Parecer da AGU provoca onda de despejos, morte e desesperança para indígenas Guarani Kaiowá e Terena no MS
Os efeitos do Parecer 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), o chamado Parecer Antidemarcação, já podem ser sentidos pelos povos indígenas do Mato Grosso do Sul, sobretudo na região de Dourados. O estado possui um acentuado passivo com relação à regularização fundiária de territórios tradicionais no país. O parecer tem a função de manter o quadro como está, apontam as lideranças indígenas, na medida em que obriga toda a administração pública a aplicar as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Entre elas está a tese do marco temporal, que restringe os direitos territoriais dos povos definindo que só podem ser reconhecidas as terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988.
Existe uma crise humanitária na Reserva de Dourados se arrastando há pelo menos duas décadas. Os 16 mil indígenas Guarani Kaiowá e Terena vivem confinados em três mil hectares e buscam terras para “desafogar” a situação. Para a Reserva os indígenas foram levados no decorrer do final da primeira metade do século XX, como política de colonização de “terras devolutas” do então estado do Mato Grosso, e em 5 de outubro de 1988 estes povos não estavam nas terras tradicionais de onde foram retirados com violência. Dessa maneira, a cada retomada ou ocupação de terra fora da Reserva, estes indígenas sofrem ações de reintegração posse que desde o ano passado têm como principal argumento deferidor a tese do marco temporal.
“Por seu caráter amplo, e também por ser da AGU, o parecer possui capacidade de influenciar a Justiça Federal. Afinal, é uma posição do Poder Executivo – o poder que tem a responsabilidade administrativa pela demarcação. Como a retomada de terra é a alternativa dos povos para garantir o território tradicional, esse parecer é o combustível necessário para abastecer a usina de reintegrações de posse, com destaque para as decisões de primeira instância”, declarou a jornalistas de Brasília uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara.
Neste contexto se encontra uma ocupação Terena reintegrada à força pela polícia, no início de dezembro. O grupo, composto por oito famílias (cerca de 50 pessoas) e oriundo da Reserva, foi surpreendido pela Tropa de Choque. Os acessos ao sítio em que os indígenas estavam foram fechados. Tratores destruíram casas e dezenas de indígenas foram atingidos pelas balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. “Parecia que estavam preparados para uma guerra. Foi horrível. Atacaram com tudo, não tivemos nem tempo de reagir. Quando percebemos já estávamos na rodovia. A interditamos em protesto e mais uma vez a Tropa de Choque chegou atirando balas de borracha, bombas. Uma desumanidade”, explica Zuleica Terena.
“O Parecer da AGU é um elemento a mais para aumentar a preocupação: com as demarcações paralisadas, os indígenas vão para as retomadas. Com isso, novas reintegrações baseadas no marco temporal podem ocorrer com a truculência policial”
Para os integrantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, trata-se de um movimento de despejos reforçado agora pelo parecer.
“Ano passado tivemos Apyka’i, Itapoty e Nhu Vera. Sempre a partir da Reserva. Então há um aumento de violência na região de Dourados. São centenas de indígenas que não cabem na Reserva. Buscam novas ocupações ou retomadas e sofrem represálias dos policiais em ações violentas de despejo”, destaca o missionário Matias Benno.
“Isso mostra quais serão os próximos passos da polícia em Dourados e já deixa a sombra do desespero pairando sobre todas as áreas. Sem dúvida o Parecer da AGU é um elemento a mais para aumentar a preocupação: com as demarcações paralisadas, os indígenas vão para as retomadas. Com isso, novas reintegrações baseadas no marco temporal podem ocorrer com a truculência policial”, destaca a missionária do Cimi Regional MS, Lídia Farias de Oliveira.
Um outra reintegração de posse saiu nas últimas semanas contra o tekoha – lugar onde se é – de Nhu Vera. Os argumentos relativos ao marco temporal estão presentes no pedido de despejo atendido pela Justiça Federal. No acampamento moram 50 famílias, cerca de 250 pessoas, que já estão no local há sete anos vindas da Reserva de Dourados. A área fica nas proximidades do despejo contra o grupo Terena. Se trata de um território cujos limites estão na fronteira da Reserva.
“Os proprietários da fazenda retomada”, conta uma das lideranças Guarani e Kaiowá, “engoliu a aldeia Bororó”. Com efeito, a presença indígena também foi “engolida”. “A tese do marco temporal legaliza esses crimes, expulsões a todo custo, assassinatos e genocídio dos patrícios (indígenas). Impede a reparação, transforma a Constituição numa revista de piada”, protesta Lindomar Terena.
O cenário deveria ser outro. Desde 2007, portanto há dez anos, o governo federal desrespeita um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), estabelecido junto ao Ministério Público Federal (MPF) do Mato Grosso do Sul, onde em dois anos a Funai deveria demarcar um conjunto de terras indígenas, os chamados Peguá. “A precariedade em que vivem os indígenas, em boa parte, se deve ao fato de que eles não têm endereço, vivem em acampamentos e áreas não reconhecidas pelo Estado. Desta forma, são privados dos serviços públicos como fornecimento de água e energia elétrica”, destacou o MPF em nota divulgada no último dia 12 de dezembro.
A comunidade do tekoha Pyelito Kue, em Iguatemi, a 470 km ao sul de Campo Grande (MS), destacam os procuradores do MPF, ficou nacionalmente conhecida em 2012 quando divulgou uma carta de repúdio à decisão judicial que determinou a reintegração de posse da área que ocupavam. Ou seja, após os dois anos determinados pelo TAC para a demarcação da terra Guarani e Kaiowá. À época, os indígenas disseram que a determinação da Justiça levaria a comunidade a morrer pela terra, “já que a sobrevivência dos indígenas na região estaria inviabilizada”. No total, são sete terras indígenas e 39 tekohas – pactuados pelo TAC – dos povos Guarani e Kaiowá e Ñandeva. A multa decorrente do não cumprimento do TAC deveria ser revertida às comunidades, o que também não aconteceu.
Apyka’i: mais uma cova na beira da estrada
O corpo de Cleusa Benites Guarani e Kaiowá foi enterrado entre dois barracos de lona, instalados num barranco com poucos metros quadrados de ocupação e dividido por cinco famílias – o número já chegou a nove. A cova foi aberta no pequeníssimo espaço usado pelas crianças para as brincadeiras, entre a cerca do latifúndio e o asfalto da BR-463. O lugar é conhecido como Curral do Arame e está na região chamada de a “Faixa de Gaza” brasileira, no cone sul do Mato Grosso do Sul. “Não queremos retomar o Apyka’i, mas apenas enterrar a Cleusa com os demais parentes. É um pedido para as autoridades”, diz dona Damiana Guarani e Kaiowá. A Cleusa era uma das poucas adultas e chegou ao barranco, com as demais famílias, vinda de mais um despejo do tekoha – lugar onde se é – Apyka’i, realizado em 6 de julho do ano passado, um dia chuvoso e cinza, por agentes da Polícia Federal. A tese do marco temporal esteve presente nas justificativas da ação de despejo.
É incerta a causa da morte de Cleusa. O corpo foi encontrado não muito distante do acampamento. “Como a situação para o grupo é de extrema dificuldade, sobretudo com alimentação, os indígenas relataram que Cleusa tinha saído para coletar doações. Horas depois foi encontrada sem vida”, explica Lídia Farias de Oliveira, missionária do Cimi Regional MS. Os Guarani e Kaiowá não observaram hematomas ou ferimentos em Cleusa, conforme relatam. Para emissários da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que providenciaram o caixão para o enterro, tratou-se de um mal súbito ou infarto. Há entre os indígenas os que acreditam em atropelamento, pois Cleusa estava bem de saúde. Sem a devida investigação, entretanto, o que se sabe é que Cleusa morreu longe de seu tekoha e no que pode ser considerado um sacrifício pela terra tradicional.
Para os Guarani e Kaiowá do Apyka’i se tornou rotina enterrar seus mortos. Nos últimos anos, nove integrantes da comunidade morreram vítimas de atropelamentos. Sem contar as mortes por desnutrição e as inúmeras violências desferidas por capangas, pistoleiros e reintegrações de posse. Um indígena chegou a morrer envenenado pelos agrotóxicos utilizados pela fazenda que se sobrepõe ao tekoha. O grupo vem sendo dizimado sob o olhar passivo das autoridades públicas. Por mais de uma década, as nove famílias do Apyka’i viveram na beira da estrada, sofrendo ataques de seguranças privados, tendo seus barracos criminosamente incendiados a mando de produtores rurais, bebendo da água podre dos córregos envenenados pela monocultura – figurando, assim, como uma espécie de “comunidade modelo” do genocídio que sofrem os povos indígenas no Brasil.
Desde 2013, os indígenas retomam parte do território reivindicado como tradicional, onde incide a fazenda Serrana, propriedade de Cássio Guilherme Bonilla, arrendada para a gigante do setor sucroalcooleiro Usina São Fernando. Os moradores do tekoha sobrevivem essencialmente de doações e de cestas básicas oferecidas por apoiadores e pela Funai. Não tem acesso à água, à floresta, è educação, saúde, à segurança ou a dignidade mínima. Instalada em Dourados em 2009, a usina é um empreendimento do Grupo Bertin, um dos maiores frigoríficos produtores e exportadores de itens de origem animal das Américas, e da Agropecuária JB, ligada ao Grupo Bumlai, especializado em melhoramento genético de gado de corte. Um dos territórios utilizados pela usina para produzir cana é reivindicado pelo povo Guarani e Kaiowá do Apyka’i.
Em 2010, sob perigo de perder sua licença de operação em função de diversos descumprimentos legais em questões trabalhistas, ambientais e indígenas, a usina teve de assinar um termo de cooperação e compromisso de responsabilidades na Justiça. Entre as condicionantes estabelecidas pelo Ministério Público Estadual, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público Federal (MPF), a usina era obrigada a não renovar o contrato de arrendamento da fazenda Serrana, de Cássio Guilherme Bonilha Tecchio, propriedade que incide sobre o território reivindicado como Apyka’i pela família de Damiana, quando o atual findasse. Em 2015, José Carlos Bumlai foi preso no decurso da Operação Lava Jato, acusado de fazer parte de um esquema de corrupção e fraude no pagamento de dívidas de campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores.
“Somos as raízes desta terra, os outros são os nossos galhos e nossa folhas. Veja essa árvore: tem o pé, os galhos e as folhas. Passarinho faz ninho no galho. Surgiu outra vida que encontrou nessa árvore um lugar para seguir adiante. Pra todo mundo serve essa terra, acreditamos nisso, mas pra gente também”
“Não acredito no governo, as coisas só pioram”
Leila Rocha Guarani Ñandeva está há 18 anos numa luta intermitente pela terra tradicional. “Tentamos de tudo para ficar em paz na nossa terra. Eu mesma já caminhei em vários lugares de governo, Justiça para ver se sai resultado da terra, mas o que nos restou foram as retomadas”, diz. Leila é da Terra Indígena Yvy Katu/Porto Lindo, demarcada em 2005 e localizada no município de Japorã (MS), onde os Guarani Ñandeva iniciaram a luta de reconquista territorial há 29 anos. Em 2003, para pressionar o governo federal e o judiciário, os indígenas realizaram a primeira retomada do território tradicional, expulsando não-indígenas de 14 diferentes fazendas na área reivindicada.
Os ataques à demarcação de Yvy Katu só aumentaram. Em 11 de maio de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou recurso a fazendeiros que contestavam a demarcação. A decisão favorável tratava da revisão dos limites da Terra Indígena Yvy Katu/Porto Lindo. Em 1991, os limites da reserva, demarcada em 1928, foram revisados e se reconheceu que ela correspondia a 9.454 hectares. Um fazendeiro questionou a demarcação com um embargo declaratório que afirmava, com base na tese do marco temporal, que os novos limites reconhecidos não correspondiam ao “conceito de ocupação tradicional”, pois os indígenas não estariam lá em 5 de outubro de 1988. “Isso virou moda no Mato Grosso do Sul: o marco temporal é um assassino dos Guarani Kaiowá. Não somos respeitados. Nosso direito foi retirado. Se não estávamos nas tekoha no dia da Constituição é porque nos tiraram de forma forçada, confinaram nosso povo nas reservas. Branco pretende cometer a mesma violência pela segunda vez”, ressalta Leila.
Os Guarani Kaiowá e Ñandeva, confirma Leila, decidiram que vão autodemarcar as terras indígenas. “Vamos fazer a nossa homologação”, diz. Ela acredita que muitas mortes ainda ocorrerão, mas “nossa luta não tem fim. Estamos ali e não vamos recuar. Jamais vamos abandonar a nossa mãe. Somos originários dessa terra, nossa vivência, nossa família. Sem terra nós não somos nada. A terra pra nós é algo muito valioso”. Leila lembra da vez em que o cano de uma arma de fogo foi empurrado contra o seu peito, das palavras de ameaça e de ter enfrentando inúmeras vezes a Polícia Federal. “Fomos saqueados, mas queremos agora apenas um pedaço dessa terra que nos tiraram. Nos acharam pelados em terras cobertas por florestas neste Mato Grosso do Sul hoje desmatado, doente”.
A indígena aponta para um árvore e explica como seu povo entende a relação dele com os brancos: “Somos as raízes desta terra, os outros são os nossos galhos e nossa folhas. Veja essa árvore: tem o pé, os galhos e as folhas. Passarinho faz ninho no galho. Surgiu outra vida que encontrou nessa árvore um lugar para seguir adiante. Pra todo mundo serve essa terra, acreditamos nisso, mas pra gente também”. Quando caminha entre os gabinetes dos ministros do STF, Leila pensa: “Já caminhei tanto por esses órgãos, por Brasília, já fomos para outros lugares do mundo denunciar e ver se governo toma as providências. Já foram nos tekohas, essas autoridades todas, recebemos com rituais e em paz. Eu penso que não adianta mais. Branco vai continuar judiando da gente. Ainda bem que temos a Aty Guasu. Não estamos desamparados porque ali vamos tomar as nossas decisões”.