17/08/2016

Relatório revela alto grau de insegurança alimentar e nutricional entre Guarani e Kaiowá


Na tarde desta terça (16), foi lançado o relatório “O Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição do povo Guarani e Kaiowá – um enfoque holístico”, produzido pela Fian Brasil em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O documento, divulgado em evento na Faculdade de Ciências da Saúde, da UnB, em Brasília, analisa as violações de direitos e as causas da extrema situação de insegurança alimentar e nutricional entre os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

O relatório apresenta dados avassaladores: entre as três comunidades indígenas pesquisadas – os tekoha Ypo’i, Kurusu Amba e Guaiviry – a situação de insegurança alimentar é de 100%. Ou seja, todas as famílias Guarani e Kaiowá das três comunidades indígenas pesquisadas sofrem com algum grau de insegurança alimentar, índice que analisa o acesso a alimentos em quantidade e qualidade adequadas por comunidades e grupos sociais. Para entender a particularidade e a gravidade da situação, cabe a comparação com o mesmo índice no Brasil: na totalidade do território brasileiro, a insegurança alimentar é de 22,6%.

Clique aqui para acessar o relatório “O Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição do povo Guarani e Kaiowá – um enfoque holístico”

Outros índices apontados pelo levantamento dão conta da situação de extrema vulnerabilidade e violações de direitos básicos que os Guarani e Kaiowá vivenciam no Mato Grosso do Sul.

O estudo verificou que 42% das crianças menores de cinco anos sofriam de desnutrição crônica, apresentando baixa estatura para a idade. O mesmo índice, se consideradas as crianças indígenas de todo o Brasil, é de 26%; e, se consideradas as crianças não indígenas, o índice, ainda grave, cai para 6,8% – um número seis vezes menor do que entre as comunidades Guarani e Kaiowá pesquisadas.

A desnutrição aguda em crianças menores de cinco anos, que apresentam baixo peso para sua idade, é também alarmante entre os Guarani e Kaiowá. Ela atinge 9,1% das crianças pesquisadas e chega a ser cinco vezes maior do que entre as crianças não indígenas, entre as quais este índice é de 1,8%.


Os Guarani Kaiowá Eliseu Lopes, liderança de Kurusu Amba, e Genito Gomes, de Guaiviry, participaram do lançamento do relatório, na UnB, em Brasília.

Sem terra, a fome

As três comunidades abrangidas pela pesquisa são retomadas – terras recuperadas recentemente no processo de luta dos Guarani e Kaiowá pela demarcação de seus territórios tradicionais. Confinados entre muitas pessoas em pequenas reservas, impossibilitados de vivenciar seu modo de vida tradicional e cansados da demora do Estado brasileiro para demarcar seus territórios, os indígenas partem para a retomada de partes de suas terras tradicionais, dominadas por grandes fazendas produtoras de soja, cana de açúcar ou gado para exportação.

Nas retomadas, muitas vezes em áreas que o próprio Estado já reconheceu, os indígenas sofrem com a dificuldade de acesso à água, praticamente nenhum espaço para produzir, cercados pelo veneno das monoculturas e pressionados pela constante violência e pressão de fazendeiros e pistoleiros.

“O direito humano à alimentação e à nutrição adequadas se realiza quando se consegue superar todos os obstáculos que existem para você conseguir o alimento, e isso é um processo bem longo. Identificamos duas causas estruturantes que acabam impactando no direito humano à alimentação adequada. Uma é o direito ao território e tudo que decorre da falta de acesso a ele, e uma outra é a questão da identidade cultural dos povos indígenas. Se estes povos estivessem em seus territórios plantando soja, eles não sofreriam as violações que sofrem, porque eles querem o seu território para utilizar de acordo com sua identidade. Ser índio hoje, e ser índio no Mato Grosso do Sul, é um fator determinante para as violações de direitos”, afirma a secretária geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.

O relatório destaca que “os povos indígenas seguem com péssimos indicadores em relação a direitos humanos fundamentais como alimentação e nutrição, saúde, água, renda, entre outros. Essas violações decorrem diretamente da negação do seu direito ao território tradicional, do direito à sua identidade cultural e da inadequação ou omissão de políticas públicas articuladas e específicas”.

Tal percepção é reiterada pelas falas de Eliseu Lopes, liderança Guarani Kaiowá do tekoha Kurusu Ambá, e Genito Gomes, liderança de Guaiviry, que participaram do evento de lançamento do relatório.

“O nosso principal problema, entre os Guarani e Kaiowá, é a questão do acesso aos nossos territórios. Por isso que muitos passam fome e dificuldades. Estamos sendo massacrados por todos os lados. Nas retomadas, as famílias não tem acesso a água potável, e os fazendeiros jogam veneno nos rios, o que não deixa de ser uma forma de nos despejar”, afirmou Eliseu Lopes durante o evento na UnB.

“Temos um conjunto de violências e violações que se retroalimentam e agravam ainda mais essa situação, e a desnutrição entre os indígenas se dá nesse contexto”, aponta o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto. “Esses dados apresentados têm relação com a violência vigente que se dá pela falta de espaço, de território para a produção de alimentos e para a sobrevivência física e cultural deste povo, e se dá num processo de luta também deste povo para reaver ao menos parte de seu território esbulhado. Num contexto de agravamento, especialmente no Mato Grosso do Sul, dos ataques violentos às comunidades”.


Genocídio e violência contínua

Entre agosto de 2015 e julho de 2016, foram mais de 30 ataques paramilitares registrados contra comunidades Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul, inclusive contra Kurusu Amba e Guaiviry. Estes números incluem também ataques químicos, com despejo de veneno em acampamentos indígenas, e o recente Massacre de Caarapó, que resultou na morte do indígena Clodiodi de Souza e deixou outros seis gravemente feridos.

A própria história pessoal das lideranças duas comunidades pesquisadas é marcada pela violência do agronegócio e aponta a relação que existe entre a insegurança alimentar e as outras violações de direitos dos povos indígenas: em 2007, a rezadora Xurite Lopes, com 70 anos, foi morta por pistoleiros em Kurusu Amba; em 2011, Nísio Gomes foi morto a tiros no tekoha Guaiviry.

“Entre os Guarani e Kaiowá, das 390 vítimas desse processo de violência e confinamento nos últimos dez anos no Mato Grosso do Sul, 16 foram lideranças sumariamente executadas na luta pela terra”, afirma Matias Rempel, missionário do Cimi – regional Mato Grosso do Sul.


Violações articuladas

Os dados da pesquisa foram colhidos em 2013, com base em visitas a 96 domicílios nas comunidades indígenas de Ypo’i, Guaiviry e nos dois núcleos de Kurusu Ambá, onde residiam, à época, 360 pessoas, com grande predomínio de jovens – 46% dos indígenas com idade inferior a 15 anos.

O estudo considerou o direito humano à alimentação e nutrição adequadas em duas dimensões, dando atenção tanto ao direito de estar livre da fome quanto ao direito a uma alimentação e nutrição adequadas.

Em 86,7% dos domicílios pesquisados, a insegurança alimentar, conforme os critérios da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar e Nutricional (EBIA), era moderada (58,7%), quando há falta de alimentos entre os adultos, que deixam de comer para priorizar a alimentação das crianças, ou grave (28%), quando adultos e crianças sofrem com a restrição de alimentos.

Em 76% dos domicílios a pessoa entrevistada afirmou que, no mês anterior a setembro de 2013, houve ocasião em que crianças e jovens da casa passaram um dia todo sem comer e foram dormir com fome, porque não havia comida na casa.

Além da falta de espaço nas retomadas – em 2013, por exemplo, 80 famílias do tekoha Guaiviry viviam em aproximadamente 79 hectares – a produção de alimentos é prejudicada pela falta de condições, com ausência de acesso a sementes e assistência técnica.

O estudo identificou que, nas três comunidades, a situação precária da vida sem a efetiva demarcação do território tradicional complementa e determina a realidade de insegurança alimentar, com muitas das famílias vivendo sob barracos de lona e com severa dificuldade de acesso a água potável, em função da contaminação dos rios próximos por agrotóxicos utilizados pelas fazendas que estão sobrepostas às terras indígenas.

A falta de ação do Estado

Além da questão da demarcação dos territórios tradicionais, o estudo apontou outras violações do Estado brasileiro em suas atribuições de respeitar, proteger e promover os direitos humanos entre os Guarani e Kaiowá, diretamente relacionadas à situação de insegurança alimentar e nutricional.

Entre elas, estão a falta de proteção contra os ataques paramilitares, contra o desmatamento e o uso de agrotóxicos nas terras indígenas já identificadas ou em processo de identificação e contra a discriminação que os indígenas sofrem. Além disso, o relatório aponta também a não concretização do direito à educação, à saúde, o sucateamento de órgãos públicos e a falta de políticas públicas que atendam à comunidade.

A manutenção dos indígenas sob uma situação de dependência de programas emergenciais, como cestas básicas, segundo o relatório, também viola a promoção do direito à alimentação e nutrição adequadas – é necessário criar condições para que os povos “possam recuperar a capacidade de se alimentar e ter acesso a outros direitos por conta própria, quando forem capazes de fazê-lo”.

Nesse sentido, outra grave violação identificada pela pesquisa são as restrições impostas aos indígenas para o acesso ao programa Bolsa Família. Apesar de todas as famílias pesquisadas atenderem aos critérios para integrar o programa social, menos de 40% tinham acesso efetivo à transferência de renda à época da pesquisa.

Outro dado alarmante: 22% das famílias estavam com o acesso ao Bolsa Família suspenso, sendo que, em 41,5% dos domicílios onde o programa foi suspenso, a situação era de fome – ou, em termos técnicos, insegurança alimentar grave. Em muitos dos casos, a bolsa foi suspensa por falta de documentos ou porque as crianças das famílias em questão não estavam frequentando a escola.

O problema, entretanto, é que o acesso à educação nas retomadas também é dificultada. No caso de Kurusu Amba, por exemplo, não há escola, e as crianças precisam buscar outras aldeias ou o município de Coronel Sapucaia, onde os indígenas são bastante discriminados.

A pesquisa identificou, ainda, que 31% das famílias não tinha renda própria e nem recebia recurso de programas sociais.

“Em sua maioria, [os Guarani e Kaiowá] estão ilhados em pequenos espaços de terra, acuados por monoculturas que demandam uso intensivo de agrotóxicos, sem condições de plantar, caçar, pescar ou realizar outros atos de sua cultura”, afirma o documento em suas considerações finais.

O relatório conclui que este quadro grave de violação ao direito humano à alimentação e nutrição adequadas só será revertido “se houver, em primeiro lugar, a garantia do seu território e, além disso, a adequação de políticas públicas, elaboradas, geridas e executadas de maneira participativa, que lhes permitam viver de acordo com sua cultura e tradição, o que, a propósito, é mandamento constitucional”.

“De 2000 a 2016 morreram 28 pessoas no Guaiviry, todas no tekoha. Eu não quero mais ver meu povo morrendo, nem minha comunidade sofrendo. Não teria acontecido isso, se a gente estivesse todo mundo unido, teria mais força. Se todos pensarem mais no futuro, na vida do outro, vai ser melhor para nós, a vida de todos vai ser melhor”, afirmou Genito Gomes, ao fim do evento. “O que nos resta hoje é nossa resistência”, concluiu Eliseu Lopes.

Texto e fotos: Tiago Miotto/assessoria de comunicação – Cimi

Fonte: Assessoria de Comunicação do Cimi
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