Xukuru de Ororubá reúne povos do Nordeste em assembleia que discutiu território e acesso à água
“A água é um elemento sagrado que faz parte do contexto espiritual do povo Xukuru. Quem escolheu esse tema foram os Encantados, para que o povo Xukuru possa saber a importância do território sagrado”, afirmou o cacique Marcos Xukuru durante a XIV Assembleia do Povo Xukuru de Ororubá, que ocorreu entre os dias 17 e 20 deste mês na aldeia Pedra d’água, “Recanto dos Encantados”, terra indígena localizada no município de Pesqueira (PE).
O tema da assembleia foi “Limolaigo Toipe – Terra dos Ancestrais: A Água é o Sangue da Terra”. A aldeia Pedra d’água, que sediou a encontro, foi a primeira retomada realizada pelos xukuru do território sagrado e é lá que está enterrado cacique Xikão Xukuru, assassinado em 1998 no contexto da luta pelo território que em 2001 acabou sendo demarcado e hoje é motivo de tema da assembleia.
Discussões envolvendo a mobilização dos povos indígenas do Nordeste não passaram despercebidas. Com a presença de vários povos, entre outros os Potiguara, da Paraíba, Xukuru-Kariri, de Alagoas, e Kambiwá, de Pernambuco, foi possível debater a conjuntura da região e os problemas que afetam a vida das comunidades indígenas do sertão da Bahia até o Ceará. A água, tema da assembleia, é ponto de discussão em todo o Nordeste, seja na oposição a Transposição do Rio São Francisco às cercas que impedem o acesso de vários povos a fontes de água pura.
A temática da assembleia traz para reflexão do povo Xukuru a importância e os cuidados com a água, que nasce dentro de seu território. A água como fonte de vida e espiritualidade, e que vem reforçar o pensamento do cacique Xikão, que sempre dizia que a água é o sangue da terra. Considerando as questões climáticas, a água torna-se cada vez mais escassa e comercializada dentro do sistema capitalista, retirando toda a sacralidade e restringindo o acesso dos povos do Brasil.
Em 2017, o tema da campanha anual da ONU terá como tema “Água e espiritualidade”. Portanto, os xukuru demonstram que os povos indígenas podem contribuir com as discussões. Dentro do contexto de gestão territorial, os xukuru apontam para a necessidade de preservar o ecossistema e os mananciais hídricos, além de democratizar o acesso a água, internamente e com os municípios do entorno da terra indígena, no caso de Pesqueira e Alagoinha.
Leia na íntegra a carta do encontro:
Carta da XIV Assembleia do Povo Xukuru do Ororubá
Nós, Povo Xukuru do Ororubá, reunidos na a Aldeia Pedra D’Água, conduzidos pela natureza sagrada através da força das águas, no período de
Tendo como referencia o significado espiritual da água e sabedores de que ela é habitada por seres espirituais protetores da vida dos Xukuru e de todos os seres humanos que habitam no planeta terra, refletimos sobre a importância de conhecermos melhor a realidade hídrica de cada Aldeia e pensarmos formas de melhor cuidar e preservar esse líquido sagrado, dádiva da natureza, que assegura a existência de toda a humanidade. Para tanto, antes de refletirmos sobre a nossa situação particular, socializamos as informações sobre a distribuição e o acesso a água no Brasil e no mundo, percebendo os grandes desafios da atualidade, em que apenas 8% da água existente no planeta está destinada ao consumo humano, sendo a grande utilização feita pela indústria e o agronegócio, principais responsáveis pelos impactos ambientais e sociais que afetam o mundo inteiro.
É por essa razão que no Congresso Nacional Brasileiro, os parlamentares da bancada ruralista propõem vários projetos de lei, a exemplo da PEC 215, na tentativa de impedir a Demarcação das Terras Indígenas, no intuito de que essas terras e as águas nelas existentes possam ser exploradas para seus interesses econômicos, como ficou explicitado na análise de conjuntura política realizada em nossa assembléia.
No que se refere à nossa conjuntura interna, a partir dos trabalhos realizados pelos grupos, percebemos que considerando o fato de nosso território está localizado dentro do semi-árido nordestino, sua situação hídrica, embora seja limitada, é bem mais favorável do que muitas outras regiões do nordeste, isso ocorre em virtude de sua topografia que tem como determinante a Serra Sagrada do Ororubá, onde se encontram preservadas as matas, morada dos Encantados e lugar dos nossos rituais sagrados.
Todavia, constatamos também que é necessário melhorarmos a nossa forma de relacionamento com as fontes, nascentes, cacimbas, açudes, barragens, rios e riachos que alimentam o nosso território sagrado. Lamentavelmente, alguns hábitos e costumes criados pelo sistema capitalista que trata a água como se fosse uma mercadoria a ser utilizada a serviço de interesses econômicos, também podem ser identificados dentro de nossas comunidades. Por essa razão, ocorrem situações de poluição das águas pelo uso de agrotóxicos, pela forma incorreta da coleta do lixo e pelo descuido com as margens dos mananciais, que são afetados pela criação de animais de grande porte como o boi e o cavalo. Além disso, há também situações de desigualdades no acesso a água, quando algumas pessoas são mais beneficiadas do que outras, correndo-se o risco de cair na tentação de privatização e comercialização desse líquido sagrado.
Conscientes dessa realidade desafiadora, após termos concluído a elaboração do mapa hidrográfico do Território Xukuru, fomos ungidos espiritualmente através dos rituais conduzidos pelas lideranças religiosas do nosso povo. Como forma de compromisso com a preservação da mãe natureza e a garantia de continuidade das gerações futuras, decidimos que se faz necessário fortalecer em todas as nossas aldeias o processo de conscientização sobre o valor espiritual da água e a utilização correta da mesma, seja para o consumo humano, ou para cultivo da agricultura e criação de animais. Ao mesmo tempo, assumimos também o compromisso de participarmos da Campanha Internacional que propõe a expressão “Água e Espiritualidade” para ser assumida pela ONU como o tema principal do Dia Mundial da Água do ano 2017.
Por fim, na perspectiva de dar continuidade ao nosso projeto de vida, que tem como referencia o modelo do Bem Viver, reafirmamos a sábia citação pronunciada pelo cacique Xicão e que serve de inspiração para continuarmos a nossa luta em defesa do nosso território sagrado: “A Água é o sangue da Terra, as matas são os cabelos da Terra, as pedras são os ossos da Terra”.
Aldeia Pedra D’Água, 19 de maio de 2014.