Boletim Mundo: Indígenas de Apyka’i podem ser despejados para BR-463, onde oito já morreram
Por Carolina Fasolo,
de Brasília (DF)
A cacique Damiana Cavanha, que há mais de 25 anos vê sua família e comunidade ser massacrada em nome do “desenvolvimento”, não hesitou ao saber que serão despejados dos menos de dois hectares que ocupam e que a decisão judicial os obrigará – porque não têm onde viver – a voltar para as margens da rodovia BR-463, onde sobreviveram em condições subumanas do final da década de 1990 até setembro de 2013, quando retomaram uma pequena porção de seu território onde hoje incide a fazenda Serrana.
Um recurso pedindo a suspensão da reintegração de posse ainda deve ser protocolado no Supremo Tribunal Federal (STF). Enquanto isso a Polícia Federal pode ser acionada a qualquer momento para cumprir a ordem de despejo. O clima de tensão pelo risco iminente remete ao histórico de violências que os indígenas de Apyka’i foram submetidos ao longo do tempo.
No ano de 2008, numa tentativa de retomar parte da terra, acabaram num estado de sítio. O proprietário da fazenda contratou uma empresa de segurança que impedia a entrada de órgãos de atendimento. Um documento produzido pelo Ministério Público Federal (MPF) em Dourados relatou a situação: “A difícil condição imposta aos índios resultou na morte de uma anciã, que acabou sendo sepultada na mata, próximo onde foram montados os barracos dos índios. […] A morte da senhora foi causada pela utilização do veneno borrifado na lavoura”. Após o episódio, os indígenas foram novamente expulsos e voltaram para a beira da estrada.
Em 2009, depois que a usina de açúcar e álcool São Fernando se instalou na fazenda Serrana, um grupo armado atacou a comunidade. Barracos foram queimados e tiros atingiram duas pessoas. A situação foi denunciada ao MPF, que começou a investigar a empresa GASPEM Segurança Ltda, prestadora de serviços de segurança em propriedades com conflito fundiário. Em janeiro deste ano a Justiça decretou a dissolução da GASPEM, por constatar o envolvimento direto da empresa na morte de duas lideranças e em ataques à dezenas de comunidades indígenas do Estado.
Damiana Cavanha diz que as ameaças continuam. “A gente tem medo porque muita criança vive aqui. Nem dormimos mais direito, com medo de chegarem a noite. Os funcionários da usina já vieram pra atacar a gente. Chegam a pé, de madrugada, sem fazer nenhum barulho. Chegam pra botar medo, pra fazer a gente sair. Qualquer dia quando a gente estiver dormindo eles chegam pra queimar os barracos e colocar fogo na gente”.
Atropelamentos
Os anos seguiram árduos na beira BR-463 para os Guarani/Kaiowá de Apyka’i: sem acesso à água potável, sem atendimento de saúde, sem educação, saneamento ou alimentação adequada. Sem qualquer direito humano fundamental. Inseridos nesse contexto, esses indígenas vivenciam cotidianamente o medo e a violência.
Em 2002 houve a primeira morte por atropelamento. O líder da comunidade e então marido de Damiana, Ilário Cario de Souza, morreu depois de ser atingido por um carro que fugiu sem prestar socorro. Entre 2011 e 2012, outras três pessoas – dois filhos e um neto de Damiana – morreram atropeladas no local. Em março de 2013, enquanto andava pelo acostamento segurando a mão da avó Damiana, Gabriel foi atropelado e teve o corpo arremessado a uma distância de 39 metros. O motorista fugiu. “Tivemos que juntar os pedaços, foi só o que sobrou do corpo. Só alguns pedaços. Foi enterrado perto dos parentes dele”, relata Jorge Batista.
Delci Lopes, de 17 anos, morreu em janeiro deste ano, quando um caminhão que transportava bagaços de cana-de-açúcar atropelou a jovem, que caminhava no acostamento da rodovia. Ramão Araújo, 41 anos, morreu em circunstância semelhante na noite de 14 de março, atingido por um veículo Toyota Hillux em alta velocidade. Em todos os casos os motoristas fugiram e ninguém foi responsabilizado. Os indígenas dizem que são assassinatos premeditados. “A gente sabe. O caminhão que matou a menina era da usina São Fernando. Eles querem que a gente saia daqui, por isso nos atropelam, espancam, jogam veneno. Podem fazer tudo isso até matar todos, porque vamos ficar até o fim”, afirma Jorge Batista, esposo de Damiana.
Oito pessoas já morreram durante os anos de espera pela demarcação de Apyka’i. Um relatório produzido pelo MPF denunciou a situação: “Não se trata de hipérbole quando se fala em genocídio, pois, a série de eventos e ações perpetradas contra o grupo, desde o final da década de 1990, tem contribuído para submeter seus membros a condições tolhedoras da existência física, cultural e espiritual. Crianças, jovens, adultos e velhos se encontram submetidos a experiências degradantes que ferem diretamente a dignidade da pessoa humana. […] A situação por eles vivenciada é análoga àquela de um campo de refugiados. É como se fossem estrangeiros no seu próprio país.”.
Em agosto de 2013, durante visita aos acampamentos e aldeias indígenas de Mato Grosso do Sul, o secretário-geral da Anistia Internacional, Salil Shetty, afirmou depois de conhecer o acampamento Apyka’i: “Visitando essa região, me sinto em um lugar onde direitos humanos não existem”. Pouco depois da ida de Shetty um grande incêndio devastou os barracos dos indígenas, que perderam o pouco que tinham.
Mesmo com o trágico histórico de mortes, violência e miséria que permeia a vida dos Guarani/Kaiowá de Apyka’i, eles resistem. Damiana é enfática: “Não vamos sair do nosso Tekohá de jeito nenhum. Há 25 anos que eu luto pra gente ficar no Tekohá Apyka’i, que é o lugar onde a gente tem que ficar. Onde meu avô, minha mãe, meu pai viveram e foram enterrados. Polícia pode vir aqui, mas a gente não vai sair, não. Não quero voltar pra beira da estrada pra ver mais parentes morrer.”.
Esta notícia compõe o boletim semanal O Mundo Que Nos Rodeia. Para recebê-lo ou enviar sugestões de pauta escreva para [email protected]
Assista ao vídeo sobre a comunidade produzido pelo Ministério Público Federal