF concluiu que aquela foi uma operação policial fracassada, com graves erros, que resultaram em, pelo menos, uma morte (o indígena terena Oziel Gabriel), 7 vítimas não fatais por arma de fogo (4 policiais, 2 indígenas e um cão militar), 9 policiais feridos por pedras e 19 indígenas feridos por munição de elastômero, totalizando 36 vítimas. “E todo esse prejuízo com eficácia zero, já que duas horas após finalizada a operação (17h), a fazenda foi reocupada”, conclui o inquérito.
Mesmo assim, sindicância interna da PF chegou à conclusão de que não houve irregularidade na operação. O Parecer nº 108/2013, da delegada Juliana Resende Silva de Lima, é explícito neste sentido: “Em que pese as consequências indesejáveis da ação – ferimentos e morte de uma pessoa – a operação obedeceu integralmente o detalhado planejamento elaborado”. O parecer pelo arquivamento da investigação foi acatado pela Superintendência da PF em Mato Grosso do Sul.
Para o MPF, a delegada, esposa de um dos comandantes da operação, cometeu ato de improbidade, previsto no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, ao não se declarar impedida de elaborar o parecer, mesmo sendo esposa de um dos principais interessados no arquivamento do processo.
A ação tramita na 2ª Vara Federal de Campo Grande e a pena prevista inclui ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Erros de Planejamento
A investigação do MPF descobriu que o planejamento da operação foi realizado exclusivamente com informações obtidas pela PF e fotos de satélite adquiridas na internet. Não houve nenhum levantamento de campo. Informações foram repassadas à tropa da PM e PF em momentos e locais diferentes. Não havia comando único nem comunicação via rádio entre as corporações. Assim, os policiais agiram isoladamente.
Foi descoberto que o planejamento da Polícia Federal excluiu deliberadamente a participação da Funai e do Ministério Público Federal da operação (as normas vigentes determinam que devem ser avisados com 48 h de antecedência), suprimindo a fase de negociação e resultando no emprego de força policial desproporcional à conduta dos indígenas.
Os registros em vídeo comprovam que a negociação foi limitada à frase dirigida aos indígenas: “Pessoal. Nós viemos cumprir a ordem…e aí?”, sendo encerrada pela polícia menos de 2 minutos após iniciada.
Para o MPF, “qualquer análise superficial das atuais doutrinas policiais, da legislação e orientações nacionais ou dos instrumentos internacionais sobre o uso de força denuncia a vital importância da fase de negociação e seu exaurimento na atuação policial, usando de todos os meios disponíveis para tanto, visando sempre a solução pacífica dos conflitos e fazendo uso da força somente em situações absolutamente excepcionais”.
O efetivo era de 70 policiais federais, mas apenas 15 haviam participado de treinamentos de armamento e tiro em época recente. 82 policiais militares do Batalhão de Choque completavam o efetivo. No ápice da ação, o número de indígenas foi estimado entre 1500 e 2000 pessoas. Durante o conflito, houve o acionamento emergencial de uma aeronave e mais 22 policiais militares. Dois policiais federais foram enviados às pressas até a sede da PF, a 80 quilômetros de distância, para buscar mais armamento e munições não letais, que haviam acabado.
A espera por reforço foi de cerca de duas horas. Enquanto isso, as forças policiais ficaram estacionadas, sendo agredidas pelos indígenas, cada vez mais numerosos, e, por vezes, diante da inexistência de instrumentos menos letais disponíveis, disparando com armas de fogo, ainda que inobservando as regras técnicas. A morte de Oziel Gabriel e os ferimentos mais graves aconteceram neste intervalo.
Após a chegada do reforço, os policiais recuaram os indígenas até a Aldeia Buriti, indo bastante além da porteira da Fazenda Buriti, excedendo ilegalmente os limites do mandado judicial, chegando a manter guarda na frente do acampamento indígena e expulsar indígenas de aldeias vizinhas, em claro confronto ao que determina a lei.
Não foram enviados relatórios da operação ao Ministério Público, Judiciário ou Funai, como determinam as normas. O relatório da Polícia Federal foi elaborado somente em 17/07/2013, quase dois meses após os fatos. O atraso prejudica a fidelidade dos relatos e eventuais responsabilizações.
Neste sentido, é importante registrar que o comandante da operação, delegado Marcelo Alexandrino, mesmo passados dois anos da ação policial, demonstrou desconhecimento e falta de interesse em conhecer as orientações nacionais e internacionais sobre execução de mandados judiciais de reintegração de posse coletiva, a legislação nacional sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública, bem como os instrumentos internacionais mais importantes sobre o uso da força e de armas de fogo.
Por consequência, o MPF expediu Recomendação à Superintendência Regional da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul, especificando detalhadamente toda a legislação nacional e internacional que rege os procedimentos que devem ser seguidos em casos de reintegração de posse de áreas coletivas e controle de distúrbios civis, além do uso de armamento naquelas situações.
Clique aqui para ler a inicial da Ação de Improbidade ajuizada pelo MPF.