32 anos depois, Marçal vive
Essa história aconteceu trinta e dois anos atrás – mas poderia ter acontecido hoje.
Era uma emboscada na porta de sua casa, no dia 25 de novembro de 1983. Um índio foi assassinado por pistoleiros com cinco tiros, um na boca.
Seu nome de registro: Marçal de Souza. O nome Guarani Ñandeva: Tupã’i. Pequeno deus.
Você pode conhecer o rosto franzino e desdentado deste homem no youtube, em seu discurso ao Papa em 1980, ou no documentário Terra de Índios, de Zelito Viana, de 1977.
Marçal era um indígena do Mato Grosso do Sul. Nasceu em 1920 para ser expulso e confinado na reserva Te’ýikue, em Caarapó, em função dos trabalhos de colheita de erva-mate. As empresas de mate chamavam "reservas indígenas" de “acampamentos de trabalho”.
Mas o Pequeno deus, órfão, toma um rumo atípico. Ao 8 anos, vai parar em Dourados, num orfanato da Missão Caiuá. Aos 12, muda-se para Campo Grande com um casal de missionários evangélicos. Lá, conhece um oficial do Exército que o leva para Recife, onde trabalha em troca de comida, roupa e estudo. Volta à Dourados e dá aulas para crianças órfãs como ele. Também se torna intérprete de Guarani.
Em 1959, forma-se atendente de enfermagem, profissão que exerceria até a morte, através de curso na Organização Mundial de Saúde (OMS). A partir dos anos 70, com a ebulição do movimento político indígena nacional, passa a despontar como liderança dos povos Guarani, denunciando a expropriação das terras indígenas, a exploração ilegal de madeira, a escravização de índios e o tráfico de meninas indígenas.
Perseguido, é expulso de Dourados em 1978 pela Funai e volta a morar na reserva Te’ýikue, onde havia morado dos 3 aos 8 anos. Ainda em 78, Marçal é mais uma vez transferido pela Funai, e passa a viver na aldeia de Mbarakaju, em Antonio João, fronteira do estado com o Paraguai.
Em 1980, é escolhido representante dos povos indígenas do Brasil para discursar ao papa João Paulo II durante sua primeira visita ao Brasil, em Manaus. Marçal fez uma fala histórica, que repercurtiria em todo o mundo: "Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são invadidos. Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto não, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história".
No mesmo ano, Marçal se engaja junto de 30 famílias na luta pela demarcação da terra indígena de Pirakuá, no município de Bela Vista, vizinho a Antônio João. Pirakuá é lembrada como a primeira de um sem-número de retomadas que os Guarani Ñandeva e Guarani Kaiowá realizariam a partir de então.
A demarcação da terra é contestada pelo fazendeiro Astúrio Monteiro de Lima e seu filho Líbero Monteiro. Naqueles dias, Marçal, com 63 anos, sabia que ia morrer. Teria dito, pouco antes de sua morte: "sou uma pessoa marcada para morrer, mas por uma causa justa a gente morre".
Após diversas ameaças e agressões, em 1983, Tupã’i é assassinado a tiros no rancho de sua casa, na aldeia Campestre, em uma emboscada noturna.
O fazendeiro Líbero Monteiro de Souza, apontado como mandante do crime, executado por Romulo Gamarra, foi inocentado no julgamento realizado dez anos depois pela Justiça Federal de Ponta Porã. Líbero faleceu no início dos anos 2000. No dia 2 de setembro de 2002, o Juiz Federal José Denílson Branco, da 2ª Subseção Judiciária da 1ª Vara Criminal de Dourados extinguiu o processo 2001.60.02.001890-6, o chamado Caso Marçal. Ninguém foi punido.
“Não queremos emancipação, nem integração. Queremos o nosso direito de viver. Jamais o branco compreenderá o Índio. Queremos ser um povo livre como antigamente. O índio está cercado, amordaçado por uma democracia que não funciona. Por isso nós vamos a campo”, disse Marçal certa vez.
A terra indígena Pirakuá foi homologada. O movimento indígena Guarani e Kaiowá se consolidou, surgindo o Aty Guasu, a grande assembleia Guarani e Kaiowá. Dezenas de retomadas de terras foram reailzadas. Depois de Marçal, mais de duas centenas de indígenas morreram na luta por terem de volta uma parte de seus territórios originários.
Adaptação de texto de Ruy Sposati, originalmente publicado em 2013 no site do Cimi.