Léia Aquino: um adeus à guerreira Kaiowá Guarani
O sol amanheceu triste. Não sabia se ia dar o ar de sua graça, ou anunciar o nome da guerreira Léia, liderança e professora na Terra Indígena Nhanderu Marangatu, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai, falecida nesse dia 3 de junho. Momento de luto e de luta. A terra pela qual ela tanto lutou nas últimas duas décadas, a chamou antes de poder vê-la novamente em poder de seus habitantes originários.
Léia, incansável lutadora pelos direitos de seu povo e em especial das comunidades de Nhanderu Marangatu/Campestre, procurou fazer do espaço da escola uma trincheira na luta pela terra, e formação de guerreiros, participantes ativos das lutas pelos seus direitos.
Ela viveu intensamente as lutas e contradições de seu povo. Juntamente com as lideranças Hamilton Lopes e Loretito, empenhou-se para evitar a expulsão de seu povo da terra já demarcada e homologada pelo presidente Lula, em março de 2005, e suspensa liminarmente pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nelson Jobim.
Para que o mundo saiba
“Venham, convidem as lideranças reunidas em Sombrerito. Venham testemunhar o que vai acontecer aqui. Venham ficar em vigília conosco. Queremos dizer ao mundo o que vão fazer conosco aqui amanhã”, dizia Léia, não conseguindo esconder seu nervosismo e indignação. Com os alunos e professores, fizeram uma série de cartazes e faixas que no outro dia iriam estar presentes na estrada da resistência, aguardando a polícia, com seu pelotão de choque para enfrentar um povo apenas armado com a esperança e a secular resistência. E Léia lá estava com seus alunos e colegas testemunhando a covardia da expulsão, ameaças, voos rasantes de helicóptero, casas queimadas e um monte de prepotência. “Não somos bandidos. Queremos apenas a nossa terra”. Era 15 de dezembro de 2005. Dia de intenso sofrimento que jamais se apagará na memória da luta e resistência desse povo.
No dia 24 de dezembro, duas semanas após a expulsão e acampamento na beira da estrada, Léia me liga novamente, e com tom de sofrimento grita no telefone “mataram uma liderança. Atiraram e mataram Dorvalino”. Covardemente foi assassinado com tiros desferidos pelos jagunços contratado pelos invasores.
Esses fatos ganharam o mundo. O secretário especial dos Direitos Humanos, Paulo Vanuchi, juntamente com o presidente da Funai, representantes do governo do Estado, delegados da Polícia Federal e o prefeito de Antônio João, foram, no dia 27 de dezembro, visitar a comunidade expulsa e acampada na beira da estrada. Ouviram atentamente os relatos indignados dos Kaiowá Guarani e foram visitar as sepulturas de Dorvalino, Dom Quitito e outras lideranças assassinadas. Se comprometeram a agilizar o processo e punição dos assassinos.
Nos dias subsequentes, professora Léia, com outras lideranças indígenas e o representante dos posseiros da Vila Campestre, assentados em terra indígena pelo INCRA, rumaram para Brasilia, para denunciar as barbaridades e violências e exigir ação eficaz por parte do Estado brasileiro.
No STF, obtiveram a promessa de que assim que os Ministros voltassem do recesso, iriam por em pauta o julgamento da ação de suspensão da homologação da Terra Indígena Nhanderu Marangatu. O processo tinha como relator o Ministro Peluzo.
Foram ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pedir ao presidente do órgão o reassentamento dos posseiros, solicitado por eles. Receberam a resposta de que em menos de um mês, estaria feito o levantamento cadastral e já tinham em vista terra onde reassentá-los.
Passaram-se mais de dez anos e nem o STF julgou o processo e nem o Incra fez levantamento e reassentamento dos posseiros. Léia deu um importante depoimento à representante dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). E o mundo ficou sabendo do intenso sofrimento, o genocídio a que estavam submetidos os indígenas desta região.
Depois de uma longa e penosa sobrevivência de mais de mil indígenas em aproximadamente 100 hectares de Terra, o grupo resolveu voltar ao seu território já demarcado e homologado. Isso aconteceu no ano passado. Semião Vilhalva foi assassinado. Nada avançou com relação à terra. Os índios continuam em pequena parte de sua terra tradicional, sobrevivendo a duras penas e suportando permanente pressão dos fazendeiros.
O luto e a luta continuam
Léia foi juntar-se com Marçal, Dorvalino, Semião e milhares de lutadores Kaiowá Guarani, que morreram na luta e esperança da conquista da Terra Sem Males.
Léia viveu e sofreu de forma muito intensa as lutas e contradições de deu povo. Sua memória será certamente mais um estímulo para continuar a luta pelos direitos de todos os Kaiowá Guarani, especialmente na reconquista de suas terras.
Léia morreu de AVC depois de ter ensinado o ABC dos direitos dos povos indígenas para centenas de crianças e ter participado de inúmeras lutas, especialmente pela terra.
Léia, leia-se guerreira, aqui no espaço da vida continuarás viva na memória da resistência e da afirmação dos direitos e projetos do povo Kaiowá Guarani.
Uno-me a esse povo na homenagem derradeira dessa lutadora e guerreira, na certeza da vitória da vida dos povos originários dessa terra. Adeus Léia Aquino.
Egon Heck fotos: Laila Menezes e Egon Heck/Cimi
Cimi, Secretariado Nacional
Brasília, 5 de junho de 2016