15/12/2017

XXII Assembleia do Cimi: 45 anos de teimosia e esperança

Missionários, missionárias, convidados e lideranças indígenas celebraram as quase cinco décadas de luta do Cimi, diante de uma conjuntura de ataques aos direitos dos povos indígenas que exige criatividade, teimosia e rebeldia

Ascom/Cimi

Dom Erwin Kräutler, logo que chegou ao Xingu, na década de 1960, perguntou sobre o povo Kayapó. Disseram-lhe que eram indolentes, selvagens e em 20 anos não existiriam mais, assim como os demais povos indígenas do país. Tomou como missão estar ao lado dos indígenas e evitar que tal veredito ocorresse. A decisão havia sido tomada por dezenas de outros e outras religiosos e religiosas, espalhados pelo Brasil, convertidos à causa dos povos indígenas sob a luz de mudanças rebeldes no interior da Igreja Católica. O Concílio Vaticano II e a Teologia da Libertação abriram janelas. Anos mais tarde, em 1972, período dos mais duros da ditadura militar, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é fundado denunciando o genocídio em curso, à época, dos povos indígenas.

Em abril deste ano, o Cimi completou 45 anos. Segue denunciando a que estes povos estão submetidos. Celebrando os mártires, a esperança e a paz para os povos indígenas, ocorreu entre os dias 24 e 27 de outubro a XXII Assembleia Geral do Cimi, com o tema O Cimi a serviço dos povos indígenas: teimosia e esperança na afirmação da vida. “A palavra teimosia me marcou aqui nesse encontro. Trabalho de formiguinha. Meu povo tem uma relação antiga com o Cimi. Minha avó o chamava de Sino, lá nos anos 1970. Desde então tem sido fundamental o Cimi porque é quem é insistente e teimoso ao lado dos povos. Esteve ao nosso lado nos momentos mais duros, de mais perigo. Nos ajudou a montar nossas organizações de base, nosso empoderamento”, diz Cícero Jeripankó.

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Missionários e missionárias, colaboradores, convidados e lideranças indígenas estão reunidos no Centro de Formação Vicente Canas, em Luziânia (GO), para debater a conjuntura, as lutas travadas pelos povos em defesa de suas terras e vidas, além de estratégias ao enfrentamento neste momento de graves retrocessos impostos aos direitos indígenas por um padrão de poder do Estado que perpassa governos, com destaque ao atual, fiador de todas as pautas anti-indígenas em curso no Congresso Nacional, e se respalda em setores do Judiciário. Dos 11 regionais do Cimi, chegam os dados desta realidade. “Megacorporações investindo no agronegócio, com florestas revertidas em pasto. Territórios sendo assediados pelo capital e para arrendamentos aos fazendeiros. Mas temos exemplos de esperança. (A Terra Indígena) Maraiwatsédé segue sendo uma vitória, resistindo às ameaças”, afirma Natália Bianchi Filardo, missionária do Regional Mato Grosso.

Egon Heck, do Secretariado Nacional e um dos fundadores da entidade, lembra que a Amazônia sempre foi um grande desafio, ainda é e será no futuro. “São grandes os interesses econômicos a serem enfrentados. Conseguimos aumentar a presença missionária no Regional Norte I, motivando esse trabalho tão importante”, frisa. A atual coordenadora do regional, Adriana Huber Azevedo, destaca que apesar de ser a região com mais terras indígenas demarcadas, há cerca de 180 territórios com demandas pendentes, sendo que destas aproximadamente 130 tiveram sequer qualquer tipo de encaminhamento por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai). “As terras indígenas já demarcadas sofrem com invasões, grandes empreendimentos estatais e privados, garimpos e madeireiros. Há informações preocupantes sobre massacres contra povos indígenas em situação de isolamento voluntário”, pontua Adriana.

O encontro também é um momento dos missionários e missionárias trocarem experiências em face da pluralidade de povos apoiados pelo Cimi. Se trata da memória viva desses 45 anos de caminhada do Cimi, compartilhado entre as gerações de indigenistas formados no convívio das aldeias, acampamentos e retomadas. “Existem muitas diferenças nas atuações, mas o racismo, a violência e falta de garantias quanto à demarcação revelam que se trata de um padrão que envolve povos em contexto urbano ou rural”, defende Aleandro Silva, do Regional Sul do Cimi e que atua em São Paulo. A própria atuação do Cimi em Brasília foi lembrada, envolvendo embates junto aos Três Poderes da República, entre conquistas importantes, caso do artigo Dos Índios da Constituição Federal, a duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) movidas contra o Cimi e os povos indígenas – bem como contra a atuação da Funai e demais organizações que comungam o apoio incondicional a esses povos.

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

A programação da XXII Assembleia Nacional seguiu até sexta-feira, dia 27, e contou com espaços voltados à organização interna e de fala das lideranças indígenas vindas de todo o país para a atividade. “O Cimi preza por ouvir o clamor deste povos, sujeitos históricos de suas próprias vidas. Habitualmente os encontros do Cimi priorizam essas falas e por elas pautamos nossa atuação. Temos um quadro na conjuntura política que trazem desafios. Entendemos que os povos indígenas possuem respostas de resistência e esperança”, afirma Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi.

Para o coordenador do Regional Cimi Sul, Roberto Liebgott, “o profetismo dos indígenas, a resiliência e a mística os trouxeram até aqui. Sem dúvida todos e todas têm o que aprender com isso. A Assembleia do Cimi é um espaço em que os missionários e missionárias renovam seu voto de fidelidade aos povos indígenas e, sobretudo, aprendem com eles”.

XXII Assembleia do Cimi, em 2017. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

“A teimosia é uma necessidade”, diz Nailton Pataxó Hã-hã-hãe ao lado dos representantes indígenas

Teimosia, substantivo feminino, palavra que define aquilo – ideia, posição – que se estende durante muito tempo; que não termina com facilidade; insistente ou prolongado. A causa indígena é, portanto, sinônimo de teimosia. Para os missionários e missionárias do Cimi, a escolha desta palavra como mote da XXII Assembleia Geral não ocorreu por acidente. “A teimosia é uma necessidade porque é a continuidade da resistência. Resistir, ser teimoso, é uma disposição necessária para a continuação do trabalho. O território do meu povo pode estar livre, mas há muitos parentes com as terras para serem demarcadas, os invasores retirados”, afirma o cacique Nailton Pataxó Hã-hã-hãe, da Bahia.

“Eu fui teimoso, sou teimoso e seguirei teimoso. O mundo fica moderno, a gente consegue algumas vitórias, mas as dificuldades são as mesmas. A modernidade deixa tudo mais difícil também. Internet, televisão, whatsapp: isso traz alguma dificuldade. Engraçado, mas isso só atrapalhou a comunicação. Se faz muita coisa com os dedos, mas deixou-se de falar de forma comunitária. Tá um do lado do outro falando com os dedos. O meu sonho não acabou. Pensava que era a conquista do território, mas eu descobri que a minha paixão é pelos povos indígenas do Brasil”, complementa o cacique. Numa luta que vem desde o final da década de 1970, Nailton Pataxó Hã-hã-hãe explica que deseja a felicidade que sentiu, ao ver o último o invasor deixar o território de seu povo, a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, para todos os demais parentes. Esperança, sonho, utopia e teimosia.

Outra teimosa é dona Zenilda Xukuru, de Pernambuco. “Quando me levaram o convite para esta assembleia, eu achei bem forte esse tema: teimosia. Mas ao mesmo tempo eu fiz a análise da palavra, essa luta dos povos indígenas é uma luta de teimosia. Na esperança dos dias melhores a gente vive na teimosia. Tema forte e significativo, porque mesmo assassinando as nossas lideranças nós somos resistentes. Precisamos estar nas nossas terras”, diz. “Quando assassinaram meu marido (o cacique Xikão Xukuru, em 1998), pedi calma ao povo porque hoje nós estávamos o enterrando, mas amanhã essa semente faria germinar novos guerreiros. Entreguei meu filho anos depois para ser cacique e conquistamos nossa vitória. A esperança não morreu em nenhum momento, mesmo com a morte e a dor”, acrescenta.

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

“A assembleia acontece num momento crítico”

Falar em “conjuntura difícil” para a questão indígena é quase um pleonasmo em face da história destes povos após a invenção do Estado Nacional brasileiro. Lindomar Terena, do Mato Grosso do Sul, faz questão de frisar tal ponto de vista para contextualizar a sua fala: “Os ataques por parte do sistema capitalista ocorreram na história de diversas formas diferentes. Hoje em dia acontece de forma mais abusada, descarada. A Assembleia do Cimi ocorre num momento particularmente crítico”. Para a liderança indígena, é preciso criatividade para construir a luta.

“Percebo que o jeito que vínhamos pensando deu certo em grande medida, mas nossos inimigos, que são aqueles que desejam acabar com o nosso direito à terra, aprenderam assimilando nossas estratégias. Os ruralistas chamam indígenas para falar a favor de arrendamentos (…) esses parentes não vendem o povo, mas a alma. Então na Assembleia do Cimi a gente consolida ideias para novos planos, novas ações, novas ideias”, explica. Lindomar acredita que o Cimi faz com que “os planos da entidade partam do que os povos vivenciam. Precisamos de aliados assim”.

Conforme o Terena, “a teimosia está em não dobrar os joelhos mesmo com as grandes dificuldades que enfrentamos”. Ele explica que no Mato Grosso do Sul “assistimos constantemente a criminalização dos povos indígenas, as perseguições. Inclusive contra o Cimi, que respondeu a duas CPI’s (Comissões Parlamentares de Inquérito). A teimosia é não dizer amém pro sistema, pro Estado. A gente pensa: como é que se teima? Contra o Estado, nós vamos teimar? Se a gente analisar nós vamos ver que não estamos sendo teimosos, mas pedindo pra cumprir a Constituição”. Para o indígena a teimosia está em não ceder aos poderosos, que usam todo o aparato econômico e repressivo do Estado para impedir a conquista do direito à terra.

Como a Assembleia Geral foi marcada por uma mística festiva, muito ligada ao ambiente espiritual, Lindomar Terena ressalta que é este aspecto que “ordena a luta dos povos, faz com que os caminhos se abram e protegem o povo e as lideranças. Se formos de corpo aberto, tombaremos muito mais fácil. A parte espiritual precisa estar ativa e presente. Precisamos de uma proteção sobrenatural”.

XXII Assembleia Geral do Cimi – Documento Final

Benditas as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam esperança” – Mensagem do Papa Francisco para o Primeiro Dia Mundial dos Pobres, 19 de novembro de 2017

Realizou-se, de 24 a 27 de outubro de 2017, no Centro de Formação Vicente Cañas, a XXII Assembleia Geral do Cimi – Conselho Indigenista Missionário. O tema do evento foi: “O Cimi a serviço dos Povos Indígenas: teimosia e esperança na afirmação da vida”. Nesta perspectiva, as lideranças indígenas, os missionários e missionárias, bispos e representantes de entidades e instituições presentes à Assembleia afirmaram as razões de sua esperança num Brasil dividido entre ricos, corruptos e pobres cuja vida nos fala de razões de desespero. No último ano, registrou-se 106 suicídios de jovens indígenas. Os gritos de desespero são gritos que denunciam a injustiça e a mentira, que exigem que a terra seja desligada do seu valor de mercado e que sejam reconhecidos seu valor de uso e seu valor místico para os povos indígenas.

Vivemos num contexto de exploração econômica em que o capital, para continuar o processo de colonização, alienação e aumento de sua margem de lucro, precisa impor, como regras, a desregulamentação de direitos fundamentais, a criminalização das lutas e dos lutadores, a invasão e ocupação das terras indígenas por empreendimentos econômicos devastadores da natureza, o rebaixamento dos salários, a precarização do trabalho, a terceirização dos empregos e a aceleração da produção, com a substituição dos operários pelas máquinas.

Sabemos que, se em nossa sociedade não há esperança para os povos indígenas nem para as classes desfavorecidas, tampouco haverá esperança para as elites! O nosso lugar, neste contexto, é o de estar ao lado dos povos indígenas e no meio deles. Ao defender nossa opção preferencial pelos povos indígenas, defendemos igualmente o Bem Viver e a “sobriedade feliz” (LS 224) de todos. E numa sociedade cuja lógica é a sobriedade feliz não haverá lugar para privilégios nem privilegiados. Num momento em que a democracia em nosso país mostra toda a sua fragilidade por causa da corrupção e do clientelismo, nós somos decididos defensores de uma democracia purificada por uma ética de solidariedade. “Dado que o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção”, – nos diz o Papa Francisco – “requer-se uma decisão política sob pressão da população. […] Se os cidadãos não controlam o poder político […] também não é possível combater os danos ambientais” (LS 179).

Para o Cimi, a reconstrução ética do nosso país exige a construção de alianças entre todos que se dispõem a dar voz ao sofrimento dos povos indígenas e dos pobres e a lutar pela afirmação da vida humana e da vida do planeta terra. A natureza é uma aliada fiel dos povos indígenas, pois eles se encontram “entre os pobres mais abandonados e maltratados” (LS 2). A Assembleia do Cimi recebeu com entusiasmo a proclamação do Sínodo Pan-Amazônico pelo Papa Francisco, porque sabe que esse Sínodo vai dar uma ressonância mundial à voz dos povos indígenas, suas condições de vida e suas propostas alternativas para salvar o planeta Terra.

Entre os muitos desafios atuais, precisamos dar importância às diferentes formas de luta e resistência dos povos indígenas pela garantia de seus direitos e no enfrentamento das injustiças e violências. Eles nos ensinam que as lutas políticas, jurídicas e sociais não estão deslocadas de suas cosmovisões e de suas espiritualidades, mas se somam e fortalecem as relações místicas que norteiam a vida.

A XXII Assembleia Geral do Cimi, no seu comprometimento com a causa indígena, definiu para o período de dois anos as seguintes prioridades: terra e território como fundamento da vida; povos em contexto urbano, destacando o processo formativo junto à juventude; espiritualidade indígena como pano de fundo de suas lutas e fortalecimento de outras dimensões; e economias indígenas e bem viver.

A denúncia do sofrimento dos povos indígenas é anúncio da Boa-Nova do Evangelho. A vida e o futuro dos povos indígenas dependem da desconstrução do sistema que atenta contra a sua existência. A nossa esperança está na construção de uma nova sociedade na qual convivem culturalmente diferentes e socialmente iguais. A existência dos 45 anos do Cimi já representa uma antecipação dessa sociedade alternativa no sonho e na utopia. Não nos deixemos oprimir pela falácia do “fim da utopia”, o que significaria jogar os nossos mártires ao lixo de uma história sem memória.

Seguiremos “a serviço dos Povos Indígenas: com teimosia e esperança”, na afirmação da vida, sempre. Aos povos indígenas, missionários e missionárias de nossos regionais e aos nossos aliados, digamos com o Papa Francisco: “não deixem que nos roubem a esperança” (EG86).

Centro de Formação Vicente Cañas, Luziânia, GO,

27 de outubro de 2017.

XXII Assembleia Geral do Cimi

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