Organizações pedem a eurodeputados criação de barreira humanitária para commodities brasileiras
Este mecanismo teria o mesmo efeito da barreira comercial, mas no caso os governos levariam em conta se os produtos importados envolveram quaisquer violações de direitos humanos e territoriais
Por Ascom/Cimi
Um grupo de eurodeputados, membros da Comissão de Agricultura e Desenvolvimento Rural do Parlamento Europeu, recebeu nesta segunda-feira, dia 2, a reivindicação de organizações indigenistas, camponesas, socioeconômicas, ambientais e de direitos humanos brasileiras pela criação de barreiras humanitárias sobre a importação de produtos agrícolas do Brasil pela zona do Euro.
Este mecanismo teria o mesmo efeito da barreira comercial, comumente utilizada pelos governos, para proteger os negócios internos ou o bem-estar de seus cidadãos. No caso da barreira humanitária, os governos levariam em conta se os produtos importados envolveram, em alguma parte da cadeia produtiva, quaisquer violações de direitos humanos e territoriais.
No encontro com os eurodeputados, ocorrido em Brasília, estavam presentes representantes da Fian-Brasil (Rede de Ação e Informação pelo Direito a se Alimentar), da Plataforma Dhesca, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O grupo apresentou as repercussões da atual conjuntura brasileira, vista com preocupação pelos eurodeputados, entre os povos indígenas, quilombolas, camponeses e sem terras, no meio ambiente e as relações com o agronegócio.
“Consideramos de fundamental importância que os países importadores de commodities provenientes do Brasil aprimorem e ampliem os critérios que liberam ou vedam tais importações. Aspectos sanitários são insuficientes para tanto. É preciso que aspectos humanitários também sejam contemplados. Para além das barreiras sanitárias, faz-se necessária a adoção de barreiras humanitárias amplas e consistentes”, defende o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.
A representação da Plataforma Dhesca salientou o fato de que 1% da população brasileira possui 46% das terras privadas do país. A Concentração de terras é ainda mais impressionante em alguns estados. No Mato Grosso do Sul, conforme dados do Itamaraty voltados ao comércio exterior, 80% da população vive em centros urbanos. Os Guarani Kaiowá formam uma população rural com cerca de 45 mil indígenas, enquadrada nos 20% ainda residentes no campo – 92% do território sul-mato-grossense é privado, a maior concentração do país.
O Inesc ressaltou no encontro que a evasão fiscal e benefícios tributários ao agronegócio são agravantes. Tratou ainda do uso indiscriminado de agrotóxicos – com benefícios tributários – e as tradings de commodities (multinacionais, capazes de influenciar em preços, logística e relacionadas com paraísos fiscais) que operam no Brasil sobre terras indígenas, quilombolas, camponesas e de comunidades tradicionais. Nesse sentido, a Fian lembrou dos retrocessos que afetam a agricultura familiar como, por exemplo, a aquisição de alimentos, projetos de captação de água e outros – o que gera insegurança alimentar e fome em dezenas de comunidades.
Tal retrocesso, revela a Fian, resultou nos dados que mostram que a desnutrição alimentar é maior entre as populações tradicionais. Por último, o posicionamento da organização destacou a criminalização de lideranças e organizações da sociedade civil, através das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), sendo o Cimi um dos alvos preferenciais (em Brasília e no Mato Grosso do Sul) ao lado de indígenas, antropólogos e antropólogas, além da própria Fundação Nacional do Índio (Funai).
Marco temporal e o aumento da violência
Conforme o assessor jurídico do Cimi, Adelar Cupsinski, para os eurodeputados “a reunião com as entidades do Brasil que atuam na área de direitos humanos é muito importante. Manifestaram interesse especial pela Amazônia e por informações sobre o projeto Matopiba”. Cupsinski destacou a questão indígena nestes dois pontos focais, estendendo ao Mato Grosso do Sul, mas sem perder de vista a ofensiva atual contra os processos de demarcação.
O Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que estabelece a tese do marco temporal para demarcações de terras no âmbito do Poder Executivo. “Os direitos indígenas estiveram no contexto da legislação desde o Brasil colônia, com o Alvará Régio de 1680, na Lei de Terras e nas Constituições Republicanas, ganhando consistência na Constituição de 1988. Na sequência, o Estado brasileiro iniciou os processos administrativos para as demarcações; grande parte tramitaram por décadas, muitos sem conclusão. Concluídos, ou mesmo antes, começou a judicialização dos processos demarcatórios, o que vem resultando em mais atrasos, nulidades e remoções de comunidades indígenas”, explica Cupsinski.
Foi apresentado aos parlamentares europeus o exemplo do caso de Caarapó (MS) e a situação de confinamento nas reservas indígenas, que inviabiliza a sobrevivência física e cultural dos povos. “Contextualizamos a situação na Amazônia, em que as terras demarcadas estão sendo invadidas por madeireiros, garimpeiros. O agronegócio é quem vem promovendo e fomentando o conflito, pois tem interesse em assegurar um banco de terras para especulação, incluindo as terras dos povos indígenas”, define.
De acordo com a CPT, o agronegócio impacta de forma ruim o modo de vida das comunidades tradicionais e pequenos agricultores, o que resvala em situações de crime de genocídio. Esta agricultura devastadora de povos e florestas, baseada na produção de commodities, é o mesmo modelo da década de 1970, período do regime militar (1964-1985), e vem sendo exportado para a África e América Latina. A partir de 2016, com a consolidação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, a representação da CPT frisou que a violência no campo teve um aumento significativo, com aumento de 22% dos assassinatos com relação a 2015.
Campanha do agronegócio
A população brasileira defende o meio ambiente e tem como símbolo as terras e matas brasileiras, mas campanhas recentes procuram desconstruir esta visão dos brasileiros. A conclusão foi apresentada pela representação da Plataforma Dhesca. Campanhas como a da Rede Globo de Televisão, onde o Agro é Pop e até mesmo a agricultura familiar é colocada como parte do agronegócio, a tentativa é de mostrar que o importante é gerar riquezas, sendo o agronegócio um mecanismo que gera desenvolvimento.
Em artigo publicado há poucas semanas, Maurício Angelo, do Inesc, diz: “A soja brasileira (…) alcançou 50,9 milhões de toneladas exportadas para a China no acumulado de 2017, alta de 33,3% em relação a 2016. Em valores, a soja gerou receita de US$ 25,718 bilhões, alta de 34,1% em relação a 2016″. Os dados coadunam com a divulgação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o crescimento de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, em 2017 (R$ 6,6 trilhões) – primeira alta após dois anos consecutivos de retração.
O fato é comemorado por ruralistas, caso do ministro da Agricultura Blairo Maggi, como amostra da importância do agronegócio para o país, e a consequente necessidade de não se demarcar terras indígenas ou gerar quaisquer outras demandas ambientais e sociais que os impeçam de abocanhar mais terras. Maurício Angelo, contudo, demonstra que tal “crescimento” é na verdade um caminho perigoso rumo ao colapso ambiental e social. As necessidades da China geram migalhas ao PIB, em vista do quadro geral do Brasil, que segue sendo um dos países mais desiguais e violentos do mundo, e um esgotamento de ecossistemas que podem ser fundamentais num futuro incerto pós-capitalista.
“As consequências disso e a busca chinesa por terras e recursos fora do seu país podem ser trágicas também para o Brasil. Por exemplo, na Amazônia brasileira, cada quilômetro de estrada legal aberta é frequentemente acompanhado por três quilômetros de estradas ilegais. Esse fluxo intensificado e mais rápido, por si só, já traz consequências terríveis para a flora e fauna nativas, além, claro, dos impactos socioambientais para as cidades e comunidades atingidas. Estima-se que o desmatamento da Amazônia aumentará 950 mil hectares até 2032 devido aos projetos rodoviários já em andamento”, aponta a conclusão do artigo.
Conforme o posicionamento da Plataforma Dhesca, a campanha do agronegócio nega ainda a pluralidade de povos, incluindo os que vivem em situação de isolamento voluntário. A organização desfez um argumento falso presente nos discursos ruralistas, onde as demarcações tomam praticamente todo o território nacional tomando como base apenas a região amazônica: grande parte da demanda demarcatória represada está fora desta região, bem como os principais conflitos.