23/08/2015

Nhanderu Marangatu: a volta à terra tradicional

A ansiedade e disposição eram grandes. Os guerreiros, rezadores e famílias estavam esperando, agoniados, os ponteiros juntos apontarem para as estrelas. Esse era o horário que os deuses, através dos nhanderu (líderes religiosos) haviam marcado para o retorno ao território tradicional. Resolutos marcham para a terra sagrada. Com a proteção divina e a certeza de que esse gesto extremo era a única alternativa que lhes restava. Contavam com a solidariedade de amigos e aliados do mundo inteiro.

O sonho de Marçal e Dorvalino

Na noite de 25 de novembro de 1983, na aldeia de Campestre, munícipio de Antônio João, Marçal Tupã’i foi covardemente assassinado. Seu sonho era ver a terra de seu povo e de outras aldeias terem seus tekoha (terras tradicionais) demarcadas. Dezenas de crianças e adultos foram mortos por atropelamentos, fome, e toda sorte de violência.

A Aty Guasu já se manifestou: “Nosso tekoha finalmente acordou e se revestiu mais uma vez do sonho de Marçal. Alimentados por esse sonho, quase 300 indígenas já retornaram a terra, no momento na Fazenda Primavera”. As vozes de Nhanderu Marangatu, que por motivos de segurança não querem ser identificadas denunciam: “As mãos que nos alimentavam e eram amigas enquanto estávamos sem a terra são as mesmas que apertam os gatilhos e ordenam nossa morte quando queremos nossa terra de volta”.

Em nome de Hamilton Lopes que faleceu em 2012, de Marçal de Souza, assassinado em 1983, Dorvalino, assassinado em dezembro de 2005, de Dom Quitito, que morreu em abril de 2000 e de todos os heróis guerreiros e inocentes crianças que morreram e a todos os que deram sua vida para que o sonho da terra, paz e dignidade se tornassem realidade.

Dez anos após a homologação da terra e do despejo, dez dias após o encontro com o ministro da Justiça e visita a gabinetes do STF, e uma semana após ruralistas da região afirmarem que não existiam conflitos na região.

“Pisaram em cima de nós

Mas ainda temos raiz,

Vamos brotar, crescer

E dar frutos”

(Hamilton Lopes, 15 de dezembro de 2005).

Por volta das 9 horas chega um contingente policial para expulsar os índios de seu tekoha. Algumas dezenas de indígenas e aliados haviam feito uma vigília a noite toda.  Haviam se concentrado ao lado da rodovia, na aldeia de Campestre. Várias viaturas foram chegando e trancando a rodovia. Fortemente armados, com cachorros e um helicóptero sobrevoando o local. Os rasantes de um helicóptero amedrontaram, principalmente as crianças, que em pratos, escondiam seus rostos a cada investida da aeronave.

Veja vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=C03AynhXECY

Os policiais foram ao encontro dos indígenas. As lideranças tentaram demovê-los do despejo. Uma professora indígena suplicava que não os expulsassem, eles também eram gente e apenas estavam defendendo o que tinham de mais sagrado, sua terra.

Suas súplicas não foram atendidas: “Estamos aqui cumprindo ordem”.

Sequer haviam se cumprido as formalidades da expulsão, com a presença do Ministério Público, através do procurador Charles Pessoa, e os fazendeiros e seus capangas foram colocando fogo nos barracos dos indígenas, tendo alguns sido queimados com os documentos e todos os pertences dentro.

“O que pensam que somos,

Esses que fazem isso conosco,

Que somos animais ou traficantes,

Para virem tirar nós daqui

Com fortes armas?

Não precisavam” (Hamilton).

História da violência e resistência

Quando a expulsão ocorreu era manhã. A comunidade, atônita, não queria acreditar que tinham sido expulsos de sua terra. Mas o inacreditável aconteceu. Mais de 500 índios foram despejados para a beira da estrada, naquele fatídico dia 15 de dezembro. Começava então um longo caminho de sofrimento, luta e resistência. Dez dias depois, véspera de Natal, um segurança de uma milícia armada, contratada pelos fazendeiros, assassinou, próximo ao acampamento e dentro da terra indígena, a liderança Dorvalino.

Dois dias depois do despejo uma delegação indígena foi até Brasília para denunciar mais essa violência. Na capital federal era tempo de não trabalhar, tempo de recesso. Porém, conseguiram em alguns gabinetes do Supremo Tribunal Federal a promessa de que na volta aos trabalhos, a ação seria julgada com urgência. No INCRA a comissão recebeu a promessa de que os 50 não indígenas que estavam na localidade Campestre, dentro da terra indígena, seriam reassentados, a partir de janeiro de 2006. Passaram-se dez anos e absolutamente nada aconteceu.

Em junho de 2005 o presidente Lula havia homologado a demarcação da terra indígena Nhanderu Marangatu, de 9.300 hectares. Em seguida, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, anulou, liminarmente, a homologação. A partir daquele momento a população Kaiowá Guarani desta terra passou por uma década de sofrimentos e mortes, confinados em 126 hectares.

As comunidades declaram assim: “Hoje depois de esperar mais de 18 anos de posse de tekoha reocupamos definitivamente, aqui reocupamos nossa terra e não vamos mais sair de nossa terra Marangatu. Nós estamos aqui ameaçados de morte, cercado de pistoleiros armados, mas não vamos recuar. Decidimos lutar e morrer pela nossa terra. Informamos a todas as autoridades federais que reocupamos a nossa terra tekoha Nhanderu Marangatu, daqui não saímos nem vivos e nem mortos” (site Aty Guasu, 22 de agosto de 2015).

Fonte: Egon Heck/Cimi. Texto e fotos
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